Sara de Sousa*

Outros Celtas: Celtismo, Modernidade e Música Global em Portugal e Espanha, publicado em dezembro de 2022 pela Tinta da China, surge como uma simbiose necessária entre etnomusicólogos e antropólogos, na sua maioria membros do projeto de investigação «O Celtismo e as suas repercussões na música da Galiza e no Norte de Portugal».[1] Sendo fruto desse trabalho, esta cuidada edição bilingue vocaliza o seu propósito, nomeadamente, o de ampliar a consciência do celtismo além do áxis arqueológico, através da sua influência como intercâmbio comercial e vetor identitário dentro da Península Ibérica.

Após uma breve introdução conceptual, «Celtismos Ibéricos» estabelece as bases antropológicas para um entendimento das teses celtistas do Rexurdimento galego, ainda que sempre sustendo uma postura prudente perante elementos musicológicos baseados em «evidências formais bastante fracas» (40) e pontos de contacto «magros ou praticamente inexistentes» (66). Numa análise comparativa entre Portugal e a Galiza, António Medeiros acrescenta a estas considerações as predileções etnogenealógicas de Portugal pela tese lusitanista, que inevitavelmente confrangeram o impacto do celtismo na intelligentsia novecentista e nas táticas pedagógicas do princípio do século XX. Estas apreciações abrem caminho à reinterpretação globalizante do celtismo durante a segunda metade do século passado, transcendendo a marcação diferencial regionalista em direção a um «trampolim comercial» apolítico (53) — e, numa roda-viva contra esse abismo que é o porvir, o que podemos concluir sobre o seu esgotamento recente como chavão lucrativo.

A segunda parte, «Gaita-de-Fole, Música Celta e Identidade», visa explorar o uso da(s) gaita(s)-de-foles como instrumento de estatuto totémico elusivo. Aqui, Calvo-Sotelo propõe alguns aspetos curiosos que trazem a gaita à ribalta dos celtismos ibéricos: o seu vigor acústico ao ar livre é uma qualidade imediatamente presumível, mas é igualmente necessário recordar outros modos de fomentar ligações afetivas, como a sua ubiquidade no registo — o baile, mas também (e por que não?) a marcha solene — e a relativa facilidade na construção e na transformação dos materiais autóctones acessíveis in viva manu; não é estranho, parece-me, que algo aflorando das nossas próprias mãos se nos assemelhe tão prontamente íntimo. Ademais, o capítulo instrui-nos sobre a gaita enquanto ícone político-emblemático, que sobreviveria além da extinção do Franquismo, como é notório aliás pela conhecida «guerra das gaitas» a partir da década de 1990.[2] No cenário contemporâneo, contudo, é de sublinhar que se procurou superar dicotomias valorativas de suposta baixa cultura e vínculos pícaros vergonhosos (125; ênfase minha) e, naturalmente, a riqueza de repertório (principalmente orquestral) que pôde florescer desta reinterpretação.

A terceira parte do volume sustém o registo de estudo de caso, agora dissertando sobre a história de festivais celtas célebres no espaço ibérico. Numa primeira abordagem, Freitas Branco e Alarcón-Jiménez relatam o Interceltique de Lorient e do Festival Internacional do Mundo Celta da Ortigueira como espaços não meramente de virtuosismo musical, mas também de esbatimento de fronteiras psicológicas entre o intuitivo e o académico, o comercial e o colaborativo, o doméstico e o partilhado — esteados pelo capital simbólico das cantinas, das escolas e das bancas de venda, onde intelectuais «orgânicos», como druidas ressurgindo, se atarefam num exercício de mediação que, nas palavras do diretor Lisardo Lombardía, já não é de «saudade, mas sim de recriação, de formulações contemporâneas» (216).[3] Já Castelo-Branco insere o Festival Intercéltico do Porto numa política de renovação urbana e cultural do Porto da década de 80, atribuindo à progressiva escassez de apoios e à mudança da política camarária a extinção deste festim.[4]

Por fim, «Horizontes Celtas» cumpre a função de capítulo de desfecho na busca por uma «antropologia do futuro» (312). O capítulo de Paula Godinho oferece uma leitura carismática, caminhando entre um tratamento literário desta «tradição inventada» no romance L'affiche rouge (2007), de Mario Regueira, e um estudo dos costumes da Festa das Adegas de Mandín, em muitos aspetos semelhantes ao que observamos na cultura veranil da Coimbra aldeã. Aqui se encontra, penso, uma definição basilar a todo o volume, um «passado imaginado» em que impera «uma cacofonia identitária que funde magia, neotrovadorismo, saris, brincos, noivas hindi, drogas, ser hippie, negociar artesanato e vender objetos de pele pelas feiras» (317).

Precisamente graças a esta babel simbólica, o discernimento do escopo deste volume passa inevitavelmente pelo conhecimento das categorias propostas por Michael Dietler (2006), uma terminologia útil que os editores evocam com grande pertinência na Introdução: celtismo, a procura consciente por uma reinscrição na memória coletiva emergindo de uma particular configuração político-ideológica; celticidade, a ligação espiritual como fim último, uma abstração apartada de entendimentos raciais; por fim, celtitude, descrevendo uma conexão transfronteiriça alargada, essa métissage cambiante apontada à sonoridade multimodal de Alan Stivell.[5]

Porque o volume contempla as três aceções, descobrimos, então, que o celtismo é uma categoria instável, caleidoscópica e, ainda assim, paradoxalmente redutora perante a realidade material e musicológica das regiões, com particular impacto no património galego; nesta lógica, destaque-se o comentário de Vasquéz sobre «padrões de rejeição» de formas locais em privilégio de aproximações acríticas a elementos exógenos à galeguidade. Noutros casos, como o português, esta apropriação revela-se mesmo inautêntica, buscando, por exemplo, testemunhos de ancestralidade equívocos em determinados fenótipos, como a pele clara e os cabelos arruivados (69). Por estas razões, e com lucidez, António Medeiros conclui que este panceltismo pode revelar-se impermeável à historiografia, «uma “mentira” (etno)genealógica (...) [que] ganhou uma eficácia duradoura» (77; vd. 301).

A prudência partilhada pelos autores relativamente a equívocos históricos é certamente proveitosa no desmantelamento de fantasias iconográficas, essa paisagem feérica de brumas e druidas de longas barbas. Porém, determinismos binários são não raras vezes antagónicos a um exercício antropológico adequado. Por isso, o âmago de uma análise bem conseguida — e este é claramente o caso das contribuições compondo Outros Celtas — conserva-se no reconhecimento de uma fluidez transhistórica e transnacional de modos de criação, e especialmente na urgência com que

alguns velhos tópicos devem ser reinterpretados de modo a continuarem a ser operacionais: tal sucede com a mania da «pureza», a obsessão pelas origens ou a funcionalidade legitimadora que, a partir do racismo, implicava o discurso em torno do celtismo; estas características do discurso devem ser substituídas por outras, portadoras de valores mais abstractos, menos etnicizantes e em consonância com a demanda de um discurso próprio da retórica da globalização. (53)

Entre outras virtudes, o volume prima também pela abundância e diversidade de informantes. De facto, um trabalho tão abrangente permanece, de algum modo, atento às sensibilidades emocionais dos grupos regionais — é então premente relembrar como Dulce Simões transcreve o júbilo de um jovem gaiteiro de Aveiro pela participação num festival ibérico, vendo-se como que emancipado da sua esfera local:

Não quero inferiorizar a nossa banda [Banda de Gaitas de São Bernardo], mas, em Ourense, há muito entusiasmo. As músicas são muito difíceis, com um grande grau de dificuldade técnica (...) [É] outro nível, muito à frente. (181)


Seguindo esta tonalidade, o tom quase jocoso de Medeiros perante os festivaleiros de Ponte da Barca jamais desliza para a superficialidade, aproximando-se sempre ao discreto bulício do dia de montagem e graciosamente atentando a todo o instante ao modo como estes eventos, através de confluências de solidariedade comunitária, afetam os ecossistemas comerciais e sociais de regiões assoladas pela emigração e pelos êxodos estudantis. Um festival é, sem sombra de dúvidas, uma construção musicológica e um artefacto económico da sua era, mas é também o trabalho de verão de um jovem, o ganha-pão de um produtor de sabonetes caseiros e um feliz pretexto para uma caneca de cerveja.

Amélia Muge na 5ª edição do Festival Intercéltico do Porto, Cinema do Terço, 1994. Mundo da Canção.

Assim, e nunca desdenhando os pareceres desenvolvidos, acrescento que seria de grande interesse a inclusão de maior especificidade na descrição morfológica dos instrumentos e suas variantes em trabalhos futuros. Claras exceções a isto surgem nos pertinentes comentários de García-Floréz quanto ao debate entre o tradicional e o solene; mais concretamente, quando reflete sobre a corporalidade normativa das bandas solenes e a afinação das gaitas asturianas para Si bemol, que aproximava o instrumento aos modelos Great Highland, corroborando assim um estatuto psicológico de solenidade (e, por consequência, dignidade) (128). O interesse destes esforços de desfolclorização, ou fugas de uma esfera caótica local para alcançar um límpido alheio, um espaço simbólico que se imagina como universalizante, reside na maneira como propriedades morfológicas aparentemente neutras podem ilustrar tensões biopolíticas latentes.[6]

Mesmo no seu prognóstico de um celtismo axífugo, Outros Celtas confere uma vitalidade renovada a esta corrente, agora adequadamente apresentada no seu contexto ibérico. Diz-nos, então, um gaiteiro anónimo português sobre essa estranha forma de vida que é a celta: isso é «coisa do século XIX» (329). Sê-lo-á mesmo?


Nota: a autora escreve conforme o Acordo Ortográfico de 1990.


*Bolseira de Investigação do Programa Novos Talentos da Fundação Calouste Gulbenkian e estudante de mestrado no programa de Literaturas, Artes e Culturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


[1] Projeto PTDC/EAT-MMU/114263/2009 do INET-md (Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança), sediado na Universidade Nova de Lisboa. Vide website de apresentação: http://www.inetmd.pt/index.php/investigacao/projetos/620-o-celtismo-e-as-suas-repercussoes-na-musica-na-galiza-e-no-norte-de-portugal.

[2] No capítulo de Calvo-Sotelo, vide a menção à polémica no programa televisivo Luar de 13 de Dezembro de 2013, em que se alude à gaita marcial de um concorrente como um «cancro da música galega» (105).

[3] Vide Antonio Gramsci, «The intellectuals». Prison Notebooks. Volume II, editado e traduzido por Joseph A. Buttigieg. Columbia University Press, 1996. O intelectual orgânico confere «homogeneidade» e «consciência de função» ao grupo social na esfera da produção económica (199).

[4] Não rebatendo as críticas de descaracterização cultural apontadas a uma reestruturação tão célere do ecossistema da cidade, recordo ainda como o FIP era particularmente apreciado pela sua transverberação: a sua pluralidade prévia aos cortes orçamentais ocasionava tanto ciclos de conferências académicas como mostras de pastelaria bretã (vide Castelo-Branco 269).

[5] Vide Michael Dietler, «Celticism, Celtitude and Celticity: the consumption of the past in the age of globalization», Celtes et Gaulois dans l’histoire, l’historiographie et l’idéologie moderne. Actes de la table ronde de Leipzig, editado por Sabine Rieckhoff, Centre Archéologique Européen, 2006, pp. 237-248.

[6] Um informante explica: «Não sei se é uma questão de harmónicos mais agressivos (...) [A gaita aguda afinada em Dó] não tinha cor. As pessoas na rua percebiam isso perfeitamente (...) [A banda marchava como] uma jaula de grilos.» (136; tradução minha).

REFERÊNCIA:

Castelo-Branco, Salwa El-Shawan, Susana Moreno-Fernández e António Medeiros (Eds.). Outros Celtas. Celtismo, Modernidade e Música Global em Portugal e Espanha. Lisboa: Tinta da China, 2022.