Miguel Zenha*

Levar Caminho II prossegue a reunião da poesia de Manuel de Freitas, indo desta feita de Levadas (2001–2002) a Estádio (2007). Comece por dizer-se que se confirma a ideia de que esta poesia dificilmente poderia estar mais longe de, se se quiser, querer transfigurar o quotidiano ou a realidade. Na verdade, Manuel de Freitas reputaria de risível qualquer tentativa em transfigurar o que quer que fosse. Daí não haver lugar a experimentalismos linguísticos — é também notória a contenção metafórica — numa poesia assente numa noção elementar e trivial de experiência. Não são, de resto, observáveis grandes manifestações de desobediência e angústia, nesta que se pode considerar uma escrita que funciona sobretudo enquanto decomposição desapiedada.

Assinale-se, contudo, que Levadas e parte de Beau Séjour, os dois primeiros livros de Levar Caminho II, são peculiares. Em primeiro lugar, são livros marcados por episódios familiares ocorridos na infância e adolescência o que, em segundo lugar, lhes confere um registo longe da intransigência. Numa poesia que tem por hábito desconsiderar o mínimo vestígio de inquietação, olhe-se para a variação trazida pelo primeiro poema de Levadas: «Há um pai que não encontra/a bota, o primeiro indício/do desespero (outros, tantos/mais, virão) — enquanto as levadas/correm, correm para a paisagem/subitamente extinta e um pé,/descalço, repousa nos rochedos./Tinhas três anos, na Calheta./Começava, só para ti, o fim do mundo.» Nesse filho que toma pela primeira vez consciência do «fim do mundo» através da fragilidade do pai não se detecta desdém, i.e., terceiros não suscitam o desapreço usual em Manuel de Freitas. O «fim do mundo» de que aí se fala gera na verdade uma certa empatia. Ao «desespero» do pai liga-se intimamente o «fim do mundo» do filho; na verdade, este deriva daquele e seria por aí que caberia falar em verdadeiro parentesco, ou seja, a ligação íntima em causa depende do reconhecimento de uma fragilidade.

Existem mais exemplos dessa empatia em Levadas. «‘À Rambóia não vou’— começava/a canção na guitarra com que outro tio/celebrava bodas, enterros e aniversários./Um laborioso roteiro da morte/ (...) Também as mãos do tio perderam/a memória. Aguarda na velha cadeira/de vime o último sono, o fim da música», consiste na enunciação sóbria de uma certa decadência. O mesmo apreço discreto e reflectido é observável nos versos: «Mariazinha. Esquecia-se de comer,/regressava devagar à tristeza/feliz da infância. Mas todas as manhãs/vinte ou mais gatos recebiam das suas mãos/um prato de leite, distantes afagos./Era a tia mais calada,/envolta no brando mistério/de não haver mistério,/como diria um poeta/de que nunca ouviu falar./Teria opiniões? Não sei;/apenas os gatos lhe escutavam a cerrada pronúncia insular». Acrescente-se um poema no qual surge uma forma benevolente de despedida: «(...) Andei nesses barcos tristes, ouvi/a alegria fúnebre das crianças,/enquanto as estrelícias se despenhavam/da janela breve em que te amei, suponho/ (...) José, o fazedor de santos, não/cabe já neste poema,/Barcos o levaram e não trazem nunca./Por isso, cospe no crepúsculo,/enrola outro cigarro./É tudo o que temos, nesta noite/acesa que nos cerca/—e que não volta, repetida/para esmagar a voz/com que disse tanto mar».

Nesse sentido, não me parece indefensável encarar alguns poemas da secção «J.S.Bach, Adagio (BWV 1039)» de Beau Séjour como dando continuidade ao registo tolerante de Levadas. Um poema como «Liceu Sá da Bandeira, 1998», que corresponde a um tributo a Joaquim Manuel Magalhães, reafirma a aptidão de Manuel de Freitas em denunciar quem quer fazer da poesia uma carreira, i.e., poetas caracterizados por uma «clamorosa/insignificância em que me pareciam comungar/os malabaristas de escola, os secos/& institucionais». Sugere-se, na verdade, que uma dimensão ética é indissociável de escrever poesia. Mas mais revelador será «Café do Hortelão II»: «(...) O café, pequena taberna, já só abre/à tarde, por algumas horas, obedecendo/mal, como pode, à tirania do hábito (sempre foram muitos anos)/ (...) Uma vez faltou a luz e ficámos/toda a noite em silêncio de La Tour,/encostados a um candeeiro de petróleo./Doutra vez faltou a vida,/senhor Hortelão, a vida. Quem/pudesse pintar a ausência.» Destaque-se o contraste entre a perspectiva prosaica da estrofe em que se fala num «candeeiro de petróleo» com a perspectiva metafórica da «vida», contraste que dá conta do que mais se pode aproximar, em Manuel de Freitas, de um lamento — «Quem/pudesse pintar a ausência». «Pintar» decorre da referência a Georges de La Tour mas esses versos poderiam também ser vistos como apelo dirigido à capacidade de descrevermos a «ausência». Parece-me que esse apelo, que surge nos últimos versos do poema, é um convite à descrição de coisas que julgaríamos indescritíveis. Querer descrever «a ausência» significa querer escrever sobre isso, significa que apesar de não se afirmar que seja possível fazê-lo, se deseja, todavia, que assim fosse. Contudo, o ponto crucial é que não é aí ridicularizada uma debilidade congénita que pudesse impedir a poesia de interpretar acontecimentos ou sentimentos como «a ausência».

Ora essa vontade de mudança, manifestação assinalável de uma insatisfação relativamente a um certo estado de coisas, colide com uma escrita que não se cansa de festejar a inutilidade, tida por caricata, da própria poesia. Trata-se assim de uma pequena ressalva num horizonte generalizado de condenação e fracasso. Com efeito, Levar Caminho II — como de resto Levar Caminho I — compraz-se nessa ridicularização. A título exemplificativo: «Um poema, melhor ou pior, em nada/contribui para nada» — («Cervejaria Leirião»); «a gata, entre livros e livros/que terá a sorte de não ler.» («Largo da Misericórdia»); «Os poemas,/esses, pouco ou nada valem.» («Cretcheu Futebol Clube»). Se a questão fosse acerca de utilidade ou fim, a perspectiva de Levar Caminho II encontrar-se-ia justificada, e assim entenderíamos versos como «É inegável que um churro ou uma imperial/são muito mais necessários do que qualquer soneto» («Antes do último comboio»). Ora, em Manuel de Freitas tais invectivas costumam resultar de uma intenção deflacionária generalizada. Quando lemos «Até porque não há/diferença nenhuma entre o Sporting/Clube de Portugal e/os Sonetos a Orfeu de Rilke» («Orfeu Sentado») estamos, infelizmente, mais perto de algo a que poderíamos chamar mesmice do que da defesa da tese de que a arte e outras coisas não são mundos totalmente à parte. A alternativa a quem leva demasiado a sério a poesia — e de facto considerar que um «soneto» é mais útil do que «um churro» é descabido — dificilmente passa por adoptar um desdém duvidoso.

Talvez Manuel de Freitas quisesse, e bem, firmar a especificidade da sua poesia na seguinte petição de princípio: «Mesmo sem o consentimento de Yorick, poderia/fazer desta cidade a minha prática: reino do álcool/onde se acorda tarde, de frente para a morte.» («Ciaccona»). Apesar de ser uma poesia regularmente contida, não é menos verdade que a espaços — os melhores — a morte funciona em Manuel de Freitas como palavra especialmente ambivalente: nem sempre a morte é apenas, nem sobretudo, término físico ou extinção, mas antes tropo ou figura do pensamento contingente. A esse respeito, refira-se «Tem agora, à falta de melhor, o pânico/destes versos, um abraço que parou na morte,/uma entediada fotografia de infância» («Boletim Salesiano»); «tão-só a certeza de não haver,/a esperar-nos, um pai abandonável,/mera carícia de pó/folheando o evangelho» — («Junghanel, 2000»); ou poemas como «Alto de São João», «Central da Praça das Flores» ou «Bladin (Remix)». «Acordar de frente para a morte» acontece quando Manuel de Freitas recorre, porque não dizê-lo, a um certo lirismo, sinal de uma habilidade que transforma a relação com a morte numa atitude ou disposição.

É, porém, raro que Levar Caminho II «acorde de frente para a morte». Adopta-se a referida e discutível deflação despótica, por sua vez sustentada numa ideia de excepção mal disfarçada: em vez de tonalidade ou nuance, a morte sinaliza habitualmente um maneirismo associado a uma inferiorização indiscriminada da poesia. Por outras palavras, Levar Caminho II, em vez de «acordar de frente para a morte», usa em muitos casos a morte como disfarce para investidas meta-poéticas auto-indulgentes: «‘Tem poemas fixes’, foi o seu único/comentário, talvez o que de todos prefiro,/tão distante do esterco dos jornais», lê-se em «Segunda Classe». Talvez um certo tipo de poetas viva de consagrar uma depreciação simulada e apenas virada sobre si própria, espécie de beatitude auto-concedida que não consegue afastar uma sensação de excepcionalismo. Nessa medida, creio que o melhor Manuel de Freitas é aquele que prescinde de celebrar o fracasso. Mas note-se, claro está, que defender que esse tende a ser o melhor Manuel de Freitas não implica defender que a poesia tem necessariamente de ser exultante ou remidora para ser interessante; implica simplesmente defender que Manuel de Freitas costuma ser melhor a descrever formas de empatia do que a enaltecer o desdém. Sobre crítica social e poesia, e para escolher um poeta contemporâneo do autor, refira-se José Miguel Silva — estou a pensar em Erros Individuais, Movimentos no Escuro e Ulisses Já não Mora Aqui — uma vez que se trata de uma poesia que apresenta uma crítica social veemente e consistente. A poesia de José Miguel Silva é até politicamente mais empenhada do que a de Manuel de Freitas, sem que com isso, por outro lado, se desobrigue a si mesma. Dito de outro modo, por mais que Manuel de Freitas aparente esforçar-se por estar incluído no desprezo existencial geral que vai criando, parece que está, na verdade, a tentar sair-lhe ileso. Assim, Levar Caminho II, bem como Levar Caminho I — pode aliás afirmar-se que o autor escreve um longo e mesmo livro que se vai tornando cada vez mais previsível — prestam-se frequentemente a ilustrar a suprema ironia do poema de Mário Cesariny: «Vamos ver o povo/Que lindo é/Vamos ver o povo./Dá cá o pé./Vamos ver o povo./Hop-lá!/Vamos ver o povo./Já está».

*Doutorando financiado pela FCT (SFRH/BD/143281/2019). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: miguel17@edu.ulisboa.pt.

REFERÊNCIA:

Freitas, Manuel de. Levar Caminho II. Lisboa: Averno, 2023.