Rodrigo Cruz Silva

A frase «Um dia saberemos porque vivemos e porque sofremos» sobressai no filme mais recente de Pedro Costa[1] e poderia ser escutada em qualquer uma das suas obras. Em As Filhas do Fogo, em vez da entoação recalcada das figuras do bairro das Fontaínhas, ouvimos a toada de três actrizes-cantoras[2] acompanhada pela melodia do ensemble Os músicos do Tejo. Os nove minutos desta curta-metragem musical abrem a porta a um género muitas vezes associado a uma técnica opulenta ou expositiva. No entanto, Costa, com o refreamento que habitualmente aplica à imagem e à palavra, lima sobriamente a música para criar um quarto escuro ainda mais enigmático.

O formato 4:3, característico dos filmes anteriores de Costa, cede lugar a uma tela dividida em três faixas, cada qual albergando um espaço diferente e uma das irmãs separadas pela erupção de um vulcão. O tríptico projecta a separação, enquanto a música cantada pelo trio partilha a tragédia que lhes é comum. As preces e histórias, que antes se ouviam nas ruas e barracas das Fontaínhas, são agora revestidas por um canto que suspira as desgraças de quem permanece nas sombras. São estas recitações cantadas que orientam o nosso olhar, que fazem com que a melodia de um lamento anteceda a variação de um gesto ou de uma luz.

Quando se fala sobre Pedro Costa a conversa é muitas vezes desviada para o que é ou não é o realismo; essa discussão é ainda menos interessante num filme que revela, mais do que os outros, os seus artifícios. A parede digital com cores lávicas que acompanha a caminhada da cantora da esquerda, o contraste expressionista entre o horizonte esbraseado e as cinzas que servem de cama à irmã do meio, e o olhar da terceira irmã dirigido à câmara, prolongam o espaço que o realizador português tem vindo a criar, onde o deslumbramento de cada plano alumia o que Ventura apregoou em Vitalina Varela: o medo de se perder a fé na escuridão. O que se ouve e o que se vê neste e nos outros filmes de Costa reflecte a tensão que sustém a coexistência de uma história triste com uma imagem bela.

A certo momento, as três heroínas cantam uma acusação: que nos vamos esquecer das suas caras. Talvez o façam para sugerir o quão esquecível é o sofrimento dos outros, à semelhança do que acontece quando vemos os telejornais ou saímos à rua. Mas, por outro lado, a nobreza e o vigor que Costa capta nas figuras dos seus filmes é partilhável com a epicidade universal dos personagens representados por John Wayne ou por Chishū Ryū, uma vez que há algo de austero e de imperecível em todas estas caras. Tal como vi em Vitalina uma Penélope que esperou por um Odisseu que não regressou, vejo aqui, além de As Três Irmãs de Tchekhov[3], três troianas despojadas e prisioneiras de um destino trágico que se confunde com uma ilha que foi paraíso e agora é inferno.

A Ilha do Fogo emerge como um ponto de partida e um destino na obra de Pedro Costa: foram os habitantes que o realizador conheceu na ilha cabo-verdiana, durante a rodagem de Casa de Lava, que lhe deram a conhecer, através de cartas por enviar, os familiares e amigos que viviam nos bairros mais marginalizados de Lisboa. O início da revelação dos espaços e das pessoas que viriam a ocupar o trabalho do realizador ocorreu numa ilha que continua, até hoje, a ser uma sombra indelével que paira em todos a sua filmografia. Depois de se representar o fogo e a tragédia de uma ilha vulcânica, este tríptico musical é epilogado com o silêncio de filmagens documentais dos habitantes e do vulcão da Ilha do Fogo, captadas por Orlando Ribeiro após uma erupção na década de cinquenta. A memória de um vulcão e das suas gentes resilientes não foi apenas um cenário de uma das suas obras; é um protagonista tácito que ecoa no silêncio e, agora, na música dos seus filmes.

[1] Estreia nacional no LEFFEST – Lisboa Film Festival, numa sessão do ciclo «Quartos do Realizador», dedicado a Pedro Costa. Cinema Nimas, Lisboa, 16 de novembro de 2023.

[2] Alice Costa, Karyna Gomes, Elizabeth Pinard.

[3] Algumas das frases cantadas pelas actrizes foram adaptadas da peça do dramaturgo russo.

REFERÊNCIAS:

Costa, Pedro, realizador. As Filhas do Fogo. Clarão Companhia, 2023. 9 min.