Rodrigo Cruz Silva

A curta-metragem Film annonce du film qui n’existera jamais: «Drôles de guerres» (2023) é a última obra realizada por Jean-Luc Godard e foi lançada postumamente. Este trailer, que teve direito ao seu próprio trailer, é um esboço que reúne ideias, imagens e sons, e que se aproxima mais de um comentário de vinte minutos sobre cinema do que de um «annonce». Distancia-se, assim, de outros filmes de Godard sobre os seus próprios trabalhos: enquanto os Bande-Annonce divulgaram directamente algumas das suas obras, e os filmes-rodapé, como Scénario du Film ‘Passion’ (1982) ou Petites Notes à propos du film ‘Je vous salue, Marie’ (1983), são lições sobre cinema a partir das obras às quais fazem referência, este Film annonce distingue-se porque o filme referenciado não existe.

A imagem do filme consiste essencialmente em cinquenta planos estáticos de folhas brancas numeradas que se sucedem ordenadamente, como se fossem diapositivos. Este fundo branco, timbrado com o logótipo da Canon, serve de base para os trabalhos manuais de Godard. Apresentam-se colagens com recortes de fotografias, livros e jornais acompanhados por palavras soltas, pinceladas ou frases escritas à mão. A marca Canon não deixa de ser um pormenor importante numa filmografia que vincou a relação umbilical entre a máquina e os objectos produzidos pela «Usine de rêves»[2], tal como Godard apelidava o cinema. No lugar da câmara de Le Mépris (1963) expõe-se outra ferramenta de trabalho: um caderno de ideias do realizador.

À semelhança da cronologia da história do cinema, depois do longo silêncio das primeiras imagens mudas do filme, surge o som; o som inconfundível da voz arranhada de Godard – no tom trágico habitual, parece que conseguimos escutar as baforadas do charuto e o cansaço de quem disse e fez muitas coisas, de quem, no momento em que vemos a sua obra final, está morto. Tal como em muitos filmes do realizador, a sua voz funciona aqui como um condutor da imagem que faz algumas paragens num confessionário. Godard revela que, para lá das dúvidas sobre a vontade e a força necessárias para fazer um novo filme «que regressasse às suas origens», tinha a intenção de adaptar para essa sua última obra o livro Faux passeports (1937), de Charles Plisnier. O nome do escritor aparece acompanhado por um apontamento biográfico, escrito pela mão de Godard, que destaca somente o facto de Plisnier ter sido um militante dissidente do partido comunista belga, como se a primeira e mais impulsiva razão de atracção por este autor fosse o reconhecimento da sua revolta anti-institucional – um predicado obrigatório na biografia do cineasta franco-suíço.

Algumas colagens sugerem que Godard centraria o «filme que nunca existirá» em Carlotta, uma das personagens daquele livro sobre os tempos de esperança e desilusão na União Soviética. Mas as ideias sobre a adaptação do livro são apenas uma peça deste filme de fragmentos; a este pedaço, acumulam-se, numa disposição quase não-sequencial, páginas com diferentes ideias que aparentam não ter uma relação com aquilo que as antecede ou precede. A Carlotta, o Nosferatu (1922) de Murnau, Cézanne e Simone Weil convertem-se em espécies de aforismos que coexistem no mesmo caderno branco. O mesmo se passa no som, onde excertos de conversas são interrompidos quer por trechos do sombrio Quarteto de cordas nº8 em Dó menor de Shostakovich quer pelos períodos de silêncio que abafam a voz tremente de Godard. A amalgamação de referências permite-nos compreender que o esboço de um filme que nunca existirá é um esboço de muitas outras coisas.

Este Film Annonce pertence ao que normalmente se designa por filmes-ensaio: obras sobre ideias - mais reflexivas do que narrativas. Na filmografia de Godard, este espaço é ocupado por filmes que muitas vezes reflectem sobre o medium ao qual pertencem, sendo o exemplo máximo disso a epopeia documental Histoire(s) du cinéma (1989), que também serve de matéria-prima para esta curta-metragem. Outro momento de «cinema-pescadinha-de-rabo-na-boca»[3], expressão cunhada por Bénard da Costa para descrever os filmes de Godard que se debruçam sobre si mesmos, coincide com o único momento de ruptura na fixidez do filme: um excerto de Notre Musique (2004), no qual uma mulher corre, evidenciado o único exemplo de movimento. Ao invés do amontoamento brusco de imagens e sons, típico dos filmes mais ensaísticos de Godard, aqui encontramos uma abordagem diferente - como se estivéssemos a testemunhar a inauguração de uma nova e mais austera fase da sua obra. Godard impõe uma rigidez quase «straubiana» nesta apresentação silenciosa de pensamentos isolados, em que se revela uma página branca e um som de cada vez.

 Mais do que todos os seus outros filmes, esta curta-metragem reduz o cinema àquilo que Godard reconhecia como essencial na arte que praticou por mais de sessenta anos: as ideias. A despedida do cineasta coincide com um despojamento do cinema, uma vez que apenas resta a brancura de um caderno com ideias e um silêncio esporadicamente interrompido. O cineasta sugere que o rascunho que precederia a obra é o próprio filme, como se o projecto ideal e a obra se fundissem num único espaço. No filme mais abstracto do realizador, não importa pensar se as ideias valem tanto ou mais que a obra, porque a exposição crua das mesmas converte-se no próprio filme. Num caderno de esboços encontramos habitualmente dúvidas e rasuras, e não parece ser por acaso que um dos primeiros e dos últimos planos deste livro de imagens[4] consistem em duas ou três pinceladas pretas e vermelhas que nos escondem alguma colagem ou palavra.

O interesse em algo que se esconde é exposto numa das páginas mais enigmáticas do filme, que consiste na transcrição à mão de um provérbio chinês: «É difícil encontrar um gato num quarto escuro, especialmente se ele não estiver lá»[5]. Quem é que não está no quarto? Para lá do gato, Godard parece ser a resposta mais óbvia, mas o filme que nunca existirá também se encaixa na descrição de um gato que não se pode encontrar. O filme aponta evidentemente para a ausência de algo; a estranheza do silêncio e dos espaços em branco espelha o facto de o realizador reconhecer a sua ausência no momento em que vemos o anúncio de um filme que não existe – de facto, o mestre já não está neste quarto escuro. Godard, na sua despedida, passa-nos a bola, tal como indica noutra página com alguma graça: «É problema vosso, e não meu, reinar sobre a ausência»[6]. No fundo, procura-se alguém que continue a procurar, que continue a olhar para este quarto escuro.

Godard prescindiu da montagem do seu último filme, um gesto raríssimo na sua filmografia. Fabrice Aragno, colaborador habitual do cineasta, foi quem editou esta curta-metragem sob as orientações rigorosas do realizador. Dado que a casualidade parece destoar ou não fazer sentido num último gesto, conclui-se que o realizador apontou para o facto de que o (seu) cinema carece de outras pessoas – mesmo alguém que se isolava para fazer filmes caseiros sem uma equipa técnica, precisava e reutilizava os filmes e imagens de outros. Isto alinha-se com os rumores de que o realizador deixou material para ser utilizado na produção de novos filmes. Essas novas obras já não serão exactamente realizadas por Godard, uma vez que este foi o último filme de Godard visto por Godard[1]. Curiosamente, a curta-metragem termina ao som de uma última frase bruscamente interrompida a meio - um convite à sua completação, para que se «continue a procurar» as palavras e imagens seguintes. Para alguém que afirmava que não fazia filmes, mas sim cinema, isto faz todo o sentido: apesar de o filme ter terminado, a sensação abrupta de incompletude sugere que o seu cinema não chegou ao fim.

[1] [1] Estreia nacional no LEFFEST – Lisboa Film Festival, numa sessão do ciclo Quartos do Realizador, dedicado ao realizador Pedro Costa. A nova curta-metragem do realizador português, As Filhas do Fogo, também foi exibida nessa sessão. Cinema Nimas, Lisboa, 16 de novembro de 2023.

[2] Jean-Luc Godard, Histoire(s) du Cinéma.

[3] João Bénard da Costa.,Escritos sobre Cinema. Tomo I, 2º Volume, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, 2019, p.834.

[4] Jean-Luc Godard, Le Livre d’image.

[5] «Il est difficile de trouver un chat dans une chambre obscure, surtout s’il n’y est pas.»

[6] «C’est votre affaire, et non la mienne, de régner sur l’absence.»

[7] Jean-Luc Godard,JLG/JLG, autoportrait de decémbre.

REFERÊNCIAS:

Godard, Jean-Luc, realizador. Film annonce du film qui n’existera jamais: «Drôles de guerres». Saint Laurent; Vixens; L’Atelier, 2023. 20 min.