Maria Brás Ferreira

De Jean-Pierre Martinet, autor inédito em Portugal, e com tradução de Diogo Paiva, foi recentemente publicado, pela editora Cutelo, A Grande Vida. Um romance que não pode ser outra coisa senão romance, ainda que a sua extensão curta aponte imediatamente para o género da novela, uma vez que o último reduto da sua expressão e intempestividade reside no mais cerrado dos sarcasmos. Por um virtuosismo propriamente romanesco, esse de fazer associar o que está votado a ser escatologicamente baixo, vil, a um tom grandiloquente, por efeitos cénicos produzidos ao longo do texto, ao leitor quase apetece dizer tratar-se do romance, por excelência, da miséria, e do abjecto, atribuindo-lhe um valor não só singular, como exemplar. O sarcasmo que inequivocamente acentua o título prescreve, de imediato, um tal recurso estilístico (é um texto pouco dado a virtuosismos literários) — é precisamente assim que o título se valoriza e adquire um tom próprio e excepcional —, preferindo-se uma escrita terrivelmente objectiva, sóbria, mesmo nos momentos tangenciais da auto-depreciação ao ponto da escatologia, no duplo sentido do termo. Um descaramento incisivo, como o parto «sobre si mesm[o] como um feto monstruoso» (Martinet, 39), na descrição do sujo, do mau e do desprezível. É a clareza discursiva que imprime o último reduto da miséria: a concessão, a pena (no sentido da sentença, jogando com esse outro do tema cristão da piedade) e o crime últimos, da piedade como linguagem esgotada e/ou iconologia que já não pode dizer-nos respeito. A piedade remetida à medida de um desajuste em face da obscenidade intrínseca à própria vida, até à indiferenciação e ao absurdo caricaturais, em sinal dos quais irrompe o riso como o ânimo em negativo de uma vontade distorcida ou simplesmente ausente: «Foi por volta do fim do mês de Agosto que o drama rebentou. Digo drama, mas não é a palavra certa. Não existe drama entre nós, senhores, nem tragédia, apenas burlesco e obscenidade. Não somos felizes, mas fartamo-nos de rir. Com sorrisos amarelos, claro, mas enfim.» (idem, 41).

Trata-se de um livro tão desinteressado em transmitir um qualquer ensinamento, quanto empenhado se revela em esclarecer que há um certo tipo de presença, de vida, que deixou de ser possível, porque a morte tudo tomou para si e com direito de propriedade. Lembre-se, a este respeito, a epígrafe de Fritz Lang, retirada de A Morte Cansada (1921), a estabelecer uma economia antes de mais topográfica, como futuro detido, à partida, pela morte: «- A quem pertencem os terrenos à volta do cemitério? - Reservamo-lo para a expansão do cemitério.» (idem, 11). Esse termo, esse fim a martelar as horas da insónia no lugar da vida, conhece um limite histórico preciso e perturbante; condição sonâmbula de um narrador (e porventura de um tempo viciado no deserto em que uma anterioridade de violência o depositou) que só num estado encenado, por via de um fetichismo que o arreda do mundo real, encontra uma expressão e um peso próprios. De facto, o texto encontra uma expressão e um ritmo singulares entre, por um lado, o testemunho epocal, longe de preocupações historiográficas, inscrevendo sim a irredutibilidade histórica de um tempo pós-Shoah e, por outro, a descrição de um quotidiano tão-só adjectivável, no desmerecimento de qualquer sublimação a que não se presta, e pela qual não parece condoer-se. A referência a Auschwitz é directa, o campo de concentração onde a mãe de Adolphe (nome que remete, de um modo quase burlesco, para o nome de Adolf Hitler), o narrador, foi assassinada, e com a qual este não consegue mais que travar uma relação mediada, e amesquinhada, pelo ódio do pai sobrevivente: «A minha mãe, Anne Marlaud, com o apelido de Jacob em solteira (1920-1943), foi gaseada em Auschwitz. Eu tinha apenas um ano quando ela se desfez em fumo.» (idem, 20). A juntar à referência explícita ao campo de extermínio, encontram-se os parêntesis repetidos da datação da vida, nascimento e morte, dos pais de Adolphe, incitando o leitor a posicionar-se, de forma permanente, na cronologia da História, para testemunhar a desesperança e a nulidade da escrita, da narrativa e, no limite, da própria vida, como problemas com potencialidades universais (e daí filosóficas), mas em face dos quais a rosto algum compete perscrutar uma solução. Se a saída existe, o que resta são homens e mulheres enlutados, pela perda afinal há muito executada, e mais ou menos empenhados no teatro a que se usa chamar vida ou, para os mais ousados, uma grande vida: «Para dizer a verdade, não havia grande coisa que desejasse. A minha regra de conduta era simples: viver o menos possível para sofrer o menos possível.» (idem, 19). A consciência histórica, que coincide exactamente com a sonda e o tacteamento do fim, a experiência de fins, no tempo póstumo em que realidade e fantasia se imiscuem violentamente, é projectada sob a descrição de uma história pessoal, um quotidiano, com uma inclinação para a autobiografia como espécie de suicídio encenado, ironicamente a única forma de manter uma ligação com o passado e com a origem. Do fim de um tempo, por associação a um momento histórico mais ou menos exacto, para a narração da vida de um homem perturbado, não se dá mais que uma montagem, todavia, isenta de uma redução de escala, pois tudo neste romance é já invariavelmente baixo, pequeno, nem mesmo digno de lamento, não assinalando modulações e instâncias diferenciais. Como na Rua Froidevaux, onde vive Adolphe, tudo aqui é estacionário: «A Rua Froidevaux era feia como uma sala de espera de segunda classe perdida nalgum subúrbio onde os comboios são tão raros que se vai para lá dormir (…) Nessa rua, tinha-se sempre a sensação de um frio glacial, mesmo no mês de Agosto.» (idem, 20).

Montagem sobre ruínas, já só podendo ser uma montagem de ruínas, e com as quais resta erigir uma narrativa expositiva de relações fetichistas, alicerçadas numa espécie de masoquismo — o prazer masoquista de narrar a submissão não deve ser secundarizado —, a que a reincidência traumática estará associada como ciclo patológico, experiência física resultante numa disposição cénica da punição do personagem-narrador sobre si. Nessa disposição masoquista, quanto menor o desejo de exposição do personagem aos outros, maior a contaminação que o exterior produz sobre si. Neste sentido, é definido enquanto figura-tipo, com efeito valorizada na relação a um contexto e, assim, em relação ao outro:, «Há mais de quinze anos que a Rua Froidevaux era a minha prisão. Eu era um detido modelo.» (idem, 19). Outra forma de o narrador surgir, nos termos quase absolutizados de um mecanismo simplesmente em funcionamento, em relação ao que o exterioriza é a de uma adesão indiferenciada ao momento, como cena, a imitar, a possuir monotonamente: «Virei-me para trás, sem o desejar fazer realmente» (idem, 31). Tratam-se de gestos análogos à redundância de organismos em funcionamento, «Mantinha os olhos para baixo olhando estupidamente para a toalha de oleado onde uma mosca se debatia sem convicção numa pequena poça de vinho» (idem, 29). Presença mecanizada que irá, ao jeito de uma engrenagem posta em andamento por uma entidade superior oculta, operacionalizar os encontros sórdidos com a senhora C., compassados pela vertigem literalizada no corpo incomensurável, quase-mítico da mulher:

 

Rebentei em soluços, de repente, a senhora C. puxou-me do meu assento para me refugiar entre os seus seios enormes. Experimentava uma estranha sensação de bem-estar. Cobria-me de beijos. O seu hálito fedia a álcool. Os lábios sugavam-me voluptuosamente o nariz. Eu nunca tinha visto uma boca tão grande. Um abismo. A glote glutona. Nhanhosa. Insalivada. A língua desmesurada, inquieta, violácea, a bela úvula subindo, descendo, torcendo-se como uma serpente numa caverna vermelha. (idem, 30)

 

No fundo, tudo o que se conta depois de Auschwitz, e depois da morte da mãe, é submetido a um trabalho inexorável de datação cronológica em relação a esse acontecimento de barbárie, da história universal e de uma história pessoal, fixado enquanto eixo e obstáculo incontornável para todo o sentido e toda a expressão. Contar é atestar o fim como o vazio frenético a que precisamos de permanentemente dar resposta, a língua que é desmesurada, literal, saída da boca de uma mulher-simulacro, cuja verosimilhança (e imaginação) foi barrada pela (sua) realidade monstruosa. Mulher real, não obstante responsável pela dimensão absurdista do texto. Nos encontros sexuais entre Adolphe e a senhora C. esta inseria a totalidade do corpo do narrador pela sua vagina: «revolvia-me brutalmente nela agarrando-me os pés para me impedir de espernear, e depois, quando já se tinha vindo, depois de ter soltado um mugido que fazia estremecer as paredes, expulsava-me da sua formidável vagina, deixando-me sozinho no soalho como um rei deposto, encharcado da cabeça aos pés, incapaz de dizer uma única palavra.» (idem, 16). A língua, portanto, já não pode ser o silêncio da própria palavra que um rosto estreita, de que falava Agamben em Ideia da Prosa, pois «Só a palavra nos põe em contacto com as coisas mudas» (112) e, contrariamente, neste romance nada há de mudo além do ofensivo inexprimível de que subsiste o horror. Se se escreve poesia, contrariando, mas nem tanto, a célebre declaração de Adorno, depois do horror dos campos, a literatura, por metonímia, carregará o rosto deformado do abjecto, conceito exaustivamente teorizado, nomeadamente por Julia Kristeva, que o identifica com tudo aquilo que se opõe ao «eu», impedindo o sujeito de encontrar qualquer espécie de familiaridade, «algo que eu não reconheço como coisa. Um peso da insignificância, sobre o qual nada há de insignificante, e que me esmaga» (Kristeva, 11), não obstante que o abjecto seja reconhecido, a par da abjecção, enquanto «protecção» e «cartilhas da [minha] cultura.» (ibidem). Tudo o que se conta neste pequeno romance é a história de Adolphe, um homem por todos desprezado, de assinalável baixa estatura, obrigado a usar tacões, ficando ainda assim abaixo da altura das mulheres, «um bom palmo mais alta[s]» (Martinet, 24), que visitam a loja em que trabalha, uma agência funerária. Filho de mãe judaica, morta pelos nazis, denunciada pelo próprio marido, pai de Adolphe, que lhe incute a terrível associação entre duas palavras, «mãe» e «puta»: «(…) durante toda a minha infância, a palavra "mãe" esteve sempre associada à palavra “puta”. Repetia para mim próprio essa frase de tempos a tempos, no escritório, anos depois, e enchia-me de vergonha. Em contrapartida, o acto imundo no qual participara o meu pai não me indignava verdadeiramente.» (idem, 35-36) O processo que a partir da mãe, judia assassinada, a vítima, entidade e imagem portáveis pelo pai denunciante e sobrevivente, da abjecção se configura, é tanto linguístico, pela correlação das palavras «mãe» e «puta», como psíquico, algo próximo ao que o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi designou por «identificação ao agressor», como mecanismo de superação, ou escamoteamento, eventualmente por via do fetichismo, da culpa. É, no entanto, a vida de uma pseudo-infâmia (ele não mata homens, mas animais; não atinge senão aquela, a senhora C., que o ensandece) por que Adolphe vai enveredar, em fidelidade à imagem que da mãe o pai lhe transmite, passando a fidelidade a ser a bitola de uma pulsão de morte, em correspondência tanto ao pai como à mãe, pela permanente auto-depreciação espectacular e punitiva. O mundo diante do espelho em que se vê abjectificado: «Quando me olhava ao espelho, de manhã, não discordava por completo das minhas detractoras. Esta cabeça de aborto enjoado, quando sempre ensonado, esta pele amarelada, como se tivesse passado a noite dentro de um bacio, este tamanho ridículo que me obrigava a usar sapatos com tacões muito altos para não parecer um dos anões da Branca de Neve» (idem, 18).

À vida resta imitar a morte, mais não seja, e numa perspectiva psicanalítica, como devoção prestada aos pais que estão mortos, alcançáveis tão-só pela asserção de uma condição morta, plástica, fictícia, fetichista, ao jeito das enlutadas que vão à agência funerária, e por que Adolphe experimenta um delírio sexual ao cúmulo de uma perversão quase-escrupulosa. O ânimo não vem da morte, porque essa nada motiva, mas é a própria morte que cresce, reservado que lhe está o direito de ocupar, de evoluir e germinar para o nada, não obstante contra os Homens. Se a campa do pai se torna um local de culto a conservar, se a mãe fatalmente injustiçada é uma «puta» (precisamente por ser «mãe», em atestação da natureza cristalizada das palavras), resta agir. Nitidez e deformação coincidem na lente paranóica de um posto de observação, de uma janela no alto de um prédio frente ao cemitério, admiração que não serve mais o propósito de olhar, pois a proximidade propositiva dos homens, esse intervalo afectivo, foi subtraído por objectos postiços, desde a loucura «que podia ser contagiosa» (idem, 51), à espingarda com que Adolphe mata os animais que se aproximam da campa do pai. Agir a morte à boca de cena, repetir a morada e a vizinhança que nos cabe: «Todas as manhãs saudava o meu povo, os mortos, os meus únicos amigos, num grande gesto com a mão. Velava por eles como Deus vela pelos vivos.» (idem, 48).

  

Bibliografia:

Agamben, Giorgio. A Ideia da Prosa. Lisboa: Cotovia, 1999.

Kristeva, Julia. Powers of Horror - An essay on abjection. New York: Columbia University Press, 1982.

REFERÊNCIA:

Martinet, Jean-Pierre. A Grande Vida. Guimarães: Cutelo, 2023.