GUILHERME BERJANO VALENTE

Ice Merchants (2022), de João Gonzalez, destaca o carácter confortável e seguro que nasce das nossas rotinas e dos nossos hábitos. Neste filme, um pai e um filho vivem numa montanha envolta em gelo, numa casa que se segura a uma das suas encostas através de cordas. Como o nome do filme indica, são vendedores de gelo: tendo em conta o frio do local em que se encontram, congelam água e partem-na em pedacinhos para a vender. Ao partirem o gelo, recolhendo-o para venda, saltam com um para-quedas de modo a chegarem à aldeia mais próxima. Quando vendem tudo, recolhem-se para casa, subindo a encosta com um elevador manual – uma mota estagnada que, ao ser acelerada, os puxa para cima. Todos os dias, quando saltam, os seus gorros voam-lhes da cabeça, acabando por desaparecer na imensidão do ar. Percebemos que existe um grau de conforto nesta rotina tanto por repetirem-na, como por não temerem aquilo que os rodeia: uma grande queda e uma encosta de montanha. Isto torna-se ainda mais claro com a criança a andar de baloiço sobre o vazio, durante grande parte do dia, mostrando que a queda e o perigo não fazem parte da sua conceção de andar de baloiço sobre o abismo. Desta repetição quotidiana, nasce um sentimento de segurança e de conforto nas personagens, tornando o espaço à sua volta, aparentemente perigoso, num espaço sem perigos para os que o habitam.

Enquanto o pai se veste de vermelho, com o seu gorro e o seu kispo, o filho veste-se de cor de laranja.  As suas canecas também têm este padrão de cores: vermelho e cor de laranja. Vemos, ainda, na sua casa, dentro do armário, uma caneca amarela. Esta é retirada pelo filho e dada ao pai que, carinhosamente, a retorna ao armário. Sendo uma caneca um utensílio útil, torna-se estranho mantê-la fechada num armário, sem que se a use; assim, percebemos que aquela caneca não é utilizada por alguém que ali esteja, sendo guardada, possivelmente, por uma questão de recordação. Introduz-se, com a caneca amarela, uma personagem que já não se encontra viva: a mãe. Visto que a caneca é amarela, percebemos que as cores têm um sistema referencial e reprodutivo, pois a junção do vermelho e do amarelo – do pai e da mãe – produz o filho, que se veste de laranja.

A rotina é quebrada com o descongelar da encosta, o que leva a uma derrocada e à consequente destruição da casa. Com isto, pai e filho percebem que irão cair. O seu para-quedas, com o tremer da casa, cai no abismo para onde também caem todos os gorros. Segurando o seu filho ao peito, o pai decide saltar uma última vez, mas desta vez sem para-quedas. Na queda, lírica nos seus movimentos, uma figura de kispo amarelo junta-se e segura-se ao pai e ao filho, mostrando-se como a mãe já ida, sem nunca lhe vermos a cara.  Segue-se um corte para um plano totalmente escuro, em que só se ouvem os sons da montanha, parecendo indicar a morte do pai e do filho; no entanto, com um outro corte, uma montanha de gorros aparece no meio da floresta: todos os gorros que lhes saltavam da cabeça quando «voavam» foram ali parar, formando uma montanha macia que permitiu que, quando caíssem, ali aterrassem. O pai esperneia e toca na criança, confirmando que ambos sobreviveram à queda. Ambos estão vivos.

Se pensarmos no filme através de um prisma ambientalista, o descongelar da montanha parece indicar o risco do descongelamento dos polos (Antártida e Antártica). Tanto o pai quanto o filho não reparam que o termostato foi aquecendo, possivelmente devido ao hábito de ali se encontrarem e do conforto que este espaço lhes fornece: esta distração parece refletir a nossa distração para com o aquecimento do globo, que surge, maioritariamente, de uma questão de hábito e de conforto. Assim, a queda que se segue serve de aviso: o hábito e o conforto levam-nos a ignorar coisas que podem ser fatais.

É, também, facilmente identificável que a ideia de perda percorre o filme. Esta ideia integra a rotina das personagens: de cada vez que o pai e o filho saltam, perdem os seus gorros, ficando maior a montanha de gorros que os salvará. Aceitando a perda de gorros como uma inevitabilidade, compram gorros novos todos os dias, com o dinheiro que fazem a vender gelo: como vemos, a partir de um certo momento no filme, o pai deixa de retirar a etiqueta do preço dos gorros, visto que os perderão.

Assim, o poema «One Art», de Elizabeth Bishop, vai ao encontro das ideias apresentadas no filme: «The art of losing isn’t hard to master; / So many things seem filled with the intent / to be lost that their loss is no disaster»[1]; os gorros, tendo em conta os saltos de para-quedas, parecem ser propositadamente comprados para serem perdidos na queda, constituindo uma parte da rotina: perder é, então, algo que acontece devido à natureza do objeto que perdemos e, possivelmente, à importância que lhe damos, i.e., um objeto é mais suscetível de ser perdido se lhe dermos um menor grau de importância. Os gorros são, por assim dizer, objetos de pouca importância, sendo facilmente perdíveis devido ao seu tamanho e à forma como são utilizados neste contexto. A pergunta que aqui nasce é, no entanto, «como é que se aprende a perder?», visto que nada do que foi dito implicou uma aprendizagem prévia. A resposta, simples e direta, é que ninguém aprende a perder coisas, aprendendo-se, sim, a reagir à perda. A aprendizagem faz-se, então, sobre as melhores formas para se aprender a reagir à perda de algo.

Assim, no filme, a arte de perder algo será a arte de saber reagir à perda. A solução que nos é dada por Ice Merchants é a formação do hábito através da aceitação. A substituibilidade dos gorros e o pouco apego aos mesmos difere em relação às canecas, mantendo-se a caneca da mãe da criança no armário, como se ela ainda a fosse buscar, retomando a ideia de objetos que são mais facilmente perdíveis devido à importância dada pelo proprietário do objeto. Ice Merchants funciona, então, como o verso «Lose something everyday. Accept the fluster» sendo que, a partir de um certo momento, deixa de ser uma perda custosa para se tornar numa rotina. Parece-nos, então, que aceitar a perda pode ser uma forma de se aprender a viver.

No entanto, a caneca amarela, representante da mãe, não é esquecida nem deixada; pelo contrário, é acarinhada, aparecendo em vários enquadramentos, sendo uma das últimas coisas que é vista pelo pai antes de decidir saltar da casa em destruição. Com isto, o apego a certos objetos é diferente: as canecas, neste caso, são mais valiosas do que os gorros. Com facilidade esta ideia é rebatida: os gorros, naturalmente, saltam durante a queda, enquanto as canecas são preservadas em armários. No entanto, o argumento aqui apresentado é outro: sendo a caneca de um morto inútil, pois não é utilizada por ninguém, mantê-la num armário com as canecas do resto da família é negar a utilidade de algo como o primeiro critério para que se a mantenha no armário. Este torna-se, por sua vez, na possibilidade de recordação de alguém que um certo objeto oferece àquele que o manuseia, ou seja, a caneca da mãe está no armário, pois facilita, tanto ao pai quanto ao filho, a recordação da mãe, tornando-a numa presença regular da casa – notemos que só quem vive numa casa é que tem uma caneca que é sua num armário. Isto torna-se claro nos planos finais: quando vemos, finalmente, o local onde estão todos os gorros, uma narrativa é visualmente construída com o uso das suas cores: enquanto a base da montanha de gorros é constituída por gorros vermelhos e amarelos, o topo é constituído por gorros vermelhos e laranjas, havendo uma secção no entremeio da montanha com as três cores; torna-se claro que a mãe da criança está morta, pois deixa de haver os seus gorros na montanha. A montanha de gorros, por sua vez, indica-nos algo: aquilo que nos parece perdido para sempre é encontrável, especialmente as coisas que identificam alguém por quem temos carinho.

A pergunta que se levanta é: o que é perder algo? A resposta será simples: a perceção de que somos incapazes de reaver alguma coisa. No entanto, de que forma é que esta definição se associa à perda de uma pessoa? Será que nos é impossível reavê-la?

Como é demonstrado pelo filme, aquilo que é impossível é ter um contacto direto com um morto. No entanto, os objetos do morto são aquilo em que ele se encontra: é a caneca da mãe que representa a mãe. São os gorros encontrados no fundo da floresta que nos falam da história do casal, são os kispos com que saltam que os identificam no ar, é o baloiço em que a criança anda que nos diz se ela está em casa. Os objetos são, em parte, as pessoas que os utilizam, portanto, ter estes objetos é ter algo, ainda, da pessoa que os utilizava. A rotina de um morto é, por outro lado, o guião de ações que uma pessoa tinha durante um dia, podendo ser replicável de forma a aparentar-se com o morto. Aqui, é impossível falar de um reaver de um morto, visto que a pessoa não volta a estar viva; logo, ao invés de reaver, deveremos pensar em retornar. O processo que ocorre é um processo de recordação, através dos objetos, que servem de indicadores ao morto: assim, o retorno do morto possui um grau de materialidade nos objetos que eram seus, mas nunca poderá ser retornado como pessoa material. Estes objetos (canecas, kispos, meias, a própria rotina de alguém) têm um papel salvífico à memória do morto, pois perpetuam a sua imagem na nossa mente. A arte da rotina, que, no filme, é a arte da perda de gorros, também possui este papel de manutenção da memória de uma pessoa já ida. Notemos que a rotina do pai e da mãe é aquela que é praticada pelo pai e pelo filho, materializando-se as ações da mãe nas suas ações. Mostra-se, assim, que a melhor forma de manter os mortos por perto é fazer deles vivos, ou seja, ter as suas coisas ao nosso lado e repetir as suas ações.

Ice Merchants fala-nos, então, da mesma «One Art» de Bishop: a perda. Por sua vez, não se limita a dizer-nos que não faz mal termos perdido algo – «the art of losing’s not too hard to master / though it may look like […] disaster»[2]–; diz-nos, sim, que aquilo que perdemos nos pode ser reavido se procurarmos nas nossas rotinas e nos nossos objetos.

 

[1]Ver: Elizabeth Bishop, «One Art», Poetry Foundation, accessed March 13, 2023, https://www.poetryfoundation.org/poems/47536/one-art.

[2] Ibidem.

Bibliografia:

Bishop, Elizabeth. «One Art». Poetry Foundation. Accessed March 13, 2023. https://www.poetryfoundation.org/poems/47536/one-art.

REFERÊNCIA:

Gonzalez, João. Ice Merchants. Cola; Wild Stream; Royal College of London. 14 minutos.