Teresa Líbano Monteiro*
Setembro é o mês dos (re)começos e, por isso, um tempo auspicioso para estreias. Foi sob este bom augúrio que a artista Esteves sem Metafísica – nome artístico de Teresa Esteves da Fonseca – se estreou em palco no passado dia 27 de Setembro, com o concerto de lançamento do seu primeiro álbum, de.bu.te, na Casa Capitão.
Estava um tempo outonal, de chuva mole e peganhenta, e, apesar do mês venturoso (ou, antes, por causa dele), muitos outros eventos culturais decorriam em Lisboa nessa mesma noite. Ainda assim, a sala da Casa Capitão estava cheia, com um público expectante e tão variado que incluía pessoas de várias gerações, jovens alternativos, jovens menos alternativos (os denominados «betos»), padres de cabeção e outros curiosos de variada espécie. A mixórdia de espectadores era já uma antevisão do concerto a que iriam assistir, uma fusão de vários géneros musicais, influências literárias, registos linguísticos e ainda, timidamente infiltrada em tudo isto, de uma premente religiosidade.
Acompanhada por uma banda composta por músicos diversificados (cujos instrumentos variavam entre a corda, a percussão, o sopro, o teclado e as vozes de um coro feminino), Esteves sem Metafísica entra em palco. A rica variedade de músicos contrasta com a sobriedade do arranjo da artista, que vestia uma farda de estilo militar numa clara homenagem aos Beatles, mais concretamente ao álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, em cuja capa famosa (e repleta de famosos) vemos os quatro músicos envergando a mesma farda de Esteves, mas em cores fortes e garridas. A artista, pelo contrário, foi de branco, talvez pela humildade de se saber de.bu.tante neste mundo de grandes referências.
A canção de abertura do concerto foi, justamente, «Because», numa nova consagração aos mestres da música pop. Contudo, numa inversão irónica, também os Beatles apresentaram a Esteves Sem Metafísica, pois «Because» embrenhou-se em «Proposição», música-manifesto da artista na qual anuncia o lugar que se propõe ocupar no mundo da música – «De uma só vez entro em frente a cantar / A brasa espalha, e eu sopro a queimar» – e dá a conhecer o seu nome estético. Com efeito, o final da letra é tomado pela estrofe da «Tabacaria», de Álvaro de Campos, onde surge a figura do lhano «Esteves sem Metafísica». É a ele que Teresa Esteves da Fonseca, numa nova manobra irónica, vai buscar o nome de baptismo artístico: se o Esteves é a figuração do homem comum que, na sua vida rotineira, entra e sai da tabacaria que intitula o poema, a Esteves sabe que esse lugar mediano e corriqueiro não é o seu. Desde logo, porque a sua música é com metafísica.
Nas letras introspectivas (mas não sentimentais) de de.bu.te, surpreendemos uma recorrência constante a expressões que pertencem a um léxico marcadamente bíblico-cristão – por exemplo, palavras como «cálice», «redenção» (que intitula uma das canções do álbum), o oxímoro «paraíso agreste» ou ainda os versos «por estes olhos corre a lama / que aos teus pés se ajoelhou» (parte final da letra de «redenção»). Mas, mais do que isto, muitas letras deste álbum são, contrariamente ao conselho dado por T.S. Eliot aos escritores com crenças religiosas, conscientemente cristãs, o que, longe de fazer delas propaganda religiosa, antes lhes dá um peso e uma solenidade raros na actual música pop portuguesa. Pensamos, por exemplo, nas músicas «Não sei ter-te» e «Dar-me de volta», canções de amor que não são dirigidas a alguém terreno, mas a um Deus simultaneamente próximo e desconhecido («Eu não sei o teu tom», ouvimos na segunda música). «Não sei ter-te» nomeia mesmo o seu destinatário num verso que parece estranhamente saído da «Ode Marítima» de Álvaro de Campos: «Ó, náutico Deus dos desejos maquinados em segredo». Pegando num altifalante, Esteves sem Metafísica apregoou:
Não sei, nem sei se procurei
Sei que rezei
E na oração tentei sair do umbigo
Que me prendera a outras entranhas que não eram minhas
Sei que cabes na extensão que vai para lá
de onde os meus braços chegam
A oração procurou alcançar esse Deus imenso e assim desprender a poeta de entranhas alheias – pois como poderiam ser verdadeiramente dela se nelas não encontra quem procura e, como disse Santo Agostinho nas suas Confissões, é dentro de nós mesmos que Deus está? Devemos, pois, fazer o difícil mergulho nas nossas entranhas se quisermos encontrar Deus. Eis o apelo feito em «Solidão»: «Tenta toda a solidão», pois só assim, ouvimos no refrão, «todo o teu amor será maior».
Desengane-se, no entanto, quem pense que a gravidade de tais letras não faz um bom espectáculo, ou o destempera de sentido de humor. Para já, como vimos, Esteves sem Metafísica, começando na própria auto-designação, gosta de entrar nos jogos lúdicos da ironia. Por outro lado, a artista em palco ia amenizando a densidade das músicas com apontamentos divertidos – por exemplo, o grupo coral feminino, aliás excelente, foi apresentado como as «betas físicas» (em contraste com a metafísica da cantora). Houve, também, momentos de pôr a dançar toda a plateia – como aquele em que a banda tocou «dar-me de volta», de letra densa (como vimos há pouco) mas musicalidade bem ritmada, fundindo os meandros psíquicos em que entra o poema com o balanço do corpo pedido pela melodia (ouçamos o início psicadélico da canção, uma mistura de música de circo assombrada por um espectro cantante, algo na linha dos Ornatos Violeta mas ainda com sopros orientais presentes nos álbuns mais experimentalistas dos Beatles).
No alinhamento do concerto surgiram ainda boas surpresas de músicas não inseridas em de.bu.te. É o caso da combinação estranhamente harmoniosa entre a canção gaélica «Bean Pháidin», que criou um ambiente de brumas e mitos nórdicos (apesar de ser apenas sobre o ciúme doentio de uma mulher que desejava partir os dedos dos pés àquela que havia ficado com o homem por quem estava apaixonada, como comentou humoristicamente a cantora), com a música tradicional portuguesa «Deste-me a florzinha», cantada em cânone. A meio desta mistura musical, Esteves sem Metafísica fez modulações que ressoaram às fórmulas litúrgicas entoadas pelos sacerdotes.
Apesar do enorme tributo prestado aos Beatles, cujas músicas alcançaram um sucesso absolutamente inaudito, nada do que foi tocado no concerto poderá ser considerado comercial – no sentido de se assemelhar, quer nas letras quer nas melodias, às músicas actuais que passam maioritariamente na rádio. Há, porém, umas quantas canções que ficam no ouvido – seja pela letra (como é o caso de «Sóbria», lançada como single antes do álbum), seja pelo som (e lembro de novo «dar-me de volta» pelo embalo do seu ritmo, que dá vontade de trautear). Mas não é o tipo de música que possamos ouvir distraidamente enquanto esperamos no trânsito, ou que sirva de pano de fundo ao ambiente de um restaurante ou de uma loja de roupa. Esteves sem Metafísica, pelo contrário, exige uma atenção que é raro conseguirmos dar e que apenas pode ser dada de duas formas: ou numa escuta solitária do álbum ou – e penso que sobretudo – num concerto. Na primeira hipótese temos o benefício de escutar melhor a profundidade das letras, na segunda – para mim, a melhor – existe a vantagem de podermos ouvir ao vivo, sem subterfúgios, toda a riqueza e qualidade musical de Esteves e da sua magnífica banda. A artista assume-se como de.bu.tante, mas tem já uma maturidade de quem muito experimentou na música e na poesia (lembre-se que a sua primeira estreia foi em 2023, com a colectânea de poemas A morte não tem pátria). Na música «Fado», afirma convictamente:
Pensas que estou para aqui atrapalhada
Sem te aperceberes que eu sou vertical
À minha maneira e sem rodeios
Vou sem medo nenhum de não ser igual
Que continue sem medo de não ser igual e com a mesma verticalidade de de.bu.te, como quem liga o céu à terra, é tudo o que lhe podemos pedir.
* Doutoranda financiada pela FCT (2022.12337.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa. E-mail: mariateresamonteiro@campus.ul.pt