Lourenço M. Veiga

No primeiro dia da 29ª edição do festival Música Viva, que decorreu no O’culto da Ajuda, foram tocadas seis peças. O festival tem como grande objectivo a divulgação de música erudita contemporânea, principalmente composta em Portugal. Com efeito, no dia 5 de Maio, todas as composições, interpretadas pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble, eram de artistas portugueses. Duas dessas composições tiveram a sua estreia absoluta neste dia.

As peças foram executadas quase ininterruptamente, pois o canal de rádio Antena2 transmitiu-as em directo (há uma parceria entre o festival e o canal de rádio de quase vinte anos). É difícil digerir seis concertos dessa forma. Assim sendo, o meu propósito não será fazer uma análise exaustiva dos mesmos – será, por outro lado, uma descrição breve daquilo que mais ressoou comigo em cada concerto.

A quinta e última composição a ser tocada («Salsugem – 2ºquadro», de Isabel Soveral), baseada num poema de Al Berto, e cantada em francês, é uma composição de contornos sombrios, como uma nuvem à noite. Se um poète maudit tivesse feito poesia para ser cantada e acompanhada por um grupo de música de câmara, provavelmente não seria muito diferente. O problema foi que a música tomou um papel subserviente à poesia – quando a música não atinge o seu próprio patamar, não podendo assim atingir o seu reino, vinga-se das palavras e torna-as mais difíceis de compreender. A poesia, por sua vez, mesmo que seja da mais sublime abaixo do céu, nunca chega à sua real terra quando a música que a acompanha é para isso mesmo – acompanhar. Ou seja: parece-me que para haver uma junção que funcione entre as duas formas de arte não basta uma acompanhar a outra, como se poesia e música já tivessem um elo formado a priori. Penso que, pelo contrário, uma junção que funcione só decorrerá da consciência de quão diferentes são as duas.

Esta mesma composição parece tender para os pequenos concertos-performance expressionistas de inícios do século XX, mas ainda assim nunca parece criar uma revisitação consciente desses tempos. Penso que, a esse respeito, mais acompanhamentos de outro tipo, como um cenário de palco no qual se realçassem os «contornos sombrios» da peça, poderiam ter sido uma ajuda. Pareceu-me haver falta de identidade musical própria, evocando os representantes da poesia francesa decadente do século XIX (via Al Berto) de forma demasiado superficial. Creio que essa falta de identidade musical se deve, mais uma vez, à confusão entre instrumental e poesia, principalmente quando a última aspira a criar a sua própria atmosfera.

De forma contrária, a primeira peça («Descalça» – estreia absoluta de Fátima Fonte) tentou criar uma linguagem musical com identidade própria, e mais «portuguesa». No contexto da música erudita, de câmara e que incorpore elementos do teatro, desconheço composições que para aí tendam. Há na peça um jogo curioso com a palavra «subitamente», em que a música não apenas acompanha, mas realça o sem-sentido de eventos que surgem do nada e de forma «súbita». Tanto a letra como a música pareceram-me ser variações do tema «a procura de identidade»; a procura de uma realização súbita que no final, e depois de muito ziguezague, culmina em «É ela!..». O tom em que essa frase é proferida é ambíguo: de espanto, desilusão ou constatação de uma trivialidade? O que parecia ser alvo da procura foi, no final de contas, confundido com quem o procurava; o sonho da música é a realidade da sua experiência (e não penso que, neste caso, tivéssemos precisado de suportes extramusicais, como foi o caso da projecção dos desenhos de Ana Hatherly, de quem o poema foi emprestado).

É nesses termos ambíguos que a segunda peça («Propagation», Caros Caires) se apresenta. Como disse Miguel Azguime, organizador do festival, na entrevista para a Antena2 (prévia ao começo dos concertos), esta peça é uma espécie de alegoria do confronto entre o digital e o acústico (com a vitória final do acústico). Os sons da eletrónica são amelódicos e barulhentos, abafando o resto. «É mesmo assim!», avisou-nos Azguime. Não é nenhum curto-circuito: é parte da composição, que, na sua totalidade, arredonda-se narrativamente para acabar onde começou.

A terceira composição que foi tocada chama-se «Uma peça apropriada», de Rui Penha (estreia absoluta). Chama-se «apropriada» porque é, segundo o próprio compositor, uma apropriação da música tradicional do Bali. Foi, na minha opinião, a melhor deste dia. É um fluir de emoções e de sensibilidade geométrica, principalmente no segundo e no quarto andamento. Lembra algumas peças de Morton Feldman em relação à forma; e em relação ao espectro emotivo lembra o post-rock mais lânguido e paisagístico. Atinge um ponto fraco para alguém que cresceu próximo deste tipo de música.

O caso da quarta composição («Kra», de João Pedro Oliveira) é mais complicado: sendo a composição mais complexa, é talvez a composição que tenho mais curiosidade de reouvir em casa. Pareceu-me ser ao mesmo tempo imersiva e heterogénea; ou seja, os instrumentos têm todos vozes próprias, mas de alguma forma convergem, de maneira enigmática. Há claramente muitos «truques» musico-retóricos empregados. Parece, no seu melhor, uma progressiva descida ao inconsciente através de passagens entre camadas contíguas. E a peça também parece inacabada: no entanto fiquei com a impressão de ter sido uma decisão consciente. É, repito, uma peça bastante desafiante – pede uma análise mais aprofundada – e o sentimento mais concreto que consigo sondar aqui é de «urgência».

A quinta composição («… de vos sourires», de António de Sousa Dias) pecou por vir na sequência da anterior: é aborrecida, por comparação. Se a ênfase estiver na subtileza, a sombra de «Kra» impediu-me de a detectar. É uma composição inspirada nos sorrisos da influente compositora e pedagoga no panorama da música portuguesa, Constança Capdeville.

Termino referindo-me a uma ou outra ideia desta última compositora, homenageada por António de Sousa Dias. Podemos encontrar neste artigo, de Filipa Magalhães, um esboço daquilo que a compositora chamou «teatro-música». Se bem entendi, a mistura destas duas formas de arte seria uma maneira de trazer uma nova interdisciplinaridade, que abalaria a forma tradicional de fazer espetáculo, bem diferente da noção próxima de «musical». Sem incorrer numa discussão teórica, quero apenas realçar que este espetáculo talvez ganhasse se algumas das ideias de Capdeville tivessem sido empregues (principalmente na primeira e última peça deste dia, leia-se). De facto, há um elemento inerentemente teatral num concerto. Mais ainda em concertos de proporções intimistas, como estes o foram. Essa intimidade traz consigo uma maior atenção dos espectadores em relação a todos os elementos: usamos os olhos para percorrer o espaço e não apenas a imaginação! Como o autor do artigo indica:

A questão da espacialização é um aspeto muito importante na obra de Constança Capdeville; o acaso não existia e tanto a disposição dos músicos em palco, como a colocação dos instrumentos e da própria utilização da gravação eram bem definidas. A colocação dos performers ou dos instrumentos podia ter implicações em termos sonoros ou cénicos e visuais.

Com esta referência não pretendo advogar uma filosofia programática do espetáculo; refiro-me à exploração dos limites das diferentes artes, dos limites de um espaço (maravilhoso a nível de acústica como é o O’culto da Ajuda) e no potencial em construir um futuro sorridente para uma vanguarda musical com identidade própria.

 

O festival decorre até dia 13 de Maio inclusive.