Guilherme Berjano Valente

Ao ler-se O Inquieto Verbo do Mar (a poesia reunida de Sebastião da Gama), fica-se com a impressão de que a poesia de Gama se caracteriza por alguns temas extremamente recorrentes: a relação do poeta com Deus, a relação do humano com a natureza e as relações eróticas do próprio poeta. Todos os temas, no entanto, subsumem-se a uma obsessão: a própria figura de Deus e a forma como Ele se manifesta. Parece, então, possível descrever a poesia de Gama como uma poesia obsessiva para com um núcleo temático restrito que se vai manifestando, na sua obra, de diversas formas.

O momento em que Gama se mostra consciente deste facto é no poema «Obsessão» (p. 366):

 

Quero a Noite completa, desumana.
A Noite anterior. A Noite virgem
de mim. A Noite pura. Quero a Noite,
aonde é impossível encontrar-te.

 

Que não há rio nem rua nem montanha
nem floresta nem prado nem jardim
nem pensamento algum nem livro algum
em que não me apareças, sorridente.

 

A «Noite virgem» permite, desde o princípio, uma leitura erótica do poema. Este erotismo é puro, não tendo a noite sido tocada ainda pelo autor. Gama está, com isto, a mostrar que ele é fonte de impureza, que conspurca aquilo em que toca. Noutro sentido, a «Noite pura» que ambiciona é sempre invadida por uma figura «sorridente»: figura que, como se verifica ao longo dos poemas, é Deus. É, contudo, errado assumir que o poeta está a tentar escapar à figura divina. Está, na verdade, somente à procura de um espaço-tempo em que tenha contacto com a noite intacta, a noite que precede a criação do mundo, ainda «desumana». A revelação final salienta, todavia, que a sua verdadeira obsessão não é um estado de pureza pré-divino, mas a figura divina. Interessa salientar que tanto a relação ambicionada com a «Noite» como a relação com Deus são relações com implicações eróticas, parecendo que a forma utilizada pelo poeta para ver e apreender coisas novas é uma forma necessariamente erótica.

O poema que abre a sua obra, «Harpa» (pp. 15-6), pauta a primeira manifestação da sua obsessão. Nele, Gama descreve-se como mero humano que teve a sorte de ser abençoado por Deus, sendo-lhe permitido tocar a harpa do Senhor:

 

E foi com Teu amor que retesaste as cordas,
com Teu amor as afinaste
e me chamaste
à tarefa sublime de tangê-las.

 

Percebe-se que não é o poeta que escolhe ser poeta. É Deus que o destina a sê-lo, parecendo que o poeta falha sempre por não concretizar a sua potência: «Olha, Senhor!, / o indigno cantor que Tu fadaste / e se não pode erguer / à sua própria altura!...» (p. 15) No mesmo poema, constrói-se uma aparente cisão entre corpo e alma: «Mas só cá dentro o Frémito ressoa… / Que não consegue a minha mão, / que o lodo fez e o lodo maculou / passar à Harpa a Grande Vibração.» O contacto com o lodo (e com o mundo) tornou as suas mãos inaptas a materializarem o eco que ressoa dentro de si. Ora, quando o poeta afirma, ainda no mesmo poema, «Deixa outro cantar meu próprio Canto, / e seja eu somente, assim purificado / e liberto do corpo», parece descrever um processo de leitura: o leitor canta o canto de Gama e, através deste canto, purifica o poeta, libertando-o do seu corpo.

A importância de deixar de ter corpo não se prende, contudo, com uma descrença nos sentidos ou uma crença na podridão do corpo. Enquanto Deus cria e é o mundo e, por isso, consegue apreendê-lo como um todo, Gama, por ser humano, apenas consegue apreender e cantar o facto ser humano. Quando Gama pede, então, a Deus que o purifique, está a pedir que o dispa de si mesmo para poder acolher outras coisas que não sejam ele, de forma a aceder a todo o eco que Deus nele depositou: o eco divino e, consequentemente, do mundo. Repare-se que no poema «Serra-Mãe» (pp. 19-20) é a poesia da serra que nele se recolhe: «Na noite calma, / a poesia da Serra adormecida / vem recolher-se em mim.» Este processo faz com que as coisas do mundo passem a «dar-se em [si]». O eco de Deus torna-se mais fiável, mais abrangente, dentro do próprio poeta. Nos últimos três versos, lê-se: «Ai não te cales, água murmurante! / Ai não te cales, voz do Poeta errante! // – senão a Serra pode despertar.» As coisas não só passam a dar-se no poeta como o poeta torna-se naquilo que mantém a natureza estável, adormecida, quase como se repercutisse o papel de Deus.

Mas é também erróneo pensar em Gama como reduzindo a natureza à sua pessoa, visto que da mesma forma que a poesia da serra se aloja dentro de si, também o poeta se aloja na serra:

 

Agora, só,
que é o meu corpo terra confundida
na terra desta Serra minha Mãe;
agora, só,
a minha voz que sempre cantou mal
ao Céu se eleva… (p. 28)

 

Ou seja, despir-se do seu corpo e tornar-se um só com a serra permite uma melhoria divina no seu canto. Aparenta, todavia, que é o corpóreo que permite aceder ao incorpóreo; é o seu corpo entretecido com a serra que permite uma elevação da sua poesia. Esta torna-se pós-antropocêntrica por necessidade, isto é, a única forma de se elevar a poesia sobre a serra é se a poesia sobre a serra for escrita em contacto direto com ela, decorrendo uma união entre poeta e serra. Formula-se uma intersubjetividade partilhada pelas duas figuras. Esta intersubjetividade não se limita nunca a um plano metafísico, onde a alma do poeta se abre para uma nova revelação e a serra se transforma nas palavras do poeta. Pelo contrário, ela acontece no corpo do poeta: «Serra toda pintada de Esperança / (…) / Reveladora maga / dos meus cinco sentidos, criadora / de aqueles que eu não tinha e tenho agora!» (p. 30) O corpo do poeta é, inclusive, confundido com a própria serra: «Agora, só, / que os meus lábios são terra de onde nascem» (p. 28). Sebastião da Gama mostra-se, desta forma, como um poeta que ressoa simultaneamente uma preocupação com o divino e uma preocupação com o corpo como meio de alcançar o divino – ideia que ecoa as preocupações contemporâneas pós-humanistas –, mostrando que o humano e o mundo estão ao mesmo nível.

No processo de reequilibrar a hierarquia, Sebastião da Gama desenvolve poemas em que coisas sobrepostas não se tapam umas às outras (como a Lua tapa o Sol durante um eclipse) para aparecerem, aos olhos do leitor, em simultâneo, ou seja, para serem todas visíveis. Este é o caso do poema «Crepuscular» (pp. 94-5):

 
Aqui onde estou só, não estou só.
– Estão comigo todos os que eu amo
e não sabem nem podem
viver em si a sua vida;

 

No poema, o crepúsculo dá-se entre o poeta e as pessoas que ama. Da mesma forma que Gama acolhe o canto da serra (e, consequentemente, a serra) em si mesmo, também acolhe as pessoas que ama no seu próprio corpo. Segue-se, no poema, uma enumeração de coisas que o poeta é: «Sou a fogueira rubra a que se aquecem / aqueles que eu amei só porque os vi. / Sou noite de Natal. / Sou lembranças dos velhos». Compreende-se que o poeta é as coisas de outras pessoas; ele é uma ocasião, uma lembrança. Mas, acima de tudo, ele aparenta ser quem dá «sentido à (…) vida [deles]», ou seja, as pessoas e as ocasiões que estão dentro dele ganham sentido por decorrerem nele. Isto parece estranho até se compreender que decorrer no corpo do poeta é, na verdade, decorrer no seu canto. Gama, «que fugiu do povoado / e no ermo da Serra se isolou», parece recordar aqueles que ama e dá-lhes sentido no poema que escreve. Na mesma senda, noutros poemas, dá sentido à serra, ao mar e ao mundo através do seu canto. O canto aparece, desta forma, sempre como um modo de dar sentido ao mundo.

A poesia, no mesmo poema, é descrita por Gama como uma atividade que se faz afastada de outras pessoas. Note-se que o poeta está num ermo, só, a olhar o mundo, a recebê-lo e, supostamente, a dar-lhe sentido. Cria-se, nesta descrição, um certo grau de superioridade do poeta em relação ao mundo. Esta ideia, que perdura durante grande parte do poema é, no entanto, posta em causa no final:

 

Até aonde estou
vieram,
pelos caminhos da minh’alma,
os que não quiseram
e me fizeram
fugir.
E logo tudo se passou
como se eu estivesse lá com eles
e não aqui no ermo,
só.

 

A posição de superioridade mostra-se, na verdade, como uma espécie de maldição, visto que o poeta isola-se não por vontade própria, mas por não ser querido pelas pessoas que ama. Para além disso, Gama aparenta não ter agência sobre as coisas que lhe surgem na alma: elas apenas vêm e ele limita-se a recebê-las. As pessoas que ama tornam-se, então, extremamente similares à serra que ele acolhe: não é ele que decide acolhê-la, ela apenas nele se insere. Os últimos versos salientam o poema como um quase analgésico para a solidão do poeta: ele permite que, de forma ilusória, as coisas pareçam acontecer como se o poeta «estivesse lá com eles / e não [ali] no ermo, / só.»

Contudo, tudo o que a poesia permite, para Gama, permite não por ele a produzir, ou seja, por escrever, mas por ela mesma atuar sobre ele e sobre o mundo. Em «Viesses tu, Poesia» (p. 343), lê-se:

 

Bem sei, antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água…
Mas tu é que disseste e os apontaste:
– Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo foram graça, aparição, presença,
sinal…

 

A poesia é vista como uma entidade autónoma, capaz de apontar e de, assim, tornar presente. É ela, então, que ordena a realidade. O mesmo acontece no poema referido anteriormente. É como se tivesse sido a poesia a trazer pelos caminhos da alma do poeta as pessoas que ele amava. É como se fosse ela que, de alguma forma, se infiltrasse nele e, assim, o tornasse seu servo. Visto que Deus, no início da sua obra poética, é quem o faz poeta, Poesia e Deus aparentam ser figuras equivalentes na sua obra.

O que o leitor vai percebendo ao longo dos poemas é que Gama aparenta não ter agência. Ele é escolhido por Deus para ser poeta. É, também, selecionado pela Poesia. É a própria Poesia que aponta para as coisas que ele canta. O canto, inclusive, é descrito como um eco divino, logo, não é pensado nem escrito pelo poeta. O poeta aparece, assim, como mero meio por onde outras coisas se expressam: as pessoas que ama; Deus; a Poesia; a própria Serra. Desta forma, não é verdadeiramente Gama quem dá sentido (como se disse há pouco) às figuras que ama ou à Serra. É a Poesia e é Deus que dão sentido através dele.

Não ter agência é, no entanto, uma atitude para com o mundo, que pode ser explicada ao ler-se o poema «Inscrição» (p. 267). Nele, o poeta defende que «Nada sabe do mar / quem não morreu no Mar.» Saber o mar implica ter morrido no mar. Segundo o poeta, é preciso que a pessoa seja consumida por ele, e que nele fique. Gama está então a dizer que só um morto, alguém que não tem agência, é que pode adquirir o conhecimento do mar. A ideia principal é que para se adquirir conhecimento de coisas grandiosas, como o Mar, a Serra, e Deus, é necessário estar-se morto e deixar-se ser invadido por estas coisas. Percebe-se, com isto, que o estado do morto no mar é o estado em que Gama se tenta colocar de forma a apreender a Serra, o mundo e Deus, ou seja, só estando morto e enterrado na Serra é que o poeta a pode apreender. Só sendo controlado pela Poesia e por Deus é que se pode saber qualquer coisa sobre estas figuras. Deixar de ter agência, ou, melhor dizendo, ser-se como um morto, mostra-se como um método para se adquirir conhecimento sobre coisas de difícil compreensão.

A poesia de Sebastião da Gama acaba, assim, por ter um carácter pedagógico, ensinando aos seus leitores que é preciso morrer-se para se apreender certas coisas sobre o mundo, sobre o céu, ou sobre Deus e a Poesia.

REFERÊNCIA:

Gama, Sebastião da. O Inquieto Verbo do Mar: Poesia Reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024.