Telmo Rodrigues

No Apêndice C de Os Livros de M. S. Lourenço, de João Dionísio, reproduz-se «o catálogo da exposição dedicada aos livros de M. S. Lourenço, que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa […] nos dias 4 a 21 de maio de 2011» (p. 163). Entre os itens catalogados encontra-se o recorte de um jornal alemão onde se lê:

«Eu sou completamente elitista», diz Vivienne Westwood. A uniformização é-lhe simplesmente desagradável. O look de tempos livres típico do presente é apenas, segundo ela, «algo para idiotas hiperactivos sem gosto». Ela procura alternativas. (p. 179)

Este recorte encontrava-se no interior do livro catalogado com o número 31 (Reitlehre von Heute: eine Schule in Briefen, Waldemar Seunig), onde se podia igualmente encontrar um outro recorte com a imagem de uma cavaleira.

O interesse de M. S. Lourenço pelo hipismo parece ter crescido a partir dos anos oitenta, como documenta João Dionísio, com referência aos livros sobre o tema adquiridos por M. S. Lourenço a partir dessa altura. De igual modo, o interesse pela moda poderá advir de uma alteração ocorrida em 1981, momento a partir do qual dão entrada na biblioteca de Lourenço alguns livros sobre dandysmo: «[…] a mudança de visual no aspeto de Lourenço […] ocorreu em dezembro de 1981. Sem aviso prévio: deixa de usar barba e bigode, passa a vestir-se formalmente com raffinement (e no ano seguinte abraça a militância no Partido Popular Monárquico)» (pp. 59-60). Estes dois interesses, a equitação e a aparência, são identificados como pertencendo a uma última fase da vida intelectual de Lourenço definida pelo próprio nos seguintes termos: «Um último segmento de novo na Europa, na paisagem os Alpes Austríacos, onde realizei a minha utopia musical e escrevi a seu propósito os primeiros esboços de Os Degraus do Parnaso» (p. 58). O livro onde se encontrava o recorte de jornal sobre Westwood foi adquirido em 1991 (p. 60).

Estas conclusões e correspondências são feitas pela análise de Dionísio à biblioteca de Lourenço, doada à Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa pelos filhos. É a partir dos volumes desse acervo, da marginália nele contida e das marcas de leitura que Dionísio esboça uma evolução intelectual de Lourenço, identificando em vários períodos interesses particulares a partir dos livros que vão dando entrada na biblioteca, descrevendo em simultâneo os ambientes intelectuais pelos quais se moveu Lourenço nas últimas décadas do século XX. Um dos capítulos, por exemplo, centra-se nas dificuldades de M. S. Lourenço em obter bibliografia enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, documentando-se não apenas a parca disponibilidade de materiais de investigação em Portugal nos anos sessenta, como a própria dificuldade em obter esses materiais nas bibliotecas ao seu dispor em Oxford, para onde se deslocara para prosseguir os estudos. A análise da biblioteca é aqui complementada pelos relatórios dos seus orientadores e da própria Fundação, compondo-se também um retrato da evolução do estudo da lógica matemática e da filosofia da matemática que Lourenço escolhera estudar. As debilidades intelectuais de Lourenço nesta fase, identificadas em relatórios dos seus orientadores, são rapidamente ultrapassadas com o acesso a fontes bibliográficas que lhe não estavam anteriormente disponíveis, como atesta o seguinte comentário de Michael Dummett, um ano após a sua primeira avaliação do bolseiro: «In the process he has transformed himself into someone with a reasonable degree of philosophical sophistication, in contrast to the enthusiastic naivety he displayed at the beginning» (p. 96).

Poderia supor-se que um livro como o de Dionísio conteria respostas para um conjunto de problemas filosóficos levantados pela obra de M. S. Lourenço, mas a análise cuidada e precisa que faz ao acervo doado limita-se a apontar para relações que, não sendo mais «instrumentais para este fim do que outras coisas (conversas, filmes, passeios)» (p. 152), não deixam de dar a conhecer melhor o autor sobre o qual se debruçam. Esta é a conclusão do próprio Dionísio sobre o seu trabalho, retirando aos livros o peso «instrumental» que a eles normalmente se atribui, fazendo com que a virtude maior desta obra seja precisamente a de deixar em aberto que a partir dela outras relações possam ser estabelecidas. O pequeno recorte de Westwood, por exemplo, ecoa na perfeição a descrição de Frederico Lourenço do pai, num dos textos de O Lugar Supraceleste, a propósito de uma cadela a que deram o nome de uma personagem de um livro de Max Beerbohm:

Ao fim de dois dias de lidarmos com a incompreensão de toda a gente que nos perguntava o nome da cadela decidimos mudar o nome para algo mais corriqueiro. Foi aí que interveio o meu pai. Numa reacção tipicamente M. S. Lourenço, o meu pai disse-me que era uma «perfeita estupidez» ceder à ignorância e à incultura alheias, isto em tons tão veementes que, aterrado, respondi logo «pronto pronto: fica Thisbe». E assim ficou. (p. 233)

A intransigência face à ignorância alheia e a determinação em não fazer concessões perante esta são, como facilmente se pode inferir da obra de Dionísio, uma marca intelectual de Lourenço. Não será de estranhar, pois, que numa passagem anterior do mesmo livro, Frederico Lourenço descreva a evolução intelectual do pai como um progressivo abandonar de tudo o que seja supérfluo da poesia, mas também de tudo o que considerava acessório à filosofia, incluindo, necessariamente, as modas e os interesses que proliferavam no mundo académico:

O jovem poeta-filósofo (que aos 13 anos já lera Kant e Goethe em alemão) foi deixando cada vez mais que a filosofia se sobrepusesse à vocação poética e a própria filosofia começou cada vez mais a ser entendida em termos quase caricatamente reducionistas. Lógica Matemática. Era isso. E mais nada. (p. 42)

É por demais evidente que a obra de um autor pode facilmente ser iluminada com o conhecimento dos livros com os quais se rodeou, mas a sensibilidade de Dionísio não permite que esta ideia básica se extinga numa mera catalogação desses livros: há uma atenção aos detalhes que, mais do que descrever um conjunto de títulos que podem ou não ter tido influência na produção literária de M. S. Lourenço, descreve uma maneira de viver que será, em muitos momentos, intelectualmente mais reveladora do que putativas relações académicas entre volumes de uma biblioteca.

Livros citados:

Lourenço, Frederico. O Lugar Supraceleste. Lisboa: Cotovia, 2015.

REFERÊNCIA:

Dionísio, João. «Os Livros de M. S. Lourenço. Lisboa: Imprensa Nacional, 2023.