Amanda Santos
O cinema de Éric Rohmer é frequentemente identificado pelo predomínio da fala e do diálogo entre personagens. «Um filme rohmeriano é um em que as pessoas falam, e falam muito», diz Richard Brody para a New Yorker.[1] É um mundo em que «a fala é ação», descreve Molly Haskell.[2] Entretanto, ao reassistir O joelho de Claire (Le Genou de Claire, 1970), mais do que a prevalência da fala, interessou-me o contraste entre a linguagem das palavras e aquela do corpo, entre o que é dito e o que é feito; como se a construção intrincada que os personagens fazem sobre si mesmos, sobre os próprios desejos, se desmontasse a partir de gestos simples, pelo modo como se movem diante da câmera. Em O joelho de Claire, um homem pode reiteradamente dizer que não se interessa mais por mulher alguma além da própria noiva e logo em seguida abraçar e acariciar sua amiga ambígua, tentar beijar uma adolescente, ou observar obsessivamente outra menina.
Se parte da crítica que Rohmer elabora sobre outros realizadores e sobre si mesmo concentra-se na defesa da palavra como elemento integrante do cinema, esta perspectiva apoia-se nas possibilidades de contraste dela com a imagem. No ensaio «Pour un cinéma parlant [Por um cinema falante]», Rohmer opõe-se ao uso indiferente ou redundante da palavra no cinema e elogia o trabalho de Orson Welles pelo «deslocamento entre o significado da palavra e aquele do elemento visual»[3]. Rohmer compara a palavra na literatura e no teatro com a palavra no cinema; que possibilitaria explorá-la como «trompeuse», enganadora, mentirosa.
De fato, o primeiro impulso ao notar este contraste entre fala e gesto é de atribuir falsidade às palavras ditas pelas personagens, e verdade àquilo que elas fazem com os corpos, mas há nisso algo de incômodo, de incompleto. Talvez não seja tanto uma questão de atribuir verdade ou falsidade a um modo de expressão, e sim de enxergar como o filme repousa nesta tensão entre impulsos contraditórios. No ensaio «Réflexions sur la couleur [Reflexões sobre a cor]», Rohmer afirma que o movimento é a matéria sobre a qual o cinema trabalha: «O que lhe [ao cinema] importa um rosto, senão que ele se acalme ou se enrugue conforme o ritmo que escolheu? O que lhe importa a folhagem, exceto que ele faça do seu balanço a sua beleza?»[4] Em entrevista ao The New York Times, Nestor Almendros, o cinematografista que trabalhou com Rohmer em vários de seus filmes, incluindo O joelho de Claire, afirma: «Rohmer quer que a câmera mal se mexa, alguns short pans, zooms lentos, é tudo.»[5] Se a câmera se fixa, é precisamente para captar o movimento daquilo que filma.
O desejo aqui move-se por caminhos indiretos, precisa ser sempre justificado por algo além de si mesmo. Este filme é o quinto do projeto Seis Contos Morais, narrativas em que um homem comprometido a uma mulher se encontra atraído por outra. O diplomata Jérôme (Jean-Claude Brialy), de 35 anos, passa as férias em Annecy, onde tem uma casa que pretende pôr à venda. Lá encontra uma antiga amiga, possivelmente ex-namorada, a escritora Aurora (Aurora Cornu, romancista e tradutora romena), a quem conta que está noivo de Lucinde, uma mulher que só existe por foto, recortada em um retrato. Ao notar a atração que a adolescente Laura (Béatrice Romand) sente por Jérôme, Aurora propõe que este seja sua cobaia para o desenvolvimento de uma personagem de um conto.
O pacto funciona porque Jérôme não quer admitir que sente atração por meninas adolescentes, o seu modo de agir tem que ser resultado de um outro pretexto. Coloca-se como objeto do outro para não reconhecer a violência do seu desejo de dominância, só age como suplente. A justificação é com frequência esta: fez para agradar, para obedecer, teve que se forçar, nada lhe interessa, não tem vontades.
A partir das discussões entre Aurora e Jérôme sobre o projeto literário para o qual estão a colaborar, ela como escritora que o observa para escrever a respeito, ele como personagem que age para ser observado, o filme torna explícitos os fios de desejo que o percorrem em paralelo. Intradiegeticamente, o desejo da personagem-escritora e o desejo da personagem-cobaia; extradiegeticamente, o desejo do realizador e o desejo do espectador. Jérôme tem de agir para que Aurora possa escrever a respeito, tem de agir para que Rohmer possa fazer o filme que quer e para que nós o possamos assistir a agir.
É ao discutir qual prazer uma audiência pode sentir ao assistir a um filme que Laura Mulvey define alguns componentes do male gaze no cinema hollywoodiano: a identificação do espectador com o protagonista masculino; a fragmentação do corpo feminino; a cumplicidade da mulher-objeto com a câmera-homem; o prazer do olhar como posse e controle, «um senso satisfatório de onipotência»[6]. Quando há um desequilíbrio de poder entre homens e mulheres, em que a atividade é atribuída ao primeiro e a passividade à última, o olhar masculino é portanto ativo, age sobre quem é vista, molda o corpo da mulher para atender à sua fantasia. Este corpo é recortado e exibido de forma a interromper o avanço da narrativa, é um espetáculo para criar «impacto erótico»[7]. A narrativa e a construção da personagem feminina também são recursos para produzir o prazer da posse: fazer a personagem se apaixonar pelo protagonista é uma forma de fazê-la se apaixonar pelo espectador. A identificação com o protagonista é fundamental para que essa cadeia possa ter desenvolvimento; se ela falha, o prazer falha. Em O joelho de Claire, a presença ou ausência destes elementos é concatenada de modo a complicar, senão subverter, o male gaze.
Quanto à identificação, a maior parte do filme é composta por ocasiões em que Jérôme está presente. À primeira vista, é dele que quem assiste é cúmplice. Há acontecimentos que só se descobrem quando Jérôme os descobre, por meio das outras personagens que os testemunharam. A primeira intuição é de que o fim do filme marcaria uma desidentificação com Jérôme, por mostrar um momento em que ele está ausente: é quando se vê Claire (Laurence de Monaghan) interagir com o namorado, Gilles (Gérard Falconetti), após a partida do diplomata. O olhar então é de Aurora, é a partir da perspectiva dela que se vê Claire conversar com Gilles.
Ao retornar ao início do filme, a chegada de Jérôme, no momento que enquadra o início da narrativa há uma identificação dupla: Jérôme a partir do olhar de Aurora, a guiar o barco, e Aurora a partir do olhar de Jérôme, em pé na ponte. Ele é tanto o agente do olhar quanto o seu objeto. Os episódios que compõem O joelho de Claire são sempre apresentados como entradas em um diário, e esta ambivalência de olhares leva à pergunta: de quem são estes apontamentos? De Jérôme, a personagem-cobaia, ou de Aurora, a escritora?
Ver Claire pela primeira vez é ver o seu corpo. Ela aparece vestindo um exíguo biquíni azul e no restante do filme suas pernas estão sempre à mostra. Se como espectadora é possível ser cúmplice do olhar de Jérôme, Claire, por outro lado, não é cúmplice da própria objetificação. Claire está imersa na própria vida, não tem ciência de Jérôme nem do olhar que a fragmenta. A presença de Claire, ou melhor, do seu joelho, é prometida pelo título, e este pode ser o primeiro desejo que se pode experimentar como espectador: entender o que é o joelho de Claire, enfim vê-lo. O joelho só aparece depois dos primeiros 40 minutos, que são marcados pela antecipação dessa presença.
O desejo de Jérôme tocar este joelho cristaliza-se quando vê outro homem, Gilles, executar a ação, enquanto o casal assiste a uma partida de tênis. Como Jérôme tem mais propensão a experimentar as diferentes possibilidades das palavras, de aproveitar a sua maleabilidade, do que o caráter definitivo das ações, a experiência de ver este filme é uma experiência de prolongação do desejo, que permanece suspenso e depois se frustra. Os discursos que se constroem em torno desse desejo são vários: é uma forma de prolongar o seu projeto como cobaia «desinteressado» de Aurora, transferindo a atração fabricada por Laura para uma atração fabricada por Claire; é também um direito de posse concedido pela própria força do desejo de tocar o joelho de Claire. O próprio ato de falar sobre o desejo precisa ser minimizado, disfarçado: «Quando falo dou à coisa uma importância que ela não tem», explica-se Jérôme a Aurora. Mas ao contrastar o que Jérôme diz com o que faz, o modo como seu olhar sempre procura Claire, vê-se que na verdade a atração que sente tem muita importância.
As características que Jérôme atribui ao joelho de Claire são as mesmas do restante do corpo, aquelas que o diplomata afirma ser as que lhe atraem numa mulher: fragilidade, magreza. Esta atração dá-se em um campo de jogos de poder, e faz sentido que tocar o joelho torne-se uma possibilidade quando Jérôme consegue fragilizar Claire emocionalmente ao contar que viu Gilles traí-la com uma amiga. Se em um dos primeiros diálogos do filme o protagonista afirma que é incapaz de ver uma moça bonita a chorar, que isso o desarma completamente, é justamente quando Claire chora que vemos Jérôme exercer o seu poder. A posse do joelho é dissimulada, racionaliza, como uma boa ação, um ato de consolo enquanto Claire chora. O que lhe interessa é que o desejo não se revele diretamente e se mantenha oculto para o objeto deste desejo (é possível argumentar que o objeto não é Claire e sim o joelho desta, que o objeto não é a mulher e sim a mulher fragmentada, a própria fragmentação, a própria possibilidade de poder separar um joelho do resto do corpo). Se a posse do joelho expurga o desejo para Jérôme, para quem assiste ela é incômoda.
No momento em que Jérôme toca no joelho, não há cumplicidade no olhar de Claire, ela chora, está triste, com ciúmes, com raiva, assustada, ferida. Rohmer poderia mostrar apenas o joelho, mas escolhe mostrar também o rosto de Claire. Mesmo quando mostra apenas o joelho, esta imagem coexiste com o som do choro da personagem. Não se pode resumir Claire à parte do corpo que, indiretamente por Jérôme, se gostaria de possuir. E neste momento, o prazer de possuir um corpo é substituído pelo sofrimento de empatizar com a dor dessa pessoa. Empatizar com essa dor é reconhecer a impossibilidade da posse plena; a posse é, portanto, insatisfeita.
Tocar o joelho de Claire é, afirma Jérôme, «a coisa mais heroica» que já fez. Este filme traz consigo uma definição particular de heroísmo. Numa cena anterior, Jérôme e Aurora contemplam uma pintura que retrata um dos capítulos de Dom Quixote. É a cena em que o protagonista e Sancho Pança, vendados e montados a cavalo, acreditam estar a viajar pelos ares; atrás, dois homens carregam objetos para ludibriá-los: o fole cria a ilusão do vento e a tocha a ilusão do sol. «Os heróis de uma história têm sempre os olhos vendados», diz Aurora, «senão não fariam mais nada.» O prazer não é o do male gaze, de gozar da cumplicidade de partes de um corpo feminino diante da câmera-homem, e sim de reconhecer uma verdade, de conhecer o que há de cruel neste olhar masculino, no momento em que se para de ver o que Jérôme vê para ver o que ele não vê, o que ele não quer ver. O filme é um conto moral porque Rohmer não nos permite sentir prazer sem desconforto.
[1] Richard Brody, «Looking Behind Éric Rohmer’s Cinematic Style,» New Yorker, 24 de março 2021, https://www.newyorker.com/culture/the-front-row/looking-behind-eric-rohmers-cinematic-style/.
[2] Molly Haskell, «Claire’s Knee: Rohmer’s Women,» Criterion, 14 de agosto 2006, https://www.criterion.com/current/posts/438-claires-knee-rohmers-women/.
[3] Éric Rohmer, «Pour un cinéma parlant», em Le Gout de la Beauté, editado por Jean Narboni. Paris: Cahiers du Cinéma, 2004, 61.
[4] Éric Rohmer, «Réflexions sur la couleur», em Le Goût de la Beauté, editado por Jean Narboni. Paris: Cahiers du Cinéma, 2004, 73.
[5] Nestor Almendros, «He Took a Close‐Up of ‘Claire’s Knee’,» entrevista por Vincent Canby, The New York Times, 28 de fevereiro 1971, https://www.nytimes.com/1971/02/28/archives/he-took-a-closeup-of-claires-knee-closeup-of-claires-knee.html/.
[6] Laura Mulvey, «Visual Pleasure and Narrative Cinema,» em Film Theory and Criticism: Introductory Readings, editado por Leo Braudy e Marshall Cohen. New York: Oxford UP, 1999, 838.
[7] idem, 809.
REFERÊNCIAS:
Rohmer, Éric, realizador. Le Genou de Claire. Les Films du Losange, 1970. 105 min.