Hugo Miguel Santos

Muito se tem escrito sobre o falhanço quase generalizado das mais diversas celebrações dos cinquenta anos do 25 de Abril e dos quinhentos anos do nascimento de Camões. Datas deste jaez têm uma função simbólica e profundamente identitária que mereceria ser discutida fora dos trâmites habituais da discussão político-partidária.

De uma forma quase consensual, poderíamos dizer que as efemérides participam num domínio narrativo que é basilar na constituição e manutenção de uma comunidade. Figuras como o poeta da pátria Camões ou eventos como o 25 de Abril devem ser entendidos enquanto histórias fundacionais que participam no desenvolvimento (e na perpetuação) de uma identidade concreta—neste caso, a «portuguesa»—que configura um imaginário partilhado por todos os habitantes de um país e por todos os falantes da sua língua oficial. Assim sendo, a forma como se interpretam as narrativas associadas a estas duas efemérides (os 50 anos do 25 de Abril e os 500 anos de Camões) podem ser preponderantes no enraizamento de uma visão ideológica sobre o que significa ser ou falar «português» hoje.

No entanto, é certamente mais questionável a sua relevância na programação cultural dos nossos teatros ou museus. Um exemplo disso mesmo é o espectáculo As Grandes Comemorações Quase Oficiais Do Período Histórico Habitualmente Conhecido Como Processo Revolucionário Em Curso[1] «organizado», o verbo é da inteira responsabilidade dos autores, pela «Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO – Companhia de Teatro». Que tentou representar certas narrativas e estereótipos ligados à narrativa «25 de Abril», mais do que ao evento originário, de uma forma «intimamente parcial. De esquerda. Antirreacionári[a] e antifascista. E, por isso mesmo, (...) celebratóri[a], festiv[a] e popular»[2]. É uma quase evidência que o teatro é sempre parcial, como qualquer forma de arte ou construção humana. São os restantes termos—esquerda, anti-reaccionária, celebratória, festiva e popular—e a forma simplista como são tomados que se tornam mais problemáticos, nesta peça composta por «Onze Precformances», trocadilho particularmente pueril, com encenação de Gonçalo Amorim e coordenação dramatúrgica de Rui Pina Coelho, a partir de textos de Joana Bértholo, Joana Craveiro, Jorge Louraço Figueira, Jorge Palinhos, Lígia Soares, Pedro Goulão, Sérgio de Carvalho e do próprio Rui Pina Coelho.

Um caso paradigmático de algumas das deficiências centrais deste espectáculo é a «Precformance Dez», O Alerta não ganhou de Joana Bértolo, uma transposição de tal forma literal do Festival da Canção de 1975 que se torna difícil entender o que restou da prometida «fantasia» pelo programa de sala neste pastiche «documental». O povo surge-nos aqui na sua dimensão festivaleira através das letras das canções «Alerta» e «Madrugada» ou dos personagens José Mário Branco ou José Luís Tinoco, retratados de uma forma tão unidimensional, muito mais do que parcial, que ofenderia certamente os mesmos. Perdendo-se, assim, uma oportunidade para pensar, por exemplo, o lugar da televisão e do Festival da Canção, enquanto meios eminentemente ligados à sociedade do espectáculo e à cultura de massas, tanto naquela altura como agora—o que teria sido interessante não só numa criação que se diz parcial ou de esquerda, como em qualquer texto dramático ou espectáculo teatral que se apresentasse de uma forma verdadeiramente crítica em relação aos meios que aborda e, já agora, ao seu próprio medium.

Outro dos equívocos deste espectáculo, e não só desta precformance, é a forma como se confunde imparcialidade com unidimensionalidade; ou seja, um posicionamento político, o ser de esquerda, com a ausência total de crítica. A tão proclamada parcialidade de esquerda desta peça serve unicamente para perpetuar estereótipos e clichés sobre o P.R.E.C.—e nesse aspecto são paradigmáticas as precformances em que assistimos a tribunais populares, ou a espectáculos criados por colectivos «populares» e necessariamente «de intervenção», num exagero caricatural que, uma vez mais, se torna degradante para os retratados por este binarismo bacoco: por um lado, o «povo» e, por outro, os «maus» que podem ser «os fascistas» ou a «C.I.A.».

A redução ou simplificação do «povo» a uma horda uniforme de pessoas vestidas com camisas de flanela e calças de ganga, desprovida de matizes, é só mais uma forma de perpetuar tudo aquilo que há de mais reaccionário nas mais diferentes figurações do P.R.E.C. e da história da resistência anti-fascista portuguesa. E é aí que uma parte da esquerda pretensamente «celebratória» se iguala à direita reaccionária que supostamente pretende atacar: ambas comungam deste mesmo imaginário folclórico e essencialista, não só relativamente ao P.R.E.C., mas em relação aos conceitos políticos. E, já agora, em relação à própria definição de teatro. Com uma única diferença: a direita reaccionária ou populista apoderou-se na nossa época de certos conceitos que já foram centrais à esquerda; entre os quais, «povo», como António Guerreiro referiu numa das suas crónicas mais recentes[3]. Já a esquerda dominante não parece ser capaz de se apropriar de nada.

A este propósito torna-se particularmente divertido ler o texto escrito por Paulo Vila Maior, no jornal Observador, sobre este mesmo espectáculo[4]. Nele, o Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra afirma que, num registo algo insosso, por mais que o autor tenha procurado servir-se da ironia, que aprendeu «com a peça que os que pactuam com o regime em vigor são burgueses, vendidos ao capitalismo (ou por ele hipnotizados) e metidos num largo baú onde medram como “fascistas”». A utilização do verbo aprender associado a este espectáculo é a parte mais feliz do texto de Vila Maior, apesar da sua notória involuntariedade. Este espectáculo organizado, convém não esquecer, pela Comissão de Festas do TEP e da ASSéDIO, parte da crença precipitada de que se sabe aquilo que foi o P.R.E.C. e que um espectáculo sobre o mesmo deve ser entendido como uma exposição ou transmissão num formato quase escolar. E o espectador, deste modo, constitui-se como alguém que vai aprender ou alguém que já aprendeu, como é o caso do Professor Paulo Vila Maior, e que decide discutir com os professores-tiranos-de-esquerda a matéria leccionada erroneamente.

Talvez seja este o ponto central do consenso que está sempre na base das polémicas entre a esquerda-caricatural e a direita-caricatural, aqui representadas pelos organizadores do espectáculo versus o «espectador zangado e de direita»: para ambos os lados da trincheira, o mundo divide-se sempre entre duas facções, tal como as mais pueris histórias de embalar com os seus «santos» e «pecadores». A diferença de fundo é que para a esquerda-caricatural, os «santos» são os «populares», os «revolucionários» ou os «intelectuais de esquerda» e os papéis de «vilões» ficam entregues aos «burgueses», aos «fascistas» e aos «capitalistas»—e para a direita-caricatural é o avesso disto.

O teatro, ou seja qual for a forma artística em causa, que deveria ser a matéria de um espectáculo teatral, torna-se completamente acessória. E não passa de um meio para se dar a aula ou reagir à mesma. Já não se trata sequer de Teatro Didáctico à boa maneira brechtiana, mas de uma espécie de «Teatro de Serviço Público», sempre preparado para contribuir para a estabilização das consciências da classe dos bem-pensantes. Ou seja, um «Serviço à Pátria e à Democracia dos Decentes».

Para a Comissão Organizativa deste espectáculo, o P.R.E.C. serviu de mote para educar e alertar os espectadores para o perigo que as novas direitas populistas representam para a democracia. E para o espectador-cidadão-informado-de-direita, como é o caso de Paulo Vila Maior, a sua crítica configura-se analogamente como um Serviço Público, na medida em que tenta alertar os seus concidadãos e espectadores para o terrível perigo deste Teatro Ideológico da Esquerda Radical que está a tentar alienar o povo através de um processo de revisionismo estalinista do passado histórico recente da «Pátria Portugal»:

Se pudessem mudar o curso da História, os saudosistas do PREC não teriam permitido eleições e teriam demitido (ou condenado a degredo, ou a cárcere) uma parcela considerável do povo. Justamente todo aquele povo que, em sucessivas eleições, foi condenando os partidos da extrema-esquerda à insignificância[5].


Repare-se, uma vez mais, como o «povo» está sempre na boca de ambas as facções. As pessoas em concreto, os seus nomes, as suas angústias e as suas batalhas travadas quotidianamente não interessam para absolutamente nada.

O teatro e este espectáculo, mais especificamente, reduzem-se voluntariamente em prol da perpetuação de uma polémica de pacotilha, profundamente superficial, que serve apenas para serenar a potencial consciência política dos seus agentes que executam os respectivos lugares. Se quisermos, derruba-se a «quarta parede» (como também já é cliché nos espectáculos desde há algum tempo) numa espécie de mimesis da mimesis em que os espectadores se limitam a ter de decidir a qual das trincheiras querem pertencer, representando os lugares-comuns que se desenrolam em cima das tábuas e, conseguintemente, isentando-se de qualquer questionamento estético (e, já agora, político) sobre os termos da actuação.

Pior ainda: os actores tornam-se simples marionetas de uma história mil vezes repetida, o que se torna particularmente lamentável num espectáculo em que se deve sobretudo elogiar o desempenho de Daniel Silva, Pedro Galiza, Maria Inês Peixoto, Tomé Pinto, Eduardo Breda e Telma Cardoso. A actuação de Telma Cardoso é, inclusive, um caso paradigmático pela forma como conseguiu salvar o monólogo da autoria de Lígia Soares, O Vestido, de uma direcção erotizante, num sentido quase marialva do termo, e desprovida da tão prometida fantasia. Já agora, convém destacar este texto de Lígia Soares, a par de O Fado da Revolução de Jorge Palinhos, precisamente pela forma como se conseguem debruçar criticamente sobre os dispositivos ideológicos e formais que convocam.

No caso do texto de Jorge Palinhos, a simples convocação do Fado adquire uma dimensão quase onírica, neste contexto, se recordarmos que este género musical se encontrava praticamente dissociado da Música de Intervenção vigente na época do P.R.E.C, apesar de alguns dos seus expoentes, como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, terem começado no Fado de Coimbra. Aliás, a associação do Fado ao regime salazarista e, por conseguinte, a um certo sector mais conservador permaneceu predominante até quase ao final do século XX. Basta recordar, a título de exemplo, o ensaio A Mitologia Fadista de António Osório, publicado em 1974, que analisava as ramificações sociais e políticas do fenómeno fadista na sociedade portuguesa. E a sugestiva metáfora de Fernando Lopes Graça, na contracapa da primeira edição, que qualifica o Fado como um «cancro da vida e da cultura nacionais»[6]. Posto isto, quando Palinhos apresenta uma paródia musical, na qual se assiste a um fado à desgarrada entre um cliente que pretende expropriar a taberna e um taberneiro que procura defender a sua propriedade, subverte e recombina subrepticiamente géneros musicais aparentemente opostos—entenda-se, a Música de Intervenção e o Fado.

Por outras vias, o monólogo de Lígia Soares desloca-se do imaginário mais estrito do P.R.E.C., sem deixar de assumir um tom crítico em relação à sociedade capitalista, à cultura de massas e, ainda, ao lugar da mulher no seio delas, concentrando-se num único símbolo—neste caso, um vestido de gala—que parece desprovido de qualquer tempo ou espaço concreto, antes apontando para várias épocas e para cenários diversos. E é esta ausência de referentes estáveis que transporta o texto para uma dimensão de questionamento que vai muito além das meras simplificações partidárias ou clubísticas. Mas, infelizmente, os textos de Palinhos e Lígia Soares acabam por configurar-se como duas pequenas ilhas num espectáculo demasiado extenso e numa colagem de textos sem um fio condutor minimamente compreensível, sempre mais preocupado em demonstrar um sentido de voto ou uma espécie de boa vontade messiânica, do que em fazer teatro. E muito menos crítica.

Por fim, talvez não seja precipitado assumir-se que um dos perigos fundamentais de usar uma arte como veículo para assinalar efemérides é que se acaba por perder tanto a arte como o sentido das próprias efemérides. E, no entanto, talvez possamos perguntar: qual é a festa que se segue? Os quarenta anos da adesão de Portugal à C.E.E.? O fim do domínio filipino? A certidão de nascimento de Cristóvão Colombo? A lusa vitória da Eurovisão? Enfim, seja qual for o assunto, haverá sempre quem já saiba as respostas.


[1] O espectáculo foi apresentado no Teatro Carlos Alberto, no Porto, entre os dias 3 e 6 de Outubro de 2024.

[2] https://www.tnsj.pt/pt/espetaculos/7002/as-grandes-comemoracoes-quase-oficiais-do-periodo-historico-habitualmente-conhecido-como-processo-revolucionario-em-curso

[3] António Guerreiro, «Nem Direita nem esquerda, algo muito pior», in https://www.publico.pt/2024/10/18/culturaipsilon/cronica/direita-esquerda-algo-pior-2107994.

[4] Paulo Vila Maior, «O PREC e uma barrigada de riso em forma de teatro», in https://observador.pt/opiniao/o-prec-e-uma-barrigada-de-riso-em-forma-de-teatro/.

[5] ibidem.

[6] António Osório, A Mitologia Fadista, 1ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, Junho de 1974.

REFERÊNCIA:

Amorim, Gonçalo, encenador. As grandes comemorações quase oficiais do período histórico habitualmente conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso). Porto: Teatro Carlos Alberto, 3-6 Outubro, 2024.