Miguel Zenha*
O primeiro dos três volumes que coligem a obra poética de Manuel de Freitas — o segundo saiu entretanto em Abril deste ano —, Levar Caminho I inclui os seguintes livros: Todos Contentes e Eu Também; BWV 244; Os Infernos Artificiais; Game Over; Isilda ou a Nudez dos Códigos de Barras; O Coração de Sábado à Noite e, finalmente, [Sic].
O tom geral destes poemas é o de um baixo-contínuo, i.e., nos seus melhores momentos, esta poesia não se confunde com quaisquer serviços mínimos ou com uma escrita em modo piloto-automático, na medida em que denota um esforço de depuração intransigente, por sua vez integrado num contexto de abdicação e rarefacção. O mundo aqui descrito é árido desde logo porque é intransitivo: não vamos para lado nenhum, não viemos de nenhum local ou dimensão que valha a pena celebrar ou sequer considerar. Desse modo, não faz grande sentido falar num «antes» e num «depois», na medida em que a realidade consiste numa superfície de tal modo impiedosa, fatídica e total que faz com que o aviso que surpreende Dante à porta do inferno se torne risível: é escusado pensar em abandonar a esperança já que ela nunca nos acompanhou. As referências a Cioran — quase sempre através de epígrafes — são assim especialmente indicativas, no caso de um cepticismo militante que aniquila qualquer intento em furar aquela depuração. É, aliás, Cioran que fornece uma ilustração adequada ao que Manuel de Freitas faz ao longo destas mais de trezentas páginas: um extenso «breviário de decomposição».
O mote é dado sobretudo pelos livros Todos Contentes e Eu Também e Os Infernos Artificiais. Na verdade, o título Todos Contentes e Eu Também condensa a toada de toda a poesia de Manuel de Freitas. Em primeiro lugar, esse «e» é adversativo ao marcar, no fim de contas, o indício de um desajuste e discrepância entre «eu» e «os outros», e, em segundo lugar, «contentes» corresponde a uma qualificação irónica e desdenhosa: a multidão está contente porque hesita entre uma inocência doentia e um cinismo mal disfarçado. É precisamente na descrição pormenorizada da aridez do mundo, dessa oposição permanente entre sujeitos — entre uma perspectiva localizada e outra universalista — que é declarada a insistência na palavra «taberna», que não é bem uma palavra nem propriamente um conceito, mas, se se quiser, corresponde ao micro-cosmos existencial da poesia de Manuel de Freitas. Como exemplos emblemáticos, refiram-se os seguintes versos: «Há tabernas assim, de/desusada melancolia para estes/tempos que correm friamente. (...) Depois, apenas sozinho regressei/a este quieto lugar de sombra» (p. 12); «Talvez viver seja isto,/isto precisamente./Um ovo estrelado com pão,/uma taberna sob impiedosa trovoada (...) e talvez viver seja isto, a cruel poesia/dos tonéis, o mármore de balcões engordurados,/este morrer/de um modo gentil» (p. 31); e, por último, a última estrofe do poema «O Crepúsculo das Tabernas»: «Abuso mais uma e outra vez dos pequenos templos/que perduram. Aproveito como posso a demora/da sentença, mas sei próximo o dia, a furibunda/manhã em que se apagarão de vez os fogos/em que mais apetecia ser lentamente devorado.» (p. 46). Seria fácil encará-las como mero refúgio, ainda para mais porque no poema «Closing Time» se fala «nesses exílios chamados tabernas» (p. 172). Mas esse é um ponto de vista precipitado, uma vez que estamos perante o tal micro-cosmos existencial, agora particularizado, do qual não se foge — até porque nem sequer seria possível fugir — e cuja importância reside no facto de ser onde se experiencia com maior detalhe e intensidade a derrocada de tudo.
A destreza expressiva de Manuel de Freitas evidencia-se também no manejo de outro dos motivos cruciais desta obra, a saber, a «melancolia», que «pode às vezes ser isto,/um modo de sobreviver ao vazio, o comovido/jeito de pôr a mão sobre o mármore da mesa/e pedir outro Martini, fresco/se faz favor» (p. 28). Ou como lemos em «Urinol», «São ruas velhas assim, onde paira/a suposição grosseira de um urinol/divino e sombrio, que nos fazem aceitar/esta voraz forma de extermínio. O nosso,/incandescente, num apogeu de melancólicas/retretes onde os insectos e bactérias do acaso/nos distraem o olhar/embaciado pelo abuso de lixívia.» (p. 85). A melancolia agudiza uma perspectiva deflacionária particular, i.e., serve de estrangulamento a propósitos e desígnios que se queiram posicionar num plano mais elevado do que o de um qualquer «urinol». Não é, por isso, sinónimo de mera tristeza, mas sinalização de uma deserção veemente face ao convencional e ao fingido.
Qualquer atitude que queira passar por distintivamente humana é vulgarizada pela «morte», rolo-compressor por excelência de toda e qualquer expectativa, de todo e qualquer gesto humano, por mais pequeno e prosaico que possa ser. A morte não anda, assim, longe de um truísmo — conclusão, declínio e desaparecimento. A sombra pesada e ubíqua da morte aparece paradigmaticamente nos versos finais de «Eggs and Sausage», incluído em O Coração de Sábado à Noite: «Não se trata de nostalgia, de qualquer/saudoso bafio. Ali, ao teu lado,/acreditava apenas no que nos faz viver/a morte.» (p. 299). Na verdade, aqui a morte funciona como comprazimento suscitado por esse truísmo: a nossa mediocridade perante a vida tem como justificação um regozijo grotesco causado precisamente pelo acenar ininterrupto por parte da morte.
O negrume de Levar Caminho I não conhece excepções genuínas aos «restos de uma festa/que nunca existiu» (p. 313), ou a este «invariável/barranco a que chamamos vida.» (p. 171). O próprio sexo é repugnante, como é constatável no poema «Purgatory of Fiery Vulvas»: «Um buraco húmido e afável onde entras/sem jeito, dir-se-ia que devagar, solenemente/—para que seja mentira/(...) Num instante te resumes/ao vómito branco que desesperado o açoita./Que depois languidamente/para nada escorre/como um trôpego verme» (p. 58). O único vislumbre de suspensão, em termos muito circunscritos, deste pesadume é a sequência meta-poética «Classificados», «TWA», «Then There Eyes» a qual, no entanto, é logo de seguida rectificada pelo poema «All You Need is Love I», título irónico que sepulta em definitivo qualquer veleidade vivificante: «E no entanto regressamos/—aos becos onde o sangue/insiste em não ser tocado e visto. (...) O amor? Não me fodam./Apenas um filme sem enredo/que já vimos demasiadas vezes/e que vai continuar a acabar mal/— como a puta da vida, aliás» (p. 267).
A poesia de Manuel de Freitas apresenta a mais-valia suplementar de descrever e recusar um tipo de poesia devedor de um programa espectacular e salvífico, bem como de um modo bonacheirão com que alguns poetas se levam demasiado a sério. Tal programa acaba por converter a poesia numa distracção de salão, numa terapia ou num guião grandiloquente. «A lírica portuguesa teria sido outra/se Camões tivesse perdido não um olho/mas dois, se Diogo Bernardes/tivesse conhecido o LSD, se Cesário/Verde não tivesse abandonado/o campo e a vida. O mundo seria o mesmo,/cercado de morte e de desamor,/pouco permeável a estéticas, sonetos/e vilancetes» (p. 150). É um ponto convincentemente endereçado: o que se defende é que a poesia pode ter certos efeitos em certas pessoas, i.e., de uma interpretação que façamos, por exemplo, de Camões não se segue de modo necessário que o mundo vá melhorar ou que passemos a ser pessoas moralmente irrepreensíveis. O que pode acontecer é que algumas pessoas que lêem Camões passem a estar dotadas de vocabulários descritivos precisos que, por sua vez, propiciam uma reconfiguração inovadora de alguns aspectos da realidade. Nesse sentido, o que Manuel de Freitas se esforça por cultivar é uma obra que não quer ser aceite, na medida em que alinha a sua taciturnidade — sabota a redução a mensagens, enjeita ser confundida com artefactos linguísticos coesos, sem que com isso, por outro lado, queira ser puramente abstracta ou inefável — com a recusa em aderir a prescrições de leitura. Estes poemas não querem ser nem quebra-cabeças gramaticais nem confissões.
A rejeição daquela versão empolada e afectada de encarar a poesia radica na crítica social implacável que atravessa o livro. Na verdade, o que sobressai é um sentimento insanável de desprezo que alimenta o tal contexto adversativo — antitético no fim de contas — entre «eu» e «os outros». Poemas como «Centro Comercial I» — onde «Agora a morte é diferente,/facilitaram-nos o desespero, a angústia/tem já ar condicionado» (p. 48) — «Centro Comercial II» — «Uma hipótese de morte com fato de treino/em fim-de-semana cheio de graça» (p. 54) — ou «Roberto Carlos» — «Escolhem os meses correctos e praticam/o acasalamento. Assim lhes ordena/a imperiosa vocação de parir — razões de Estado/a iluminarem os corpos/ (...) São felizes. Ou julgam sê-lo, arrastados/pela funda e negra angústia de quem cumpre/o insucesso dos dias» (p. 112) — dão fisionomia a essa oposição, descrevem aquela multidão anónima e alienada que hesita entre a ingenuidade e o cinismo.
Contudo, esse julgamento torna-se mais perceptível se olharmos para a ideia que Manuel de Freitas tem sobre o que é ser poeta. Àquele programa salvífico, Manuel de Freitas contrapõe a recuperação do ‘poeta maldito’, patrono da desistência como lema: «(...) um poeta/que os abutres da nação fazem questão/de aclamar» (p. 31) ou «Não vale a pena empurrar o discurso/até aos nulos e fulgurantes/limites da linguagem» (p. 97) indiciam igualmente um programa, se bem que mais velado. O poeta maldito sobrevive graças ao desprezo: «Não tenho tempo/para aprofundar desrazões, nem para conviver com puetas» (p. 98); «Bebi sempre de mais, acordo/tarde e as crianças estão longe de ser/o meu animal preferido./Detesto horários, família e obrigações./Até a partilha dos lençóis,/quando não é o amor a rasga-los.» (p. 301); «Existem, claro, raparigas louras um tanto/heterodoxas que não te apetece beijar/(...) Essas mesmas que hão-de/ um dia procriar com zelo, evitando rugas,/tumores e o mundo como representação misógina» (p. 331).
A isso se junta a insistência em determinados chavões: «Não jogamos xadrez,/ nem sequer dominó — isto não/ é Bergman, é apenas a vida (?),/ pouco dada a estéticas» (p. 105), «trocava a cultura/por um revólver barato ou por um realejo/que tocasse o Youkali até ao fim dos tempos.» (p. 191), «Eisenstein por entre a fauna coitada/da cinemateca» (p. 270), «Essência? Só se for gasolina/ (...) tenho passado bem/sem filosofia e sem emprego. Não corro/aos púlpitos disponíveis, não protesto/ — e prefiro passar fome de gin quando o restaurante/que me espera se traduz em várias línguas.» (p. 326).
Ora, o ponto não é o desprezo em si mesmo. Céline — para pegar num exemplo dado pelo próprio Manuel de Freitas, uma vez que o autor de Viagem ao Fim da Noite é homenageado em «Céline Blues» —articula o desprezo com virtuosismo: não cedendo à tentação de se exonerar dessa posição, demonstra que do facto de não ter de haver finais felizes ou redentores — como acabarão por acreditar certos partidários daquela noção de salão e indulgente de literatura — não se deduz que a alternativa seja um registo auto-centrado, testemunhando, assim, que a literatura se faz sobretudo com modos descritivos melhores ou piores e não certos ou errados. O ponto, então, é que o desprezo em Manuel de Freitas costuma resvalar para uma pose: o «eu» e «os outros» corresponde a uma proclamação na qual é predicado um deve ser que, mais do que judicativo — toda a poesia acaba por sê-lo em parte —, é sentencioso. No caso, o poeta insolente, marginal e desinteressado acaba por se colocar a si próprio numa posição de sobranceria moral perante os demais. De tanto querer ser excepcional, esta poesia acaba por ser somente a face amarga e ressentida do que deprecia. A fastidiosa insistência nos referidos lugares-comuns reforça a ideia: a condenação de um conhecimento mais reflexivo e sofisticado mostra-se aqui cansada e previsível.
Claro está que, por exemplo, «a essência» não é um tópico que tenha de ser discutido apenas em tratados filosóficos: a solenidade ganha em ser debatida, um assunto ganha em exorbitar coutadas mentais ou disciplinas estanques, mas tal dificilmente acontecerá com recurso à auto-complacência — se se quiser desconstruir ou desafiar, mudar de conversa é preferível a perpetuar clichés. Se em Herberto Helder se quer «dizer como tudo é outra coisa», em Manuel de Freitas diz-se quase sempre como «tudo é a mesma coisa». E essa mesmice, dada através de um napalm descritivo, quando acontece não consegue refrear uma jactância mal digerida, e que constitui o aspecto mais desinteressante desta obra. Apesar da agilidade em manobrar motivos, tropos e analogias não ser, de modo algum, negligenciável — e poemas como «All the Stars Are Dead Now», «Rua dos Poços dos Negros, 1989», «Déracinement», «El Salsero», «E o Frio de Novembro Era Igual ao Coração», «Solar dos Perús» ou «BWV 988» demonstram-no — não é menos verdade que Manuel de Freitas, em vez de «virar as mesas» e partir para um processo crítico contíguo ao mundo e aos outros, escolhe demasiadas vezes cruzar os braços à realidade, optando pelo caminho mais fácil da indiferenciação genérica, ainda para mais sustentada por um excepcionalismo bastante discutível. O «urinol» está, por isso, longe de ser assim tão prosaico ou despretensioso.
*Doutorando financiado pela FCT (SFRH/BD/143281/2019). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: miguel17@edu.ulisboa.pt.
REFERÊNCIA:
Freitas, Manuel de. Levar Caminho I. Lisboa: Averno, 2022.