Hugo Miguel Santos
O mais recente título de José Carlos Soares, Hesitação da Luz (Averno, 2024), é uma espécie de síntese da sua poética iniciada, em 1981, com Os Sulcos Leves, livro composto a quatro mãos com Carlos Marques Queirós.
É muito provável que esse gesto inaugural de publicar um livro a meias, indicando a autoria dos poemas apenas no índice final, fosse já indicativo de um movimento contínuo que tem atravessado esta obra até aos nossos dias e que podemos resumir em dois termos que aqui se conciliam: repetição e apagamento. Ou, se quisermos, citando o mote do escultor basco Eduardo Chillida, talvez se possa acrescentar que a poesia de JCS tem vindo a progredir através de um movimento que é «sempre nunca diferente, mas nunca sempre igual», estabelecendo uma renovada dialéctica entre termos opostos como, por exemplo, encanto e desencanto, luz e sombra, sossego e desassossego: «À sossegada ilha/ quero chegar.// Todos os retratos/ apagados, todas/ as pedras atentas» (p. 24); «Gosto de quando/ chove no desassossego,/ caminhar// de olhos baços, abrir/ janelas ao verso/ inesperado» (p. 18) ou, então, «Continuo a ler/ o desassossego/ em que me converto./ Uma frase esgana,/ o erro de a receber/ alumia» (p. 19).
Há uma intenção clara de mapear um caminho errático entre uma suposta interioridade e a exterioridade que a envolve e lhe dá os nomes e os entes possíveis para o estabelecimento do seu universo expansivo: «Deixo agora entrar/ o gato, a sua/ almofadada/ pata primeira/ no velho corredor/ dos meus interesses.// Um gato repleto/ de metafísica nenhuma,/ directo à necessária/ higiene dos dias.// E surja eu/ no gato// que já vai» (p. 23). Muito mais do que um diálogo, ocorre uma autêntica transmutação entre a voz do poema e as figuras que o compõem, como este gato que parece recordar um outro gato que surge num poema de Beppe Salvia: «Ritorna come un gatto malinteso/ a tutti il gatto mio stasera/ alle sue fuse, un farlingotto amico/ che mi pare specchiarmi in quei grand’occhi, troppi discorsi vani/ e poca arte io il mio gatto/ sproloquiammo la vita»[1] — repare-se como se acaba por prescindir da copulativa, no penúltimo verso, entre «io» e «il mio gatto».
Através deste jogo de espelhos e refracção de luz entre o eu e os seres que o povoam e circundam, o sujeito alastra-se para lá de si mesmo, funde-se na imediatez da alvorada em que se extinguem: «Trago as fotografias/ para dentro/ de mim, o salmo// que nelas cantava/ o amanhecer» (p. 21). Não é certamente um acaso o facto de JCS, à semelhança de Salvia, ter começado por assinar os seus poemas com um pseudónimo. A poesia é concebida por ambos os autores como um último reduto de existência e, por isso mesmo, como um abrigo de anonimato. E o facto de a assinatura autoral agora coincidir com a identidade civil do poeta não representa um pacto de leitura superlativamente diferente, na medida em que os elementos que poderiam eventualmente remeter-nos para a vida civil do autor são reduzidos a meros vislumbres ou impressões: «trazia/ tabaco e muito/ engenho, falhas// de sentido, frágil/ cicuta no regresso» (p. 9).
Não só se torna difícil identificar uma persona no sujeito destes poemas, como, por vezes, parece que tudo se passa numa terra de ninguém onde se assiste a um desdobramento de vozes e ecos. Daí a preponderância dos pronomes indefinidos «nenhum», «nenhuma» e «ninguém» neste último livro: «ardente/ caminho nenhum» (p. 14), «hora nenhuma/ o diabo perdoa» (p. 15), «metafísica nenhuma» (p. 23), «Nenhum navio/ na interrogação» (p. 31), «Ninguém venha/ da morte/ com a pequena luz/ na face, a infância/ de novo por abrir» (p. 35), «Rosto nenhum/ no vidro partido/ dos seus lábios» (p. 41). Esta indefinição relativamente à identidade da voz que nos fala é que permite que possamos ver simultaneamente, a nós e ao autor, como poema: «No outro somos,/ autor e verso, espuma// demorada, página repetida» (p. 51). Porque é da relação entre o poeta e o poema, e o mesmo vale para a relação que o leitor estabelece com estes poemas, que surge o sentido desta poesia, isto é, a expansão do diálogo interior: «A boca expandida/ na terceira pessoa» (p. 24).
Convém ainda notar a este propósito o modo como se repetem as páginas em branco entre poemas, podendo inclusivamente criar a impressão no leitor de que se tratam de erros de impressão, mas que funcionam, pelo contrário, como uma forma de pautar o discurso e o fluxo das imagens — o que se torna especialmente significativo numa poesia tão melódica e visual. Para José Carlos Soares, a poesia apresenta-se como um ofício do tempo e, conseguintemente, uma arte da fuga — depurando e estrangulando o dizer até à «carne/ a língua/ em alvorada» (p. 30), acertando «a flecha (...)/ no íntimo/ da fala» (p. 31) através da «paisagem// do regresso» (p. 22). Por isso mesmo, são raras as estrofes compostas por mais do que três ou quatro versos e, por sua vez, raríssimos os versos que se demoram por mais do que duas ou três palavras. Recordando as próprias palavras do poeta: «dizes// que os meus versos/ são mangas sem camisa. Eu sei// do rio/ que nos atravessa, desse a memória/ pequeno contributo.// E sei, meu/ pobre morto,// como devora o abismo/ o sonho, e quanto/ na estrada a cinza/ se desfaz» (p. 45).
Esta indagação pelo mínimo, esta busca incessante pela ténue fronteira que divide o que pode ser visto do que é invisível, tende a anular ou suspender algumas das figurações mais canónicas do discurso poético, como a própria ideia (sempre instável) de sujeito lírico — na medida em que a voz do poeta quase não passa de um leve sopro que nos atravessa, como uma brisa tardia numa impossível tarde de verão, e confunde a distinção entre as «personas del verbo», citando Jaime Gil de Biedma. Na obra de José Carlos Soares, a operação de dissolução das divisões entre eu e tu ou ele pode processar-se ainda através do recurso à polissemia (entre os «nós» de uma corda o «nós» da primeira pessoa do plural): «Um íntimo fio/ de nós desatado.» (p. 24) ou por aproximação metonímica: «como se a língua/ por que acerto/ a palavra/ se dobrasse// e possível/ apenas fosse/ o poema» (p. 53). Ou seja, através do poema procura-se uma ideia mais holística de poesia: espécie de instância primeva e irredutível e, por isso mesmo, independente da voz que o enuncia ou do ouvido que escuta. Em cada um destes poemas, em cada uma destas «mínimas molduras», recordando as palavras de Manuel de Freitas a propósito desta poesia[2], pressente-se o fragmento possível de um impossível absoluto.
Para quem tem acompanhado a poesia de José Carlos Soares, será relativamente fácil notar que há um tom menos saturniano neste livro, principalmente se o compararmos com os mais recentes Sottovoce (DSO, 2019) e Medição dos Arvoredos (Alambique, 2022). No entanto, tal não parece implicar um menor pendor meditativo, muito menos uma dissolução da tensão sintáctica e imagética que sempre tem caracterizado os seus versos. Antes, é possível que implique uma coincidência mais directa entre o pensamento e os seus objectos, como resultado, quiçá, de um domínio sempre mais feroz e assertivo dos meios de expressão poemáticos, como a metáfora ou a elipse: «a transformação, o seu/ cadáver de fora, a carnal/ emoção// depositada fria/ na manhã» (p. 11) e «No papel, a carne/ das palavras (...) As mais belas mãos, música da posse.» (p. 29).
São vários os exemplos em que o poeta consegue criar aproximações entre imagens aparentemente afastadas ou até dissonantes, mas o facto mais marcante é a estranha familiaridade que estas imagens nos suscitam. Reconhecemos as suas «paisagens imprecisas, por vezes urbanas, por vezes rurais, mas quase sempre paisagens de palavras, ou palavras sobre as quais a escrita se inclina para compor um pequeno mundo residualmente habitável», recordando as palavras de Diogo Martins, no seu artigo «O direito ao segredo: lendo José Carlos Soares».[3] Quer dizer, conseguimos identificar a referência de palavras tão corriqueiras como «cão», «ferida» ou «cicatriz», mas torna-se difícil captar completamente o sentido que elas produzem em conjunto no contexto desta obra: «o cão// dorme/ sobre a ferida,// a torre/ inclinada beija/ a cicatriz» (p. 26).
As vozes poéticas mais fortes costumam ter este duplo efeito no leitor: por um lado, familiarizar-nos com a estranheza e, por outro, colocar-nos em dúvida perante o nosso quotidiano mais próximo ou até íntimo. Na poesia de José Carlos Soares, o seu estilo, aquilo que lhe é mais distintivo, resulta precisamente deste intenso equilíbrio entre intimidade e estranhamento, ou, retomando o segundo parágrafo deste texto, entre aquilo que se repete e o que inevitavelmente se apaga. Há uma espécie de epokhé, de suspensão do juízo, perante os dados mais evidentes do mundo, a par com uma confiança na capacidade de nos maravilharmos e nos deixarmos seduzir por tudo aquilo que nos envolve.
Caso ainda fossem precisas mais provas, este último livro de JCS— o seu décimo nono livro de poesia, fora as diversas publicações colectivas em que já participou — vem-nos recordar novamente que estamos perante uma das vozes mais sólidas e singulares da poesia actual: «De olhos fixos/ no escuro atravessava/ o seu domínio.// Enchia de vazio/ o peito às balas, herói/ da sombra/ dos estábulos. Deitado// deixava provar o divino/ som de insectos,/ verde/ a erva mastigava/ com as lágrimas» (p.40).
[1] «Regressa como um gato incompreendido/ por todos o meu gato esta noite/ ao seu ronronar, o meu bárbaro amigo/ que nos seus grandes olhos me parece espelhar, discursos vãos demasiados/ e pouca arte eu o meu gato/ tagarelamos a vida.» (tradução minha). Beppe Salvia, Un Solitario Amore, Roma: Fandango Libri, 2006, p. 36.
[2] Manuel de Freitas, «sobre um poema de Sottovoce», Revista Quatro Cinco Um, 21 de Setembro de 2019.
[3] Diogo Martins, «O Direito ao Segredo: lendo José Carlos Soares», Jornal Vila Nova, 2020 https://vilanovaonline.pt/2020/04/04/o-direito-ao-segredo-lendo-jose-carlos-soares/.
REFERÊNCIA:
Soares, José Carlos. Hesitação da Luz. Lisboa: Averno, 2024.