Maria Brás Ferreira*

Do Soneto I ao Soneto 40 trata-se, como o título indica, de um conjunto de quarenta sonetos que Bernardo Salgado reúne agora em livro, após ter produzido envelopes de dez sonetos cada — Cadernos A, B, C e D ainda disponíveis neste formato —, publicações da chancela da 14 Versos, editora fundada pelo autor e por Joana Salgado. O soneto é uma forma lírica que conheceu ao longo dos séculos uma série de variações, como se fosse, por si, um medidor do tempo e do espaço, medidor da circunstância mais aparentemente insignificante, da linguagem mais privada, até se tivermos em conta o modo avulso e direccionado em que estes textos tradicionalmente se distribuíam. Ora, a escrita e a publicação de sonetos hoje produzem invariavelmente um efeito de suspensão do tempo ou, na melhor das hipóteses, a actuação da força furiosa de um contra-tempo. Um que se prolonga, todavia, além do incidente meramente ocasional e contingente para constituir uma carta-postal a chegar a alguma parte e que, tratando-se de um projecto editorial e autoral, detém um carácter colectivo e público sobre o qual importa reflectir. São textos que visam, com efeito, ser lidos, escutados e respondidos. Poemas que intentam ir além de uma aparição reprodutível, de uma publicidade imediata e descartável, excedendo os eventos em que tantas vezes a literatura (lamentavelmente talvez já nem como palavrão este termo incomode) se acha hoje confundida, obliterada e, afinal, desmerecida. Um acidente que, assim, detenha um pai, criador assumido, com a sua assinatura responsável, o cunho dessa espécie de orgulho condizente com a árdua faina de um ofício que se ama. De tudo isto é feito o livro — a ideia e o ideal de publicação — de Bernardo Salgado. Não se trata, pois, tão-somente de reconhecer, pelo formato do envelope que precedeu o do livro, o indício e o signo do diálogo e da correspondência. O envelope é já parte do livro, tal como os gestos e a vida são parte da obra por vir. Era, assim, já de obra que se tratavam os envelopes, o que nos conduz a um aspecto que parece fundamental para a poética de Salgado: a indistinção, aparentemente tão natural quanto louvável, entre a vida e a poesia, a fala e o verso (o autor faz regularmente leituras dos próprios sonetos), o escrito e o rasurado que a regra impõe, o que é endereçado a um destinatário particular e o que se publica e distribui por livrarias para que qualquer pessoa o leia e, no limite, o extravie. Também os acasos e os malogros são particulares, excepcionais e intransmissíveis no modo como penetram o real, alterando-o, obrigando-o a investir-se numa nova ordem. Assim, se a vida é a matéria bravia que a obra pode ou não enformar, a primeira é na segunda surpreendida necessariamente enquanto coisa outra, matéria transformada, transfigurada (porque convulsa, em busca de sentido) e partilhável: «Uma cenografia bem quieta/ Deixando que outros Vos rodem também» (12). Aquele que diz — são sonetos ditos, no limiar em que a voz é induzida à fisicalidade de uma boca que mexe e à melodia de um som que irrompe — ser a «Vossa Cobaia Milagrosa», vossa, isto é, dessa «Voz Todo-Poderosa», começa por instaurar um regime particular, senão mesmo excepcional, entre duas entidades, para tornar partilhável e disponível aos outros essa mesma figura abstracta e ideal que determina a sua existência e função. A partilha decorre de uma vontade de atenuar a sorte, o que não se faz por qualquer espécie de cálculo ou medição, mas pela soma e pelo acrescento indefinido de mais ocasos, de outra(s) sorte(s) de sortes: «Que outros vomitem Vosso Vaivém: / Abrandai e sossegai minha Roleta.» (idem).

Urge, antes, neste sentido, reconhecer todo um dispositivo epistolar e cénico, de actuação desejante, na poesia e na regra métrica do autor, e procurar escutar o que diz, e o que tenta dizer, este poeta ao seu tempo. Leia-se o primeiro terceto de «Soneto a Uma Bailaora», no qual a distância e a proximidade se equivalem sob a actuação — menos autorizada é a ideia de mediação nesta poesia, como se todos os golpes estivessem à partida desferidos — da dor: «Que de longe ou de perto é a mesma dor, / Régua e regra a planura feita em prata. / Inda que desregrado este torpor» (10). O motivo espectacular de uma bailarina de flamenco serve de emblema dinâmico de uma posição descentrada do sujeito, assim arredado do lugar de convivência, do núcleo quotidiano em que a língua é apercebida em prol de uma comunicação imediata e utilitária. A regra coincide — num tom que vai do queixume «depresso» ao acinte sarcástico mais ácido — com a consciência da língua, a sensação permanente de um corpo portado, enquanto artifício aposto a uma figura participante de uma cena dramática maior, cujo sentido não é apreendido senão por retalhos mais ou menos inebriantes: «O cheiro a estrume não é mais excremento: / São cavalos pastando as russas crinas. // A rotunda é agora casa branca; / À ronda do estrume anda o escaravelho; / O calor de toda a parte se arranca» (21). A testemunha — o confesso «Sonetista Incivil» (16) — da paisagem acerca-se e incute ou assiste — criador ou cobaia — à transfiguração dos elementos. Assim, o cheiro a estrume já não indicia excremento, sendo desde logo a pintura bucólica e doce de uma cena de pasto de cavalos. A higienização quase angelizada da cena é abruptamente cortada - num aproveitamento engenhoso, um tanto circense, da chave d’ouro - no último terceto: «E antes do Tejo tudo isto acham feio. / E eu irónica impávida carranca / Aceno ao ver o que acho belo ao espelho.» (idem). A carranca, máscara ou careta, artifício ou esgar, coisa própria ou alheia, poderia arregimentar, pela referida expressão irónica, e para si reclamar tudo o que anteriormente é descrito no poema. Dar-se-ia, assim, uma igualação individualizante absoluta, fazendo de tudo o que fora imageticamente projectado elemento compositivo do rosto de alguém, mirando-se no espelho. Uma tal hipótese é, todavia, mais que totalmente desvirtuada, confundida, pela dualidade, reforçada na reunião conflitante entre os adjectivos «impávida» e «irónica», do próprio termo da «carranca», que vem disjuntar o próprio do outro, aquilo que se encontra integrado numa entidade reconhecível como alguém e o que permanece por integrar, livre de compor e referir uma qualquer unidade. Uma tal resolução disjuntiva não deixa de constituir motivo de regozijo, por meio da afirmação do poeta, e do seu engenho, que, nos versos citados, vê admitido um gesto auto-reflexivo. O mirar-se ao espelho seria, neste sentido, uma forma de ver e reconhecer o poema e, assim, atribuir à poesia e ao estatuto de ser poeta, não só uma possibilidade de consolo, mas também a sublimação de um poder distintivo. Tome-se de empréstimo as palavras de Joaquim Manuel Magalhães sobre um estudo de Fernando Curopos acerca de António Nobre — cuja obra Bernardo Salgado claramente conhece —, e que refere a «dimensão enclausurada de uma mente e de um corpo sujeitos a várias necessidades de (des)representar-se perante a normatividade do mundo português do seu tempo, em grande parte ainda hoje continuado» (Magalhães, 1017) e que apontaria para um «temor basilar de ser aquilo que é» (ibidem). A referida oscilação entre um tom melancólico e o sarcástico quase circense apontam precisamente no sentido de um desejo de desrepresentação, que cede à tentação da cena, do espectáculo, da elevação do corpo para falar alto a quem o queira ouvir. Sair de cena para nela voltar a entrar. Sair da melancolia, entrar no sarcasmo, como que percorrendo a ante-câmara de um palco. Há igualmente uma verve que surge enquanto exacto reverso da descrença, um desespero organizado, silabado. Talvez por isso a forma do soneto e a métrica sirva precisamente o compasso de quem, contra toda a lógica, deseja continuar a dança que o alimenta, não obstante, da mesma saia enfraquecido: «O que aqui arrefece é víscera minha: / Ao escrevê-la fico um pouco mais fraco. / Preso o punho indefeso e fatigado, / Vianda que se deixa numa linha.» (38).

As referências a autores, como a cantora-compositora Violeta Parra, a acontecimentos aparentemente extraídos de uma biografia em devir (mais do que de um quotidiano devidamente quinhoado), a dedicatória a amigos e conhecidos do autor — de Hugo Carvalheira Neves a Sara R. — ou a figuras quase heroicizadas, como o Príncipe Novilheiro, a referência a locais geográficos precisos — de Triana à livraria Poesia Incompleta, em Lisboa —, não faz senão inscrever esta poesia num espaço mitológico de que hoje a crítica se desinteressa, preferindo a auscultação de influências e tradições literárias. O que está em causa na poesia de Bernardo Salgado, ainda que não passando despercebida uma tradição poética seguida pelo autor, é a referencialidade como construção de um plano mitológico e este, por sua vez, enquanto expressão de uma singularidade comunicável, circulável. Esse território e imaginário míticos ou fabulosos detêm a sua riqueza em parte, portanto, no efeito efabulatório que geram, nos ecos que possibilitam: lembre-se que o primeiro formato destes sonetos coligidos em livro foi o envelope, cuja remessa espera, por definição, uma resposta.

Da imagem — esta é, com certeza, uma poesia imagética, feita de cenas — e do seu infindo e desdobrável poder inebriante, disse Alfredo Bosi: «quem quer apanhar para sempre o que transcende o seu corpo [a imagem] acaba criando um novo corpo: a imagem interna, ou o desenho, o ícone, a estátua. Que se pode adorar ou esconjurar. Mas que assume, nem bem acabado e posto à nossa frente, o mesmo estatuto desesperante da transcendência.» (Bosi, 14). A distância não é nunca suprimida. E, assim sendo, faça-se o elogio da distância, ainda que cause sofrimento, todavia jamais impossibilitando o amor: «Deixa-te assim longínquo e quase imóvel. / Não ouso deformar-te a compostura / E consumi-la em funda paixão dura: / Nem uma sensação pra mim é nova.» (20). A distância parece tratar-se de uma escolha do sujeito, muito embora possa ser tão-só a encarnação (ou encenação) fiel de uma sina a cumprir. Manter os corpos distantes, conservar a imagem para continuar o sempre nascente acto criativo, a produção de novas imagens, de novos corpos. Trata-se de um fracasso contornável na senda de uma imagem transcendente, de um logro volvido prazer, pela abertura de uma fenda no real, de uma possibilidade outra. Todas as sensações são desde logo conhecidas, pois todas elas são projectadas sobre o mesmo fundo de estranheza. Todas elas constituem o mesmo segredo em potência: mais ou menos melodioso, mais ou menos benigno, mais ou menos enfeitiçado.

Há, note-se, uma confusão entre o erotismo, o desejo e a impossibilidade da sua consumação, extraindo-se um certo prazer — imagético, espectacular — do desconsolo, da frustração amorosa, assim como há um cruzamento entre o abjecto e o sexual, de que constitui exemplo maior o soneto «A Mesma Sopa»: «E não se assusta quando abre a torneira / E dela sai espessa água de sujeira. / E mete a boca nessa sopa-lesma. // E bebe o sujo até vir bebedeira, / A ponto de lamber tudo à banheira: / Não está louco e a sopa é que é sempre a mesma.» (36). O gesto de «meter a boca» numa sopa cuja solidificação mínima corresponde à forma da lesma é naturalmente sugestivo do contacto oral do felácio e que anoja sendo rotineiro, repetitivo por necessidade: «sempre a mesma» [sopa-lesma]. O sexual abjecto ou a abjecção do sexual infere-se do carácter repetitivo que o encontro erótico pode assumir e, esse sim, é motivo de repulsa, pois que dele já não se poderá extrair uma distância que não se traduza imediatamente no reflexo de si próprio. Também por isto se trata de uma poesia tão arredada de qualquer interesse no quotidiano como matéria-prima poética ou como pretexto de sublimação por via do trabalho poético: duas tendências e, em tantos casos, um mesmo e imenso lugar-comum da poesia portuguesa contemporânea. A Bernardo Salgado não interessam, pois, reflexos directos, miméticos, literais. A «sopa-lesma» é uma imagem que não envolve o sujeito numa distância intransponível, afinal, alentadora, senão por activação de um campo atractivo magnetizado pela repulsa.

Talvez o que este autor ande mesmo à procura seja de encontrar alento, pelo engenho poético, no desalento. À aparência de cliché, veja-se que a poesia é tantas vezes a arena onde se debatem os lugares-comuns, ganhando novo fulgor. Contornar o cliché, tocando-o pontualmente, é uma forma de contornar o medo da repetição (medo de repetir uma tradição de leitura e medo de repetir as tormentas que a vida sempre compreende), restando expor o medo, repetindo, dizendo, anunciando.

Em suma, talvez o autor procure erguer um conjunto de poemas, como uma galeria de estátuas, ciente de que nem tudo pode ser novo, mas que o antigo é já um antigo diverso. Ver depois quem se atreve a riscar o mármore, a «arear um deserto sacudido» (10). De resto, pesadas as condolências e prestados os serviços cerimoniais, «nada além o que se esquive» (11). Queira alguém continuar as hostes, iniciar outra invectiva, cerzir os pulsos para esta dança, o email é o seguinte: catorzeversos@gmail.com.

 

Bibliografia:

Bosi, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1990.

Magalhães, Joaquim Manuel. Poesia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Bestiário, 2022.

* Doutoranda financiada pela FCT (2023.02316.BD). Estudos Portugueses na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: mariabrasmferreira@gmail.com.

REFERÊNCIA:

Salgado, Bernardo. Do Soneto I ao Soneto 40. Estoril: 14 Versos, 2023.