João Maria Carvalho

Quem é esta que sobe do deserto, encostada ao seu Amado?

Cântico dos Cânticos

 

Hoje nasceu uma voz no início dos tempos. Nasceu na Catalunha de todos os lugares da Terra. Tem um nome em todas as línguas e em língua nenhuma. Lau Noah. A nossa boca abre-se quando o pronunciamos. É toda vento. As consoantes são poucas, e servem apenas a impulsão do sopro, prolongado no «h» final.

Nome de fábula, Lau Noah, algures entre a fada, a ninfa ou a feiticeira. Ser fabuloso e, no entanto, insubmissamente real, carnal, humano. Aprendeu sozinha a tocar guitarra, o que apenas acentua o seu mito. Escutando-a, temos a impressão de que as suas canções nasceram do interior das flores, ou do interior da terra. Ou de que então se precipitaram do céu, tão naturalmente como a chuva.

Si te vas mañana
Bajo el calor de este sol tibio
Lloraré seis lágrimas de amor
Y una de alivio.[i]

Lau Noah faz canções como se nunca tivessem existido canções. Ao mesmo tempo, o contraponto entre as cordas da guitarra e as cordas da sua voz conta-nos, de fio a pavio, a história da música, das monodias religiosas às fugas barrocas, da métrica primitiva ao verso contemporâneo.

Há calendários antigos que tocam calendários novos. O calendário de 2024 é exatamente igual ao de 1996, e certamente a outro bem mais atrás no tempo, e a outros bem mais à frente nos séculos. Em 2024, Lau Noah compõe na intersecção dos calendários.

Os espaços também coincidem. O sul espanhol cruza o norte germânico e anglo-saxónico, as cantigas rurais o jazz das cidades. As palavras tanto atingem a força narrativa e fabular dos irmãos Grimm ou de Yeats, quanto a limpidez de uma toada popular de Lorca.

If a tree falls in love with a river
’cause the sun makes her golden and bright
Can the tree understand and forgive her
for the darkness she carries at night?[ii]

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Debajo de la almohada
Me encontré una luna de luz clara
Dice ser la dueña de mi cama
Pregunté, la llaman soledad[iii]

Dona de uma invulgar essência de oficina, Lau Noah faz canções como quem trabalha a madeira, a matéria simples e bruta da realidade. Em seu jeito artesão, convoca para junto de si a comunidade. Lau Noah não está sozinha em nenhuma das suas canções. As canções são confirmadas pelas vozes de outros. É o exemplo mais alto de uma geração de cantores que recusam separar-se, apesar das fronteiras físicas – Gaby Moreno, Chris Tille, Silvia Pérez Cruz, Jacob Collier, Ángeles Toledano, Shai Maestro, Jorge Drexler, Salvador Sobral, Cécile McLorin Salvant.

Este álbum nasce da simplicidade de quem se senta com outro para cantar. É um álbum de duetos. Lau Noah chamou-lhe, tão-só, A Dos [A Dois]. Síntese perfeita de um princípio da realidade. A canção, como toda a experiência humana, é sempre a dos. A duas vozes. A duas cordas (as da voz e as da irmã guitarra, flamenca, barroca, e sul-americana). A duas línguas (o espanhol e o inglês).

 

I'm making a beautiful wooden chair
With carvings of pretty roses
And a bird in the middle
With wings so wide
To hold me when the day closes

 

A chair low enough so when by the river
I can reach the water
A chair that is strong so when time moves along
My days and my years will not matter

If you kiss the blisters on my little hands
So tired from carving all lonely
I'll pile up some wood and make a little bench
To rest by my side for you only[iv]

 

Lau Noah recolhe alguma madeira para fazer um pequeno banco, uma canção. Nesse banco sentamo-nos, nós os muitos vivos que a escutamos hoje antigamente. A última canção termina com as vozes do público de um dos seus concertos. A sua voz cala-se, para dar lugar à nossa voz.

Lau Noah, que sobe do deserto, encostada ao seu Amado, retira-se novamente para lá, e nós seguimo-la até sabe-se lá que século ou terra prometida.


[i] «Se te fores amanhã / sob o calor deste sol tíbio / chorarei seis lágrimas de amor / e uma de alívio.»

[ii] «Se uma árvore se apaixonar por um rio / Porque o sol a faz de ouro e de brilho / Pode a árvore compreender e perdoá-lo / P’la escuridão que à noite ele transporta?»

[iii] «Debaixo da almofada / Encontrei uma lua de luz clara / Diz ser a dona da minha cama / Perguntei, chamam-lhe solidão.»

[iv] «Estou a fazer uma bela cadeira madeirada / Com entalhes de bonitas rosas /  E um pássaro no meio / De asas tão largas / P’ra me agarrar quando o dia acaba // Uma cadeira baixa o suficiente para que à beira-rio / Eu possa tocar a água / Uma cadeira forte para que quando o tempo avance / Os meus dias e os meus anos não importem // Se beijares as bolhas das minhas mãos pequenas / Tão cansadas de trabalhar sozinhas / Reunirei alguma madeira e farei um pequenino banco / Que ficará ao meu lado, para ti apenas.»