Miguel Zenha

No seu Ways of Worldmaking, Nelson Goodman alega que a literatura não possui «valor de verdade»[1]. Segundo a tese de Goodman, que encontra no conceito «sintomas do estético» de Languages of Art um tratamento exaustivo, a literatura não é redutível a um conteúdo proposicional, ou seja, em rigor não declara coisa alguma. Nesse sentido, Goodman vê como imprestável a oposição entre realidade e ficção: olhar para a literatura com uma grelha que opõe verdadeiro e falso, pondo factos do lado verdadeiro e ficção do lado falso, não faz grande sentido. Goodman considera a arte uma maneira de interpretar tão legítima como, por exemplo, a ciência. Mas a legitimidade da literatura afere-se com dificuldade recorrendo a categorias críticas empenhadas em medir graus de conformidade da literatura face à realidade ou à verdade. De se sugerir que «a realidade» não é decisiva quando lemos poesia não se segue conceder poderes mágicos a poemas: trata-se, sim, de defender a ideia de que estamos perante uma forma particular, que encaro aliás como circunscrita, de descrever coisas a que a dado momento queremos prestar atenção. Um corolário da tese de Goodman, parece-me, é considerar «o quotidiano» uma categoria crítica inútil. Se entendermos por «quotidiano» aquilo que um poeta—na verdade, qualquer pessoa—experiencia, i.e., o que experimenta e imagina, tal não quererá dizer grande coisa. Estaríamos a equiparar poetas tão diferentes como Hölderlin e Cesário Verde sem se perceber o motivo, uma vez que aquilo que um poeta faz é justamente escrever acerca daquilo que experiencia. E dessa forma apelar ao quotidiano seria, na melhor das hipóteses, redundante.

Isto para dizer que um dos planos cruciais de Adrenalina é a omnipresença de elementos—palavras, expressões e descrições de acções—que costumamos associar a um certo dia-a-dia. Entre outros, refiram-se «arrumar a cozinha»; «IRS»; «aquecer o jantar»; «computador portátil»; «copo-d’água»; «GPS»; «supermercado»; «cantavam flamenco»; «vinho tinto» ou «tomar café». Contudo, a falência do livro é precisamente assinalada pela articulação desses elementos. Indicativo dessa articulação é um suporte metafórico pobre, visível nomeadamente nos seguintes três casos: «pasteleiros de máscara/de ferro a fazerem bolos doentes para hóspedes doentes» (p. 13); «o amor é uma casa na praia/com cabeleiras de algas caindo nas janelas/e um cheiro verde a inaugurar o novo amor» (p. 60); «e na cave um eco/como o bater do coração» (p. 80). Quer dizer, a tentativa acentuada de figuração é bastante questionável. Por um lado, a reiteração da palavra «doentes» transparece mais displicência do que a permuta persuasiva de atributos entre coisas tão diferentes—a isso vem juntar-se a imagem canhestra «bolos doentes»—e, por outro lado, a tonalidade sentimental é, pior do que maviosa, lamechas, já que a alocução «o amor é» de tão previsível tende a revelar-se fracassada à partida. A comparação «eco/como o bater do coração» é inconsistente de tão corriqueira.

Vejamos como o quotidiano, convertido em referência hegemónica, força um «valor de verdade» ao situar a generalidade das descrições do livro numa resignação constante perante «a realidade». Com efeito, observe-se o primeiro poema do livro, transcrito na íntegra:

 

Hoje salvei um bichinho-de-conta enquanto arrumava a cozinha
(tirei-o do lava-louça com um papel e atirei-o pela janela)
e pensei que Deus pudesse salvar-nos também
enquanto arruma a cozinha d’Ele
mas, por favor, sem nos atirar pela janela.
Amém.

 

Este poema é sintomático da estratégia de Filipa Leal. Os primeiros versos acentuam o tal dia-a-dia convocando uma dimensão conceptual próxima ou imediata. Com «Deus», o poema adquire porém um tom que quererá parecer auto-irónico ou mordaz. Mas a combinação das duas dimensões tolhe o poema: a ideia de domesticidade em presença está demasiado testada, sendo ainda por cima rematada com uma toada satírica ornamental. De facto, estas dimensões assentam em dois movimentos prosódicos que pontuam a generalidade do livro: um tom faceto e um propósito moral.

«Noctívaga», o segundo poema do livro, começa com uma injunção de sinal negativo: «Não esperem dos poetas» (p. 10). Entre outras coisas, «mensagens a horas», «pedidos de desculpa» ou «fruta cortada na hora» (ibid.). Isso porque «o poeta gosta da palavra alcatifa, apesar das alergias» (ibid.). Um aparte para sugerir que se tornou difícil ler a palavra «alcatifa» e não pensar no extraordinário texto «Alcatifa» com que Miguel Esteves Cardoso, nomeado pela autora no poema «Quadro de cortiça», abre A Causa das Coisas. Um dos sinais da qualidade de um escritor é precisamente cunhar vocabulários. Regressando a Filipa Leal, a injunção em causa insufla, porém, o poema ao esconder com dificuldade uma gravidade caída de pára-quedas. É que aqueles enunciados prosaicos terminam do seguinte modo: «Não esperem de um poeta uma amiga imaginária/Esperem de um poeta uma cadela imaginária/a que os vizinhos, por hábito, chamam noctívaga.» (ênfase no original, p. 11). O rufar dos tambores veiculado pela injunção «Não esperem de um poeta» deu numa situação facilmente antecipável: depreende-se que «uma amiga imaginária» fosse demasiado dócil e assim «uma cadela» concede uma aura de desobediência, ou irreverência, existencial. E aqui encontra-se de maneira emblemática a debilidade da moral com que Filipa Leal aprisiona os seus poemas. Enxertando um lema, conferindo uma dimensão pretensamente densa, este livro, no entanto, satura o «quotidiano» com um acento deliberativo contrafeito.

Um outro exemplo das máximas com que Filipa Leal coroa discutivelmente Adrenalina encontra-se no poema «O meu guardanapo de papel». Comece por notar-se que a repetição da expressão «o meu guardanapo de papel» ao longo de todo o poema, oito vezes pelo menos, converte-o numa lengalenga, ou seja, em algo xaroposo em vez de descomprometido. «Sempre tentei ser eu mesma,/como toda a gente./Mas, pensando bem,/talvez tivesse preferido ser sempre/e só/um unicórnio» (p. 17). De novo uma moral radicada num mero apetite de evasão.

Na verdade, Filipa Leal constrói uma dicção poética que começa por se apresentar espontânea, mas que é depois aniquilada por lamúrias edificantes. Exemplares são, entre outros, os poemas «Avó Isabel» e «Avó Dores». O primeiro fecha desta forma: «Esperei que ele se virasse./Roubei a flor./A flor também não era do polícia./E não era de polícias que eu tinha medo.» (p. 21). É com um encolher de ombros que se lê a conclusão do poema, pretensa apoteose reflexiva que não descola do rodapé. A moral é tão deslocada e absurdamente resoluta que a questão já nem é o poema ser somente protocolar, mas não conseguir deixar de ser insignificante. O piscar de olho a algo mais complexo do que a lembrança da «avó Isabel» chama a atenção para uma tendência que se começa a entranhar em Adrenalina, e que é a da adopção de uma receita, a da fidelidade a um manual escolar de como escrever poemas. Quanto a «Avó Dores», é aí descrita uma «avó» que vai à casa de banho durante a noite sempre de luz apagada. «Pensavam que era avareza» (p. 22), mas não, «era para me ir habituando à morte.» (p. 23), diz a «avó». O problema não está em integrar, se se quiser, a finitude humana numa «casa de banho». O problema é a descrição assentar em metáforas ineficientes, na medida em que são produto de um tom sentencioso inócuo, cuja implicação mais proeminente é tornar o familiar inexpressivo.

Observe-se desta feita «A porta de Georgia O’Keefe». A Georgia O’Keefe de Adrenalina «precisava/daquela porta» e por isso «comprou a casa para poder ter/a porta», ou seja, «a porta era para poder entrar e sair/da pintura sempre que quisesse» (p. 32). Assim, «pintou umas 20 vezes a porta/(não a porta em si, mas a representação da porta)» (ibid.). E «em 1986, os jornais disseram que morreu», o que «Não era mentira, mas também não era bem verdade./Não se diz isso de quem pintou portas, flores,/montanhas e os arranha-céus de Nova Iorque» (ibid.). Moral da história: «Georgia O’Keefe entrou e não saiu» (p 33). O género de platitude já natural, mas agora instilada por uma gravitas filosófica — «a representação da porta» — que salienta a ausência de criatividade. Entrar e sair em vez de viver e morrer. A troca de conceitos revela-se improcedente: qual será o ponto, o de que os artistas não morrem como as outras pessoas? Que vivem e permanecem nas suas obras? Se forem essas as teses, além de monótonas, são apenas balbuciadas ao não serem demonstradas. A admoestação, aliás, o ralhete contido em «Não se diz isso de quem», só piora o cenário.

Tal como numa «cozinha», «Deus» também pode ser encontrado num «supermercado de Xabregas» (p. 68). Mas a alguém com «vontade de chorar» porque «o rapaz da caixa» é «demasiado competente» (ibid.) a ensacar as compras, o Deus das pequenas coisas de Adrenalina tem para oferecer a presença inapelável e dura da realidade de todos os dias: «Arrumei as compras devagar, levei o saco devagar./Quando cheguei ao carro, estava multada» (p. 69). Novo encolher de ombros ante a persistência em ditos dogmáticos como versos finais. Um último exemplo que vem atestar a mediania a que Adrenalina fica reduzido devido à persistência em causa é o poema «Recado a Paulo Leminski», que transcrevo na totalidade: «Caro Paulo Leminski,/Aos 11 anos, também eu queria ter dedicado/a minha vida toda à poesia./Depois cresci e fui interrompida./Crescer é ser interrompido» (p. 103). Aparentando numa primeira leitura simplicidade e clareza, Filipa Leal revela de facto um intuito moralizante que não convence. Isso visto que esse intuito recorre a gestos retóricos vazios de que «crescer é ser interrompido» é uma amostra consumada. Tentativa de aforismo cujo carácter espúrio é ainda assim impossível de ignorar.

Refira-se um outro aspecto menos conseguido do livro, em ligação estreita aliás com aquele tom que se pretenderia descomprometido ou jocoso. Uma das versões dessa dimensão é o uso de trocadilhos e jogos de palavras. Exemplifico com versos e títulos: «(quem nunca quis ter uma nuvem/ponha o dedo no mar)» (p. 44); «Ler à sombra./Ler assombra» (p. 61); «Pedro, homem de mel» (p. 88); «Um estereótipo é, tipo, como fazer o protótipo/de um eucalipto» (p. 96); «Variações Carlsberg» (p. 97); «Os poetas são/pagos a pão/de ló./Os poetas só/pagam/as contas/quando ganham/o Prémio Nó.» (p. 102). A poesia não tem de ser ensimesmada nem avessa ao humor, mas a alternativa não passa por tiradas de um mau gosto penoso.

Reforce-se que a questão está longe de se prender, em abstracto, com palavras como «GPS», «IRS» ou «lava-louça», mas com o uso que Filipa Leal lhes dá. Tomar como objecto de análise em poesia coisas de utilização corrente não é nem proibido nem contestável. O uso que Filipa Leal lhes dá é insatisfatório desde logo porque não liga o lado jocoso com o lado moralizador. Tal articulação não funciona porque à medida que vamos lendo o livro a articulação torna-se cada vez mais pastosa. O lado mordaz é engolido pelos simulacros de profundidade apontados. Dito de outra forma, a brisa de sensatez localizada no quotidiano é moldada à luz de um contexto que alguém minimamente perspicaz vê como apenas cerimonioso, ou seja, como fruto de propósitos enfatuados advindos de ideias sem dinamismo. Este livro não consegue furar uma órbita de superficialidade: nem os elementos marcadamente mundanos, nem os lemas conclusivos que encerram certos poemas, se chegam a constituir como figuras ao não adquirirem espessura tropológica, ficando-se pelo esquema automático de denotação de lugares-comuns e então longe de um nível discursivo persuasivo. Em concreto, parece-me estar em causa em larga medida tão-só o traslado de fórmulas que encontramos em Adília Lopes, Jorge Sousa Braga, Alexandre O’Neill ou Fernando Assis Pacheco.

Lê-se em «Medir a temperatura» o aviso que se segue: «se te vierem perguntar se andas a escrever como eles querem,/manda-os embora» (p. 38). Mas o que Filipa Leal faz é precisamente escrever «como eles querem». «Eles» funciona como sinédoque de um público que espera da poesia a confirmação de estados de alma. Regra geral, numa manifestação de um reconhecimento estudado, esse público profere «li e identifiquei-me». É a um acto comunicativo em sentido estrito, a uma troca de chavões que Adrenalina corresponde, ou seja, consiste numa jura de conforto e consolação insossos. Quer dizer, Adrenalina tem como gesto definidor a banalidade porque nenhum dos objectos de análise centrais consegue trocar a indolência pela reflexão. E poemas que se queiram fazer valer enquanto mensagem são frustrados por um argumento como o de Goodman. Não ter «valor de verdade» significa recusar remeter para um universo palavroso, no qual «o quotidiano», ao pretender ser uma resposta «mais real» ou verdadeira acaba, contudo, por ser exibição de incapacidade inventiva.

Subjugando qualquer indício de originalidade, a atmosfera postiça castiga a curiosidade com que se pudesse partir para o livro. Ao «escrever como eles querem», Filipa Leal não propõe um enquadramento referencial engenhoso, i.e., despreocupado com uma adequação descritiva necessária em relação à «realidade». Adrenalina peca por obstinar-se com um horizonte do quotidiano soporífero, que se cobre de singelo só para ser revirado por lições opiniosas. Assim, de tanto ostentar a intenção em querer ser prosaico, Adrenalina não é outra coisa senão bisbilhoteiro, e aquele quotidiano redundante degrada-se em quotidiano embaraçoso.

[1] Nelson Goodman, Ways of Worldmaking. Harvester Press, 1978, p. 19.

REFERÊNCIA:

Leal, Filipa. Adrenalina. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024.