Guilherme Berjano Valente

Ricardo Gil Soeiro, em Lições da Miragem (2024), posiciona-se como um poeta que regista o que vê no mundo, retirando, deste registo, lições. As coisas que vê, no entanto, são miragens, ou seja, imagens que projeta sobre a realidade. Como nos seus outros livros, os poemas questionam temas comuns da poesia e da vida, de forma autêntica e inovadora. Como é esperado de Gil Soeiro, e seguindo os passos de poetas como António Franco Alexandre e Carlos de Oliveira, o livro possui uma arquitetura inquebrável que leva o leitor a experienciar cada poema não como uma coisa isolada, mas como um texto que se desenvolve e se significa devido ao texto que o precede. O poeta, assim, encaminha o leitor até aos últimos versos, onde se descreve o próprio livro:

Eis o que foi e o que será.
Os que estiveram e os que foram.
Os que nunca virão.

O resto são palavras:
curta distância até à morte. (p. 74)

Dos últimos versos percebemos que as palavras são vistas como caminhos, ou seja, coisas que têm certas distâncias. Por sua vez, da mesma forma que todos os caminhos, um dia, levaram a Roma, aqui, todas as palavras levam à morte. A comparação entre palavras e caminhos é um tema recorrente neste livro, sendo os versos descritos como «veias subterrâneas» (p. 29) costuradas pelo poeta e como «frívolos esquemas / para escapulir a uma masmorra movediça.» (p. 59) Os poemas deixam, então, de ser meros registos de coisas que o poeta observa para serem, também, «mapa sem tesouro, / pergaminho à mercê / da serenata dos séculos.» (p. 59) São, de forma resumida, caminhos que não levam a lado nenhum, ou, melhor dizendo, levam «à morte».

Este caminho até à morte é de «curta distância», visto que é o caminho até ao primeiro poema: «Lição de Tanatologia» (p. 11). Ora, neste poema de quatro versos, lê-se:

Aquilo que a morte diz à vida,
sempre que, no cumprimento do dever,
nos faz uma visita:
porque não posso eu ficar um pouco mais?

No poema não há vida a não sermos nós, leitores, que estamos supostamente vivos. No entanto, somos nós quem é visitado pela morte, logo, nós somos os que morrem. A vida é nada mais do que uma entidade escondida no poema que não parece ouvir a pergunta infantil da morte, visto que, como Gil Soeiro diz em «Lição de Ontologia» (p. 67), «A vida e a morte jogam às escondidas», ou seja, quando uma está presente, a outra esconde-se. Quem fala, contudo, não é exatamente a morte, mas o poeta que dá voz à morte. O poema serve de caminho para o poeta vir até nós, matando-nos ao encontrar-se connosco. Esta ideia ecoa o argumento de Paul de Man, em «Autobiography as De-facement», sobre a leitura: o leitor morre momentaneamente durante o ato da leitura, de forma a deixar que o poema fale pela sua boca. Assim, a face do leitor é dada ao poema enquanto o lê. Em Gil Soeiro, a ideia de de Man é reapresentada, não sendo verdadeiramente a leitura do poema que leva à morte do leitor, mas o próprio poeta que, encaminhando-se em direção ao leitor, o mata, usurpando a sua face. A primeira lição, que serve de programa para o resto do livro é que, nesta arte, só mortos falam e só mortos ouvem.

O movimento de estarmos no fim do poema e de sermos forçados a voltar ao início é recorrente em vários poemas, fazendo-nos sentir uma certa vertigem durante a sua leitura. Em «Lição de Gravidade» (pp. 55-7), por exemplo, o leitor vai descrevendo uma alteração nas leis naturais, e.g., «A queda de uma gota / ganha um par de asas» ou em «Sombras, descolando-se dos corpos, / encontram a merecida liberdade.» Em ambos os pares de versos, as imagens descritas implicam uma oposição à lei natural, ou seja, a gota cairia e as sombras estariam presas. Gil Soeiro descreve uma imagem de esperança onde as coisas escapam àquilo que as prende. O poeta, neste caso, escaparia à lei da gravidade, à queda que parece ser requerida para que se escreva um poema.[1] O leitor também escaparia. Contudo, os dois últimos versos forçam o leitor a voltar ao início, ou seja, os versos «E, / todavia.» levam a «Bastaria olhar para este fio de cabelo / para concluir que as leis da física / há muito desertaram.» O leitor está preso num ciclo que só é quebrável com a paragem da leitura. O poeta, por sua vez, aparenta estar sempre em queda livre, olhando para um local por onde, talvez, haja uma escapatória deste ciclo: o «tecto roto do mundo» onde «excêntricas rotas deliberam.» Percebemos, com isto, que os poemas-caminho que Gil Soeiro constrói parecem também tentar edificar uma saída deste ciclo, opondo-se às leis naturais e à realidade que os envolve.

Várias vezes, nos poemas, recorre-se à ideia de que o poeta está preso. Por um lado, o mundo é visto, em «Lição de Meteorologia» (p. 46), como uma prisão desértica – «Estamos cansados deste deserto» (p. 46) – de onde se consegue ver o «lado de fora do mundo», que parece brilhar através do «tecto roto» (p. 55) já aqui referido. Por outro lado, o próprio poeta é forçado a ser poeta – «Estou aqui e escrever é um capricho. / Estas mãos são algemas» (p. 58) – estando preso pelas suas mãos à sua atividade. Os seus versos, como lemos, escapam de lábios que não são seus: «Esses lábios deixaram escapar / um punhado de versos foragidos» (p. 24). Gil Soeiro, aqui, utiliza a terceira pessoa do singular, em «Esses lábios deixaram escapar», revelando que a sua poesia não é escrita por si, mas por uma coisa que deixa escapar versos através dele mesmo. A sua prática não é intencional, aparentando haver qualquer coisa que o força a escrever. Visto que os seus versos são, inclusive, «foragidos», é como se uma coisa que lhe é externa o obrigasse a escrever, submetendo-o a uma vontade que não é sua. Escrever poesia é, para Gil Soeiro, um tipo de prisão. Por último, a sua prática implica, como se lê em «Lição de Criptologia» (pp. 36-7), uma prisão material: a folha. Só nela é que pode escrever. Todavia, assim como Gil Soeiro está submetido a forças externas também o está a folha, visto que nela o poeta escreve os seus «destroços, / intactos, os mais íntimos segredos», deixando «amáveis cicatrizes». Ambos carregam coisas que não são suas, que lhes são estrangeiras, havendo enormes parecenças entre o poeta e a folha em que escreve. Sobre esta similaridade, em «Lição de Poesia» (pp. 31-2), Gil Soeiro descreve aquilo que constitui um poema:

Do armistício das horas,
quando as ruas perdem os sentidos.
Do tilintar dos vizinhos tristes,
durante o filme mudo do jantar.
Do silêncio quebradiço.
Natureza-morta que logo ganha vida.

Os versos descrevem coisas que o poeta captou, como sons e visões, logo, o poema faz-se daquilo que o poeta capta. Os versos «foragidos» já referidos são registos de coisas que o poeta, sem intenção, capta, armazenando-as e, mais tarde, expelindo-as em versos. Esta descrição é similar à descrição da folha em que o poeta escreve: ela é forçada a armazenar coisas do poeta (as coisas que ele capta sem intenção) e a expeli-las quando é lida, ou seja, é uma «Natureza-morta que logo ganha vida» devido ao facto de haver leitores que a leem. Poeta e folha são, assim, coisas deveras parecidas.

No mesmo poema, Gil Soeiro afirma que na memória «se apagam os contornos do tempo, / catarata de segundos decepados, / pirâmide de fumo cortejando o céu.» A descrição de Gil Soeiro é não só aplicável à memória como às miragens: elas são coisas em que se apagam contornos, projetando-se sobre o mundo. Como as memórias, elas são pessoais, visto que nenhuma miragem contém coisas que o poeta não conheça. Os poemas-caminho que temos descrito aparentam ser tentativas de caminhos pelas miragens que o poeta vê. Sendo que as miragens são coisas pessoais, podemos considerar que os poemas enquanto caminhos são tentativas de o poeta fazer sentido de si mesmo, ou seja, de arranjar um caminho por onde entre e saia da miragem. Todavia, estes caminhos são tão incertos quanto as miragens por onde passeia.

Visto que os caminhos que Gil Soeiro constrói são caminhos falhados, cíclicos e autofágicos, pois consomem-se no próprio poeta, é possível pensar que Gil Soeiro apresenta um problema epistemológico, em que não só não tem a possibilidade de captar e aprender o que quer e lhe interessa, como tudo o que aprende se transforma num resíduo da sua pessoa, isto é, num verso seu. As Lições da Miragem são, segundo esta descrição, lições sobre o próprio poeta, que mais não pode fazer do que matar o seu público e assimilá-lo a si. Gil Soeiro está, com isto, próximo de Ernesto Sampaio, quando o autor de Luz Central afirma que «O homem sonda o desconhecido, e de cada uma dessas viagens não traz senão o estranho que se revela pela via do familiar.»[2] Revelar o desconhecido pelo familiar é apagar o desconhecido e, no vocabulário de Gil Soeiro, isto é ficar preso do «lado de [dentro] do mundo». Reparemos que em «Lição de Zoologia» (p. 20) se salienta esta ideia:

Rã entornada.
Haiku engolido pelas águas.
 Poeta em apuros.

O poeta encontra-se «em apuros» por dois motivos: o primeiro é a gravidade da imagem, que puxa tanto a rã quanto o próprio haiku para debaixo de água, fazendo com que também o poeta seja sugado. O segundo é a incapacidade de se respeitar a simetria da métrica japonesa, visto que este poema possui um esquema métrico de 4, 9, 6. O haiku de Gil Soeiro não consegue fazer um haiku, falhando para com a sua forma original. Esta dificuldade parece nascer da incapacidade que há em transferir-se coisas de uma tradição distante e diferente para outra tradição. O poema transparece, com isto, a impossibilidade que há em tornar o desconhecido em familiar sem de certo modo o adulterar. Para além disto, Gil Soeiro, através de imagens de destruição, mostra que escrever haikus em português é tanto uma atividade destrutiva da tradição longínqua quanto do próprio poeta.

Felizmente, no meio do pessimismo, há uma vontade que alivia a dor que nasce da impossibilidade de se fugir a esta prisão:

A alga queria ser flor,
a flor queria ser árvore,
a árvore queria ser pássaro.

O homem queria ser asa. (p. 26)

Neste poema – «Lição de Botânica» –, o ser humano é descrito como tendo a vontade de ser uma asa. Enquanto a alga, a flor e a árvore querem ser inteiras, o ser humano quer ser fragmento, coisa que possibilite o término de pensar e, acima de tudo, que possibilite voar. A imagem das asas é extremamente recorrente ao longo do livro, apontando sempre para uma escapatória, e.g., em «Lição de Alquimia» (p. 18), afirma: «Meia asa é quase voo.» Esta imagem descreve, também, a supressão da destruição: «A queda de uma gota / ganha um par de asas» (p. 55). Ora, Gil Soeiro recupera esta imagem de forma tanto a salientar o seu desejo de escapar ao mundo em si, como de tentar apaziguar, mesmo que por pouco tempo, o sofrimento de nunca se conseguir verdadeiramente escapar para o «lado de fora do mundo», vendo não meras sombras, mas o mundo por inteiro. Recuperando a interjeição mais usada no último poema, «Eis» estes poemas que são asas, que apaziguam a dor e que, por algum tempo, encaminham o poeta, e talvez o leitor, de forma um pouco menos dolorosa até à morte.

 

Bibliografia:

de Man, Paul. «Autobiography as De-Facement.» MLN 94, no. 5 (1979): 919–30. https://doi.org/10.2307/2906560.

Sampaio, Ernesto. Luz Central. Org. intro. e notas Zetho Cunha Gonçalves. Porto – Lisboa: Língua Morta & Maldoror, 2023.


[1] Pense-se, por exemplo, na queda de Satanás em Paraíso Perdido ou, no contexto português, na poesia de Nuno Guimarães.

[2] Ernesto Sampaio, Luz Central, 61.

REFERÊNCIA:

Soeiro, Ricardo Gil. Lições da Miragem. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024.