Rodrigo Cruz
Quando penso em corridas de touros filmadas, é inevitável recordar as emissões confrangedoras da RTP e da TVE. Não me surpreende a aversão de muitos ao televisionamento do que acontece numa praça de touros. Albert Serra, felizmente, filmou de outro modo o métier do toureiro-popstar da actualidade, Andrés Roca Rey.
O cenário do filme, o mundo das touradas, é uma dessas rachaduras que de quando em quando alimentam noticiários e debates em torno de prós e contras. Convoca todos os tipos de curiosos — vi-os reunidos na mesma sala. Os primeiros foram em excursão, convencidos de que iriam a uma tourada na 5 de Outubro, motivados pelo tio aficionado e pelo que leram na ¡Hola! sobre a fisionomia do príncipe destemido, gritaram olés, bateram palmas, e alguns concordaram em coro: «isto é melhor do que ao vivo». A outra tribo tapou os olhos e suspirou com repugnância. Todos couberam ali, incluindo os restantes.
Uns afirmam que Serra filmou um manifesto anti-touradas; outros, que assinou uma apologia do sangue e da violência bacoca. De facto, o cineasta toma partido — em várias direcções. O filme dilui-se em contrastes: entre o olhar piedoso do touro moribundo e a fragilidade de um matador desamparado. Isso não torna a obra ambígua nem quebradiça: é precisamente a incerteza que lhe dá força, espelhando os que duvidam, os que mudam de ideias, os que pensam em algo e, ao mesmo tempo, no seu contrário; os que recusam o absoluto sem deixar de o ponderar, sem deixar de admirar quem o persegue.
Não há vozes-off afectadas a declamar historiografias apressadas, nem entrevistas em poltronas ladeadas por relicários de família, onde alguém confessa à câmara o que lhe vai na alma. Não tem as virtudes didácticas de uma lição de tauromaquia. Não se explica o que é uma verónica nem em quantas partes se divide uma tourada. Serra prefere fragmentar, desordenar e elidir, num movimento sempre antinómico.
O jogo de contrastes começa no primeiro raccord. Um touro aparece na penumbra de uma ganadaria, numa noite que contrasta com as tardes de sol e sombra na arena. A apresentação noctívaga do animal ecoa na cena seguinte: a do toureiro luzente, ferido, recolhido no interior de uma carrinha de vidros fumados, sempre nocturna, mas cheia de luz. Terá sido aquele touro da noite quem lhe deixou as marcas do dia? A primeira tarde fica elidida nesse raccord. Desde aí, impõe-se um som: a respiração do bicho. Apesar de se ouvir por vezes o pasodoble da banda que, à semelhança da plateia, nunca se vê, é a respiração do animal que marca o compasso do filme. Primeiro isolada, depois constante, discreta e subterrânea, como um metrónomo invisível. Um batimento grave que guia o mundo de Roca; um ciclo de entradas e saídas de arenas, carrinhas e hotéis, de inspiração e expiração. O fôlego é partilhado até ser interrompido pela morte. Depois, vem outro touro.
Se touro e toureiro são os heróis, a trupe que acompanha Roca Rey é o coro. É uma corte em torno do Rey, tão bafienta como os palacianos que Serra filmou em A Morte de Luís XIV (2016) e que apaparicaram o Rei Sol até à morte. Enquanto vemos Roca a tourear, ouvimos os comentários e murmúrios do coro daquela tragédia. Têm todos bem estudada a lição de cortesãos: incentivam, gritam impropérios, exaltam o herói com refrões sobre a pureza da sua faena e sobre o tamanho dos seus testículos. De volta à carrinha, no regresso ao hotel, o mesmo orfeão abafa a voz de Roca. Mas, quando ele desaparece, no fim de uma tarde desastrada, a cuadrilla revê a actuação num telemóvel e critica os riscos desnecessários a que tantas vezes o jovem se sujeita. Se à frente do mestre dizem que não foi apenas sorte e que toureou «como os grandes», então atrás, quando Andrés desaparece, a corte descontrai e vai beber cervejas «mais geladas que o touro morto». Aqueles toureiros de segunda liga prestam-lhe uma forma de cuidado, própria de quem vive na sombra de alguém que está perto, mas afastado.
Percebemos que o matador come à parte, mantendo a distância entre senhor e servos. Roca isola-se. Recolhe-se ao hotel — para quê, não se sabe. A sua existência resume-se a ser toureiro. A sua vida reduz-se a uma performance autocontida, quase oca. Serra retrata um Andrés mais próximo do animal do que de qualquer um dos homens que o rodeiam. Num plano, Roca mostra a língua ao touro; no seguinte, o touro faz o mesmo. Quem imita quem? Segundo a tradição, quando o touro mostra a língua, é sinal de cansaço ou de medo. A existência do matador, como a do touro, é confinada ao destino de cumprir um papel que o separa das restantes pessoas. Touro e toureiro estão sós — aí se entalha a Soledad do título.
Roca Rey é uma figura estranha, impessoal e desconfiada. Um grande actor, certamente. Dos melhores da actualidade. Não um louco, não um suicida — mas alguém que está sempre em cena. O sopinha-de-massa, de voz trémula e acanhada pertence igualmente ao retrato do corpo esguio e escultural, semi-nu em collants, que ajeita o sexo à frente do fiel escudeiro que lhe veste o irrespirável traje de luces. Sob o sinal-da-cruz repetido coreograficamente perante uma Nossa Senhora, cumpre-se um ritual principesco que parece anteceder um sacrifício pagão. Depois disso, toureiro e escudeiro aguardam, monotonamente, dentro do elevador dourado que os levará ao lobby de um Ritz.
Passes frustrados, maus touros, sermões na carrinha, viagens, espera. A vida repete-se porque Roca sobrevive. A maioria das corridas são aborrecidas e repetitivas, mas não é uma repetição banal, porque ninguém se habitua a arriscar a morte — mesmo quando os que o rodeiam gritam «Que se lixe a morte!», «Que importa a vida!?». O que preenche o filme é antes a náusea, a ansiedade, os tiques nervosos inscritos no rosto do toureiro. Serra assume o excesso, presta-se ao barroco, às cores saturadas e ao ornamento. Mas não resvala para o lirismo fácil nem para o folclore decorativo. Nunca vemos uma entrada epopeica em cena porque a pompa do cortejo é substituída por um rosto nauseabundo. Roca já está lá — vindo da carrinha, do hotel, lançado directamente na arena, como se não houvesse começo, apenas repetição. Só no final do filme é que o vemos sair da praça timidamente, a desaparecer da tela como de cena, rumo a mais uma tarde de solidão. Não há ascensão épica do herói; há o confinamento de uma rotina vista de perto, demasiado de perto.
Serra não filma a tourada. O filme não corresponde à filmagem de um espectáculo. Incapaz, ou desinteressado, de transmitir a experiência ao vivo, transforma a tourada noutra coisa. Constrói uma proximidade impossível: fragmenta, amplia, desconjunta a acção em quadros momentâneos. Os zooms perseguem detalhes: o dorso do animal, a anca do toureiro, o brilho de um berloque que condiz com a areia da praça. Muitas vezes perde-se a origem do movimento e os enquadramentos estalam: os corpos sobrepõem-se, confundem-se, dando lugar a fragmentos encavalitados. Se recorrermos à linguagem da pintura, o que resta é a magnificação de dettagli isolados. Retira-se à tourada a sua linearidade e oferece-se, em troca, uma sucessão de composições fragmentárias. Decifra-se o que é de quem: touro, toureiro, cavalos, picadores, bandarilheiros, todos absorvidos na mesma matéria, onde a amalgamação dissolve a noção de distância.
Contudo, esta proximidade extrema não produz intimidade nem imersão. Vê-se demasiado perto e, no entanto, o distanciamento permanece. Talvez por isso a plateia nunca apareça: apenas a ouvimos ao fundo, como um rumor distante. Sevilha, Madrid, Bilbao diferenciam-se pela cor da areia e das barreiras, pelo rebuliço e grau de embriaguez do público. Mas esse mundo de gradações chega-nos sempre desfocado, reduzido a sinais: os lenços brancos que irrompem no fundo do plano, sem nitidez, são espectros de uma exaltação que não nos pertence. Eles não vêem com tanta proximidade o que nós vemos; mas também nós permanecemos afastados daquilo que lhes está perto — do que chamam «corrida» ou «espectáculo». Nós vemos outra coisa — vê-se de perto como se fosse longe.
Há quem reduza o cinema a tempo e movimento; se assim for, a tourada também o é. E se o cinema tem a ver com o estranho prazer e desconforto de olhar para vivos e mortos, aqui não é diferente. A relação entre cinema e tourada é convocada para ser, ao mesmo tempo, posta em causa: quando o coro diz que Roca toureia em câmara lenta, como se esculpisse o tempo, é essa modulação que Serra sugere — mas apenas para mostrar que essa escultura não existe, que o tempo da lide é sempre outro, sempre distante. Não é Roca que controla o tempo da montagem; o filme mostra isso — a vida e a morte são decididas por um corte. E é nesse movimento que Serra fixa o que parecia fugaz. Aos touros e a Roca Rey concede uma forma de eternidade — a do cinema.
REFERÊNCIA:
Serra, Albert, realizador. Tardes de Soledad. Andergraun Films, Lacima Producciones, 2024, 2h 05 min.