Hugo Miguel Santos*

 

O mundo é tão grande, tão rico, e a vida oferece um espectáculo tão diverso que nunca faltarão temas para a poesia. Mas é necessário que a poesia seja sempre feita de circunstâncias, quero dizer, é preciso que a realidade presenteie a ocasião e a matéria.

                          Johann Wolfgang von Goethe

 

 

 

Talvez não seja exagerado começar por assumir que há sempre uma dimensão circunstancial em toda a poesia, por mais que o poeta possa, e em certa medida deva, mascarar ou recriar as provas do crime. No entanto, contam sobretudo as circunstâncias estabelecidas pelo próprio poema, isto é, a intensidade e a verossimilhança daquilo que ele veicula — se quisermos, muito mais do que as causas, importam os seus efeitos.

Os poemas do segundo livro de Pedro Bastos, Souvenirs Satânicos (Cutelo, 2023), distinguem-se pelo facto de conseguirem criar a impressão no leitor de que acedemos directamente a um determinado momento e a um certo estado de coisas: «A barriga ao balcão apoia o cotovelo/ E a mão leva a super bock à boca./ Apaga uma sede funda de séculos/ Ali presente quando cruzamos/ Os olhos de profundo azul foda-se» (p. 8). Neste e noutros momentos deste livro, a singularidade do olhar do poeta releva-se pela capacidade de ampliar e subverter pequenos indícios do quotidiano, revelando o sentido mais profundo de uma cerveja, a secreta cor de um olhar: «o rosto labor suor de um dia» que «alumia noite dentro» (idem).

Talvez não seja exagerado assumir que esta escrita parte de memórias e deambulações, num registo que se situa entre a cartografia e o diarismo, apresentando as datas e os locais, as circunstâncias dos poemas, antes dos próprios títulos. Em alguns casos, revela-se ainda o hiato temporal entre os dados biográficos e os poemas que os incluem, como acontece em «Censores de Pára-choques» (p. 16) ou «Chuveiro Elétrico» (p. 30). Mas o que torna mais relevante esta dupla errância, espacial e rememorativa, é o agrado com que se contempla, sem qualquer ponta de queixume ou sentimentalismo, a passagem do tempo e os seus acasos e acidentes: «Antes que o inevitável aconteça/ soam as sirenes dos faróis em cada uma das margens,/ como se fossem capazes de amenizar o estrondo-choque frontal» (p. 16), «Quantos choques apanharam os indígenas, por engano,/ Em contacto com as caravelas-portuguesas?» (p. 30).

Ao contrário de uma boa parte da poesia que se vai publicando, esta poética não se limita a transmitir literalmente aquilo que foi vivido, vertendo as lembranças em versos através de um engenhoso exercício de transposição estética capaz de anular as suas marcas, sempre ciente de que «as melhores memórias/ serão arrumos sobre as cabeças/ Num equilíbrio de varina» (p. 50). Note-se que as memórias não são adornos, nem sequer instâncias meramente subjectivistas, mas fardos ou cestas carregadas que se levam à cabeça. A imagem do «equilíbrio de varina» não podia ser mais feliz, no que toca à descrição do talento do poeta que caminha numa espécie de corda bamba entre memória e imaginação.

 Mais do que procurar o «novo», Pedro Bastos tem a capacidade de apresentar um idioma singular e íntimo que se edifica a partir de regionalismos minhotos, declinações do português do nordeste brasileiro e derivas pelo nosso tão familiar portunhol: «Lá em baixo, as toalhas e a piscina à sombra,/ Que se estende pela areia sobre corpos quase transparentes,/ Mientras negros/ Muito negros/ Y negras muito negras/ Vendem-lhes cangas de costas voltadas à maré» (p. 9). Não é por acaso que não se encontra nestas páginas uma única palavra em inglês — língua franca dos negócios e da propaganda contemporânea. Pelo contrário, esta poesia prefere os jogos de linguagem que sempre entretiveram os humanos nas tascas, nos campos e nas fábricas à massificação e simplificação discursiva. Quando mescla registos discursivos ou aceita estrangeirismos não procura a globalidade, antes despreza o «todo» e revela a singularidade de um percurso comunicável, mas íntimo, onde se cruzam vozes caras, paisagens e outros vislumbres.

É verdade que a poesia, enquanto arte fundamentalmente verbal, sempre teve de se debater com as mais variadas formas de contaminação discursiva — nos anos 70, por exemplo, um dos tópicos principais da crítica literária era a relação entre linguagem e ideologia. A não ser que se defenda uma concepção teológica ou metafísica da poesia — o que não deixou de ser legítimo — torna-se impossível ignorar que as palavras que servem de matéria-prima para os poetas se encontram sempre ameaçadas pelos mais diversos mecanismos de simplificação retórica, desde a propaganda política até à publicidade. No entanto, desde o final do século passado, tem-se assistido a um maior cepticismo relativamente à capacidade de a literatura se conseguir proteger dessas ameaças externas. A este propósito, talvez seja útil recordar uma passagem de Poesia Non Poesia (2008) de Alfonso Berardinelli: «(...) actualmente, as regras que governam a produção jornalística e os media são mais complexas do que aquelas que governam os textos poéticos. Um desafio deste género não deveria desagradar a um verdadeiro poeta»[1].

Regressando ao livro de Pedro Bastos, é evidente que existem variadíssimas formas de responder a este desafio, mas uma das vias possíveis passa inevitavelmente por tecer uma língua que funciona em paralelo, a salvo dos clichés do economicismo e da realpolitik, preferindo resgatar a língua de um povo perdido ou, quiçá, impossível — na medida em que ele é composto por várias expressões, latitudes, épocas e até alfabetos: «Como um cozido à portuguesa/ e vejo uma pintura do artista soviético Yan Kryzhevsky// É um homem junto a uma motorizada com/ um capacete amarelo./ Tem bigode e óculos, a camisa aberta por cima de uma T-shirt,/ Atrás dele uma fachada de um edifício com um reclame em cirílico// O M T N K A// O N está ao contrário e o K está meio apagado (...)// (Um dia aprenderei cirílico só pelo amor que tenho à sua grafia)» (p. 24). Não temendo os equívocos oriundos da oralidade, nem sequer precisando de os demarcar com itálicos, no poema que acabamos de citar, intitulado «Sai Cão» (nome de um restaurante no Porto que ficou célebre pela sua posta de vitela), encontramos «calças de fato de treino ci zentas manchadas de cal». Para Pedro Bastos, onde se lê «ci zentas» deve ler-se «ci zentas», tal como se deve ler e dizer «apara-caídas» (p. 12), «autobuses» (p. 14) ou «home’» (p. 7).

Muito mais do que realista, Souvenirs Satânicos é um livro político. Não se trata tanto de representar o mundo como supostamente é, antes de responder às inquietações que nos provoca. Da mesma forma, a recuperação destes vestígios de uma oralidade em vias de extinção e a aversão à novidade, também não implicam que o poeta não possa responder aos males da actualidade — sem jamais a mimetizar. Pelo contrário, num dos pontos mais altos deste livro que é uma espécie de remontada, como se costuma dizer no discurso futebolístico, a máquina — enquanto símbolo da tecnologia — é suplantada pelo seu mais fatal opositor — a consciência da morte:

EXPLIQUEM ÀS MÁQUINAS A MORTE


Expliquem às máquinas a morte.
Que os seus círculos se deterioram.
Que um dia a terra as come
E as desfaz em carvão,
Petróleo.

Expliquem-lhes a sua inutilidade
Efémera.
Não saiam da sua beira sem terem a certeza
De estarem por fim conscientes
Do tempo.

E verão
Como se atiram das pontes
Como se desligam sozinhas
E se avariam.

Nenhum algoritmo é capaz
De as confortar desta sensação,
Deste vazio.

É irracional serem descartáveis
E perante esta lógica
Só faz sentido que
Auto se destruam.

(p. 49)

Há um poema de Tonino Guerra que pode ser entabulado com este de Pedro Bastos, intitulado «Os Bois»:

 

Dizei aos meus bois que já acabou,
o que havia a fazer feito está,
agora preferimos os tractores.
Parte-nos o coração, bem sei,
lembrar o trabalho milenar que tiveram,
enquanto seguem cabisbaixos
atrás da longa corda do matadouro.[2]

 

Em ambos os casos, apesar de cada um deles representar um pólo oposto do processo de mecanização do trabalho e dos nossos dias, toma-se como função poética dar nota da finitude. A diferença fundamental é que os bois estão mais próximos de nós, morrem e são capazes de percepcionar a passagem do tempo. Representam o passado, um mundo rural e decadente. Já as máquinas foram criadas por e para nós, são produto do nosso anseio por criar algo inefável ou infalível — ou seja, o futuro e, em última instância, a imortalidade.

É curioso que no discurso produzido nos nossos dias em torno da Inteligência Artificial, raramente se aborde o conhecimento (ou a ignorância, neste caso) da morte. Talvez seja pela mesma razão que se continua a perseguir a mais desumana de todas as ideias: o progresso. Uma vez mais, em sentido contrário, Pedro Bastos prefere a concretude da manualidade à virtualidade do digital: «Em Vigo, vou descobrir mais tarde um artista daqui: Francisco Leiro./ Trabalha como se ainda não tivessem inventado o digital,/ a telefonia ou a televisão — tudo é monumental, feito à mão» (p. 19). Sob esta perspectiva, a monumentalidade equivale à escala humana. As monumentais esculturas em madeira de Leiro tornam-se mais leves, mais naturais até, do que os meios tecnológicos. À medida que ganham peso, perdem gravidade. Já que o trabalho manual implica uma relação diferente não só com o espaço, mas com a própria temporalidade — assim como a escrita: «Tenho o hábito de dosear o incompreensível à mão. Anoto. Rasuro/ Disponho, como um tipo de alicerces, todas as coisas acumuladas —/ tudo vem de baixo, confirma-se» (p. 16).

Com este livro, Pedro Bastos conseguiu estabelecer a sua elegia pós-industrial de um mundo íntimo, próprio, composto por «coletes fluorescentes (...)/ (...) cozido à portuguesa» (p. 24), «assuntos fantasma/ Que pairam sobre as gentes» (p. 31), «sargaço e cacos de vidro polido,/ cascalho que foi pedra/ e hoje é areia», «um uivo das suas bocas abertas/ lágrimas dos olhos furados» (p. 20), mas também por grandes vultos da história da pintura, como Leonardo da Vinci (p. 12), Goya (p. 43) ou El Greco:

 

Vejo o limite sinistro dos teus olhos, no complexo cinzento da água gasosa — a ataraxia do corpo que sobe com o fogo incólume. Deliro com a extensão das arbóreas pernas de prata. Uma ave paira à espera para apaziguar o trauma. Vibram as túnicas e as almas e o cheiro lento nas mãos cravadas. Pigmentos fosforescentes projectam-se além da retina e resvalam para fora do quadro. Esqueço-me do tema e do assunto. (p. 40).

 

Não é certamente por acaso que a organização temporal dos poemas neste livro é regressiva: ou seja, o primeiro poema tem a data de 5 de Maio de 2023 e o último poema datado é de 15 de Abril de 2019. Depois disso, os poemas perdem a data e remetem para a morte (como o supracitado «Expliquem às máquinas a morte»), reduzem-se aos elementos mais primitivos — o fogo que embala o nortenho «estrugido», «a cebola que a minha avó deixava esquecida ao lume» e a pedra das capelas de São Vicente e de São João de Latrão em Fafe.

Assistimos a uma tentativa de redução de Cronos ao silêncio das imagens e dos símbolos. Assim, contra o turismo da novidade, Bastos oferece-nos souvenirs de um mundo autêntico, defende-nos dos bárbaros do neo-capitalismo e da globalização desenfreada que preferem os unicórnios do empreendedorismo. Face ao desenraizamento da vida, o poeta segreda-nos ao ouvido: «Não deixes que te digam que és patego,/ Pelos teus deslizes, pelos teus sentimentos recauchutados./ Arma-te com alforje e cuia» (pp. 12-13). Parece-me razão suficiente para lhe estarmos agradecidos.

[1] Alfonso Berardinelli, Poesia non Poesia. Torino: Einaudi, 2008, p. 28, trad. minha.

[2] Tonino Guerra, I bu - Poesie romagnole. Trans. Italiano di Roberto Roversi, Introd. Gianfranco Contini, Bologna: Pendragon, 2014, p. 17, trad. minha.

* Doutorando financiado pela FCT (2024.06124.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: hugomiguelsantos@edu.ulisboa.pt.

REFERÊNCIA:

Bastos, Pedro. Souvenirs Satânicos. Guimarães: Cutelo, 2023.