Hugo Miguel Santos*
Ascendentes (A Morte do Artista, 2025) é o décimo primeiro poemário de João Paulo Esteves da Silva, facto que não deixa de ser surpreendente se levarmos em conta o intervalo de doze anos de publicação entre os dois primeiros livros, Notas à Margem e Ainda Menos, ambos publicados em 2002 pela editora Amores Perfeitos, e Trinta e Quatro Sonetos e Trezentas e Cinco Redondilhas (Douda Correria, 2014). Não deixa, portanto, de ser significativo este interregno editorial na obra de um artista tão prolífico, não só na poesia, como na tradução e no campo musical, enquanto compositor, improvisador e pianista; esta última a sua faceta mais conhecida. Neste, como em tantos outros casos, pouco importam os motivos — provavelmente, pessoais e intransmissíveis — que motivaram esta decisão, mas tornam-se sobremaneira relevantes as diferenças estilísticas entre os dois primeiros livros e a poesia que tem vindo a ser publicada a um ritmo quase anual desde então, excepção feita aos dois últimos volumes.
Os poemas publicados nestes dois volumes mais recentes, No Outro Mundo (Averno, 2024) e Ascendentes, foram escritos entre 2019 e 2024. Este facto cronológico torna-se relevante para percebermos de que forma esta escrita se encontra vinculada à passagem do tempo, escapando simultaneamente a qualquer forma de actualidade ou progresso linear. Encontramos, pelo contrário, mais um exemplo de uma poética devedora da ideia de testemunho, tal como teorizada por Jorge de Sena, poeta que também fazia acompanhar os seus poemas pela datação da feitura.
Partindo de circunstâncias concretas, sem deixarem de visar um tempo histórico mais amplo, os poemas de João Paulo Esteves da Silva procuram sempre aquilo que é permanente e inviolável: é por isso que podemos encontrar «Li Bai na Mouraria», «(...) alheio /ao mundo, (...) só consigo/ dentro da enorme bebedeira» (Ascendentes, p. 14) ou «aquele tempo em que furava as ondas,/ mergulhava rente à areia, de olhos abertos,/ e via as montanhas passando e explodindo» (idem, p. 24). O tempo em que se consegue mergulhar rente à areia e descobrir montanhas a explodir debaixo do mar não é tanto o da infância, aqui resgatada, mas o próprio tempo da memória, produto inseparável da imaginação, capaz de criar uma confluência entre imagens e épocas distantes.
A esse título, e apesar da grande transformação entre o primeiro livro e a produção posterior a 2014, o título inaugural de João Paulo Esteves da Silva era já ilustrativo dessa ideia de escrever notas à margem dos dias. Recordando um poema de Trinta e Quatro Sonetos e Trezentas e Cinco Redondilhas: «É necessário ter um bom orgulho/ para poder viver sem laços, só,/ a escrevinhar maus poemas no pó/ e a encontrar simpatias no entulho.// Claro que há perspectivas para Julho;/ melhores dias virão. A mãe do Tó,/ que anda na vida e vende pão-de-ló,/ mistura as artes sem qualquer engulho.» Não deixa de ser tentador encontrar uma espécie de espelhamento entre a mãe do Tó e o poeta que recupera para si o significado mais antigo de poiesis, tantas vezes parafraseado em vão, mas que encontra na obra de João Paulo Esteves da Silva o seu mais profundo sentido de criação numa viagem pessoal e íntima que decorre entre artes, saberes e línguas: «No princípio, comprar um glossário hebraico/ seguir as palavras pela ordem alfabética/ chegar à palavra “amar” que significa “ele disse”/ e ter um arrepio como quem percebe/ a importância de não querer perceber» (No Outro Mundo, p. 26).
A importância de não querer perceber adquire uma acepção especial nesta poesia: na medida em que não se trata de uma forma de niilismo, mas do sentido final de uma prática quotidiana — de uma descoberta. A atenção e o desejo de perceber é que antecipam o desligamento perante tudo aquilo que se revela desimportante, e não o contrário. A escrita, tal como o estudo do hebraico, por exemplo, parece resultar de um modo particular de compreensão e de «um talento especial para cair,/ (...) de todas as maneiras, sem se magoar» (ibidem). Assim, a poesia — e quem diz a poesia, aqui, poderia dizer a música ou a arte — não parece ser tanto uma forma de evasão em relação à realidade, mas de encontrar uma espécie de intervalo entre o observador e os objectos observados que permita uma percepção mais apurada do mundo. Destarte, talvez não seja exagerado assumir que o outro mundo de João Paulo Esteves da Silva não só não é um mundo independente, como se encontra inevitavelmente ligado ao mundo de todos nós.
Por mais que a verdadeira vida esteja ausente, recordando o mote de Rimbaud, ela pode ser alcançada através de um movimento de ascendência que parte das coisas mais comezinhas, como se percebe pela terceira parte de «Teologias» que pode ser lido como uma espécie de arte poética:
Ao que parece, nasci para cantar cascas,
peles, sacos, invólucros de várias vozes,
entoar a transparência, a luz do destino obscuro,
buscar nelas alívio para o nome,
louvá-las quanto possa para fora do desprezo
(Ascendentes, p. 19)
Torna-se tentador recordar um poema antigo de Joaquim Manuel Magalhães, na sua versão pré-Um Toldo Vermelho, em que encontramos outros sacos de lixo e restos de desperdícios metropolitanos: «Poucas vezes a beleza terá sido tanta/ como no lustro preto dos sacos de lixo/ à porta dos hotéis, dos armazéns, das casas de comida/ nas mais pequenas horas da noite em Londres» (Magalhães, p. 82). Este poema de Magalhães costuma captar a atenção da crítica pelo aparente realismo das suas descrições, uma ilustração por excelência do já famigerado regresso ao real da poesia dos setentas. Mas talvez não seja menos pertinente frisar a importância de uma palavra tão estranha às mais variadas cartilhas pós-modernistas e, entretanto, de tantos outros pós: refiro-me, claro, à beleza. Por sua vez, a poesia de João Paulo Esteves da Silva não tem o menor receio de convocar os mais variados valores e conceitos vindos da antiguidade, seja a beleza, a verdade ou o sentimento, ao ponto de falar, logo na abertura do livro, de uma «dor velha e esquecida/ que ainda agora confundes com o amor» (Ascendentes, p. 9), mas também de «pequenos milagres» como «o damasqueiro, condenado pela ciência» que «há mais de dez anos (...) vive além da morte com folhas e frutos» (idem, p. 12).
Há muitas árvores e frutos nestes dois livros e, sobretudo, pássaros — sejam pardais, melros, gaivotas ou pavões — e outros bichos de menor intensidade lírica, como a aranha; o que poderia remeter-nos imediatamente para o imaginário de uma poesia mais clássica e, portanto, mais ligada aos elementos naturais e terrestres. A declarada defesa de um tom menor, sottovoce, nesta poesia, não implica, portanto, uma atenção apenas ao que é mais rasteiro, antes sugere uma espécie de lição poética, uma verdadeira didática da arte, que visa partir do singular para o universal, como se percebe pelo poema «Ginko, Felis Silvester Catus»:
As brincadeiras são assuntos graves.
O nosso jogo é sempre: matar coisas;
brinquedos comprados interessam-lhe pouco,
prefere bolas de papel do tamanho de guelas,
que nos seus olhos se transformam em gazelas
fugindo ou pássaros no ar, imprevisíveis.
Rasteja como um tigre, pára, emboscada,
e salta sobre as presas que eu lhe lanço.
(...)
Só quando o sono vem me pede festas.
(Ascendentes, p. 38)
É bem possível que o gato sirva ao poeta como máscara de si mesmo, na medida em que a poesia também pode ser vista como um jogo bastante perigoso, citando um célebre título de Adília Lopes. O gato, tal como o versificador, prefere «bolas de papel do tamanho de guelas», num exercício em que se transforma num tigre (e neste ponto também se torna irresistível fazer um aparte para recordar o tigre de William Blake), ampliando a sua dimensão felina que o torna capaz de «matar coisas» e de ampliar o olhar — num exercício que não só altera aquilo que vê, como o próprio observador se metamorfoseia no que é visto. Não é por acaso que o poeta nos aconselha a aprender a “miar alto”, o que recorda um poema de António Franco Alexandre, quando diz a certo ponto de Uma Fábula: «Já não me serve de nada a poesia,/ a literária ‘arte de chiar’. E quanto a pensamento: esse schelling / já me moeu o siso.» (Alexandre, p. 52).
As parecenças entre as ocupações do gato e o labor do poeta não se limitam à dimensão lúdica, e à sua aparente inutilidade, mas ainda à sua componente solitária. Lembrando os versos de Jaime Gil de Biedma: «O jogo de fazer versos/ — que não é um jogo — é algo/ parecido a princípio/ com o prazer solitário (...) O jogo de fazer versos,/ que não é um jogo, é algo/ que acaba por se parecer/ com um vício solitário». A evocação de Biedma é-nos também sugerida por um outro poema de Ascendentes, intitulado «Atenas 2018» e que tem várias semelhanças com um poema do poeta catalão do livro Poemas Póstumos:
A RUA PANDROSSOU
No bairro de Plaka,
perto de Monastiraki,
uma rua banal cheia de lojas.
Se alguém que gosta de mim
um dia for à Grécia
e passar por ali, sobretudo no verão,
diga-lhe que tenho saudades.
Era uma segunda-feira de agosto,
depois de um ano atroz, recém-chegado.
Lembro-me que de súbito me apaixonei
pela vida, porque a rua cheirava
a cozinha e a couro de sapatos.
(Biedma, p. 159)
ATENAS 2018
No centro da cidade, ao meio-dia,
mulheres sentadas no chão
pedem esmola, tão baixinho
que, a princípio, julguei ouvir
meus pensamentos.
Se os loucos atravessam a rua,
olhos postos no céu, logo
os carros abrandam, cuidadosos;
enquanto os sensatos arriscam morrer
se acaso respeitam as cores dos semáforos.
Na fresca dum café quase deserto,
juntei-me ao sono do cão e adormeci
com a cabeça em cores:
o prato dos vestidos das mendigas
pintalgado os vestidos monocromos
das muitas outras mulheres em compras,
vermelhas, verdes, amarelas e azuis.
(Ascendentes, p. 16)
Esta relação empática de Biedma e Esteves da Silva com os cheiros, as cores e a azáfama da Atenas contemporânea esconde por trás a Antiga Atenas dos mitos e das fontes, «dos mestres,/ filósofos, místicos, buscadores de verdade» que num outro poema aconselham JPES a deitar fora a casca e a dar importância à amêndoa, o que deixa o poeta «só e sem mestre na terra». Pelo contrário, nestes dois casos, os poetas parecem agarrar-se às cascas, aos vestidos das mendigas, às lojas banais, à cozinha e ao couro dos sapatos, como se tivessem desistido da amêndoa, mas o leitor mais atento facilmente descobrirá que da Rua Pandrossou se consegue ver a Acrópole, como pano de fundo do pequeno comércio de rua, e que por toda a Atenas, seja em que ano for, se encontra a antiguidade clássica a cada esquina. Portanto, o movimento de olhar perante o que está à nossa volta ou à nossa frente, nada mais é do que uma procura por tentar encontrar aquilo que está por detrás ou por debaixo: neste caso, o período clássico.
Na poesia de João Paulo Esteves da Silva, a deambulação pela cidade (seja Basileia, Paris ou a cidade de Cesário) parte da observação de pormenores concretos das ruas e das pessoas para resgatar vestígios de um tempo perdido: «Sentado num banco, a dominar a cidade,/ deveria acalentar meus sonhos de grandeza,/ ver-me rei do que avisto, até à Arrábida» (No Outro Mundo, p. 55); «Com os cafés fechados e os bancos de jardim enfaixados,/ aprendo a ler em movimento, sem rumo nem desculpa» (idem, p. 59); «Viro costas ao instituto de medicina legal/ e avanço pela rua a pensar no amor;/ que nunca figura entre as causas da morte/ por muitas marcas fundas que deixe no corpo» (idem, p. 60).
Mas, uma vez mais, esta observação da cidade nunca desaba numa descrição pretensamente realista ou literal, sendo apenas o princípio de uma transfiguração poética: «Cruzo a linha do eléctrico, a perceber cada vez menos/ o porquê dessa minha levada, menino e moço, para aqui,/ onde vivi de bolos e angústia em forma de piano./ Por estes becos despovoados, à espera de turistas,/ terei feito recados, idas e voltas à mercearia,/ em busca de figos secos (pretos, num cartuxo de papel pardo),/ maços de cigarros para o avô, ramos de louro ou salsa./ Se me chegasse agora algum cheiro a alho frito,/ talvez chorasse e percebesse e sarasse, enfim,/ mas já ninguém faz o jantar nestes rés-do-chão» (Ascendentes, p. 34).
Note-se como as ruas se transformam em levadas, gesto que nos convoca o lisboeta Cesário de poemas como «Num Bairro Moderno» onde encontramos uma rapariga «(...) rota, pequenina, azafamada,/ (...) Que no xadrez marmóreo duma escada,/ Como um retalho de horta aglomerada,/ Pousara, ajoelhando, a sua giga» (Verde, p. 61). Também no poema de João Paulo Esteves da Silva a cidade é descrita por oposição: os ramos de louro, a salsa e os figos secos podem ser lidos como naturezas mortas, tanto no sentido pictórico, como num sentido mais literal. E, no entanto, somos levados a intuir que essas coisas mortas parecem estar mais vivas do que aquelas que agora habitam a cidade onde já ninguém faz o jantar no rés-do-chão, facto que não se deve apenas ao génio rememorativo do poeta, mas também à folia actual do mercado imobiliário e do novo quinto império português: o turismo ryanair, claro.
Lidos em conjunto como uma espécie de díptico, ou até como Lado A e B do mesmo disco, No Outro Mundo e Ascendentes apresentam não só uma coerência temática inabalável, como a presença de uma voz poética singular e irrepetível. Se dúvidas ainda restassem de que João Paulo Esteves da Silva é um dos nomes mais interessantes da poesia portuguesa publicada neste século, a sua produção mais recente apresenta uma tal maturidade expressiva e um universo de obsessões e referências tão rico que torna impossível continuarmos a não lhe oferecer o destaque devido: «Olho os veleiros a brincar no Tejo/ e absorvo-lhes as formas sem esforço./ Foram tantos anos a estender a pele/ e a escutar o som fundo dos ossos/ mas consegui; agora sou um barco, avô» (No Outro Mundo, p. 14).
Bibliografia
Alexandre, António Franco. Uma Fábula. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.
Biedma, Jaime Gil de. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento. 2ª edição revista e aumentada. Lisboa: Cotovia, 2003.
Magalhães, Joaquim Manuel. Alguns Livros Reunidos. Lisboa: Contexto, 1982.
Verde, Cesário. O Livro de Cesário Verde – Seguido de Algumas Poesias Dispersas. Edição revista por Cabral do Nascimento. Lisboa: Editorial Minerva, 1952.
* Doutorando financiado pela FCT (2024.06124.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: hugomiguelsantos@edu.ulisboa.pt.
REFERÊNCIA:
Silva, João Paulo Esteves da. No Outro Mundo. Lisboa: Averno, 2024. Silva, João Paulo Esteves da. Ascendentes. Lisboa: Morte do Artista, 2025.