Pedro Laureano*
O presente texto constitui uma interpelação introdutória a «Zima Blue», uma curta-metragem de animação pertencente à série Love, Death & Robots, produzida pela Netflix. A película resulta da adaptação do texto homónimo do autor britânico Alastair Reynolds, cuja primeira edição remonta ao ano de 2006.
Num quadro espácio-temporal indeterminado, Zima — aquele que é concomitantemente o mais aclamado e enigmático artista em todo o mundo — anuncia a chegada da sua derradeira obra de arte, incutindo no universo de pessoas que o admira uma curiosidade ressaliente, que, porém, se faz acompanhar de um irremediável sentimento nostálgico. Claire, a jornalista que narra o percurso artístico de Zima, e que ao longo dos anos havia tentado inconsequentemente entrevistá-lo, recebe, após a inesperada revelação do artista ao mundo, o tão desejado convite, pelo qual há tanto ansiava.
Durante a viagem que a levaria ao encontro do artista, vislumbrando a tonalidade azul que resplandece no convite, Claire dirige o seu olhar em direção ao céu e ao mar, interrogando-se sobre a hipotética conformidade entre a coloração do mundo que os seus olhos veem e o misterioso tom que, naquele instante, a sua mão sustenta. Pese embora, num primeiro olhar, as cores que compara aparentem ser sensivelmente convergentes, Claire não tarda a aperceber-se de uma incontornável dissonância, isto é, de uma cisão entre a tonalidade de Zima e a beleza natural que o céu e o mar ostentam. Numa ótica que se aproxima da estética hegeliana — em que a arte se superioriza ao mundo natural —, a jornalista admite que o azul de Zima representa algo mais «escrupuloso» do que a matriz colorimétrica da natureza; ou seja, para si, neste caso em particular, o belo natural possui um estatuto inferior ao belo artístico, porventura pelo facto de este último resultar da consumação de um desejo criador.
Quando finalmente Claire se encontra com Zima, este não tarda a contar-lhe a sua história, deixando-a perplexa perante a veracidade das suas palavras. Ao invés da conceptualização edificada pelo senso comum, Zima — o artista cuja arte atingira o mais elevado grau de magnificência — não era na verdade um homem, mas sim uma máquina. Inicialmente criado para executar a simples tarefa de eliminar a sujidade de uma piscina, Zima passara por diversos processos de «aprimoramento» que aludem ao fundamento de toda e qualquer manifestação artística: a expressão poiética do ser. Nesse sentido, é possível equacionar Zima como uma obra de arte, uma criação que detém em simultâneo o poder de criar.
No decurso das sucessivas alterações a que foi sujeita, a máquina acabara por desenvolver uma consciência artificial a partir da qual a sua identidade se foi estruturando, como que de um ser biológico se tratasse. Na medida em que o primacial ato apercetivo de Zima surge na piscina que justificou a sua criação, tal lugar deve ser interpretado como o topos fundacional da sua vida. Assim se apreende a razão pela qual o artista se refere àquele lugar como sendo a sua casa. No que concerne em concreto à produção artística de Zima, verificamos que existe uma progressão orientada por um íntimo desejo de verdade. Note-se que a fase embrionária deste percurso — comportando um compromisso estético vocacionado para a representação do homo humanus — denota um nexo de veneração para com a realidade humana, num sentido idêntico ao modo como o Homem idolatra os seus deuses.
É possível conjeturar que o primeiro momento artístico de Zima metaforiza a carência psicoantropológica do Homem: a angústia perante a compreensão da volatilidade da vida, a melancolia que deriva da consciência da efemeridade da existência, o sentimento que nos impele a procurar o sentido da vida num plano que, para todos os efeitos, a transcende. Em todo o caso, Zima acaba por entender que a verdade que persegue não pode ser encontrada na exiguidade da forma humana, o que o leva a erguer uma nova fase da sua expressão artística. Não sendo um ser biológico, pôde penetrar a fenomenalidade da natureza e envolver-se num nível de intimidade irreplicável com o cosmos (como se vislumbra, e.g., na imagem em que impavidamente caminha sobre a lava), tocando os limites da própria experiência estética. Podemos interrogar, como tal, se a meticulosidade que define as suas criações — na segunda fase do seu percurso artístico — é ou não uma consequência do relacionamento visceral que mantinha com o mundo.
Esta conceção encontra a sua raiz na estética de Nietzsche, bem como na fenomenologia da perceção de Merleau-Ponty; prende-se com uma tese que advoga a inexorabilidade do vínculo ontológico entre o Homem e o mundo, declarando a arte não como mera construção técnica, mas como uma invocação da essência inexprimível do ser. Levando esta ideia às últimas consequências, o artista deixa de ser compreendido como o princípio gerador da obra de arte, na medida em que o ato incoativo de qualquer realização artística pertence ao ser. Por outras palavras, dado que o ser precede ontologicamente o artista, a essência da obra de arte não pode radicar no seu executor porquanto pertence, na verdade, à precedência ontológica da existência. Deste modo, o artista, à semelhança da sua criação, é também ele uma forma de arte consumada, uma das múltiplas manifestações da ininterrupta ontopoiese do ser (esta locução pretende aludir ao incessante pulsar criador da existência).
No período artístico em que o cosmos assume um papel hegemónico na arte de Zima, a apresentação de uma das suas obras faz brotar um sentimento comum de perplexidade; trata-se de um mural em que a representação da natureza aparece acompanhada por um pequeno quadrado azul, que, ocupando uma posição cêntrica na tela, demonstra uma relevância radical. A partir desse momento, todas as criações de Zima passaram a contemplar uma forma geométrica, sendo que, obra após obra, a «figura nuclear» — cujo tom de azul permanecia inalterável — adquiria uma dimensão espacial progressivamente superior, provocando o desvanecimento gradual das estruturas circundantes. A perpetuação da tendência inflacionária da «figura nuclear» conduziu, por fim, ao aniquilamento total dos restantes elementos estéticos, num longo caminho que culminou na redução absoluta da arte à esfíngica tonalidade azul. Zima chegara à conclusão de que a verdade do cosmos assenta simplesmente na sua realidade objetiva, inferindo, por conseguinte, a impossibilidade de veicular o seu logos através da arte.
A derradeira obra do artista — por si descrita como um afogamento — não configura, como muitos asseveram, «um sacrifício extremo pela arte», mas sim o término da sua busca. Sendo análogo ao ser humano, Zima procurou, de modo errático, o fundamento da vida para além da delimitação ontológica desta, conferindo a determinadas realidades transcendentes (Homem e cosmos) o princípio de inteligibilidade do seu «ser» em «ato de sentido», exaurindo a possibilidade de a sua arte convergir com o horizonte semântico que inconscientemente perseguia.
A última criação de Zima assinala, portanto, a inteleção de que a verdade não se coaduna com nenhuma realidade exógena; ela é intrínseca à própria vida, pelo que só pode ser compreendida a partir do olhar interno da consciência, isto é, quando a consciência é simultaneamente cognoscente e cognoscível. Embora o artista descreva a sua derradeira criação como um afogamento literal, não é isso que de facto sucede naquele lugar a que chama casa. Zima mergulha na piscina; à medida que as suas funções cerebrais vão sendo desativadas, inicia-se o processo de autodestruição do seu corpo antropomórfico. Este processo leva ao desencarceramento da sua forma original, ou, por outras palavras, conduz à manifestação da verdade que durante mais de um século permanecera enclausurada dentro do corpo que o afastara de si mesmo. Da complexa e deteriorada «carne» do artista emerge, então, a voluptuosa simplicidade do seu ser. Nesse momento, Zima dirige-se a uma das extremidades da piscina, onde se encontra com a sua primeira memória, renascendo, assim, para a verdade eterna do seu pequeno e frágil quadrado azul.
* Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra.
REFERÊNCIAS:
Donen, Joshua. Fincher, David. Miller, Jennifer. Miller, Tim (prod.). «Zima Blue», Love, Death & Robots. Temporada 1, Episódio 14. Netflix, 2019. 10 min.