Daniel Pérez Fajardo
A cidade de Paris sabe muito bem habitar as contradições próprias de uma grande urbe, como também dos tempos modernos que nela nasceram. Indício disso é a atual exposição oferecida pelo Musée des Beaux-Arts de la Ville de Paris focada na obra do artista Jean-Baptiste Greuze. O andar inferior do edifício cuja academia repudiava o artista é hoje adornada com uma curadoria notável que chama o visitante a se aproximar, se calhar, do lado mais íntimo e complexo da obra do artista: a infância. A exposição «Greuze, l’enfance en lumière» aprofunda numa obra cheia de matizes que bem podem ser índice da redenção do artista nos círculos da academia francesa ou, por outro lado, uma condenação subtil, mas, quase definitiva. A ambivalência abunda na casa das musas de Paris, coisa que bem pode abrumar o visitante pouco habituado às subtilezas.
O jogo das sugestões que propõe o Petit Palais pode ser compreendido como um fingimento das reais intenções tanto da exposição como da obra. Vamos fingir ser outra pessoa, uma personagem que finge e que, naturalmente, gosta de Greuze. No capítulo XVII de Os Maias, a Condessa Gouvarinho finge a doença do seu único filho sob as reais intenções de começar relações chegadas com o médico Carlos da Maia. Prevendo que as suas intenções foram descobertas, ela dá um salto maior tentando ingressar já no Ramalhete, mas, sempre mascarando intenções, diz que é uma pena não ter visto os esplêndidos Rubens e Greuze que Ega tinha dito que Carlos possuía. Esta pequena sugestão, com todas as suas aristas, vai ser suficiente para o nosso ingresso no Petit Palais.
Desde o ponto de vista da condessa e as suas aparentes inclinações artísticas, a atual exposição do Musée des Beaux-Arts poderiam ser satisfeitas com suficiência. Há, com efeito, uma zona para Rubens e outra para Greuze, dualidade muito sugestiva que tem de ser abordada, primeiro, desde o mais consagrado de ambos os artistas.
O andar -1 do Palais destaca-se pelo seu ecleticismo onde artefactos da antiguidade se misturam com as obras pictóricas de séculos diversos. O visitante atento poderia ser assaltado pela questão do limite entre arqueologia e arte, mas o nosso percurso, guiado pela Condessa, persegue apenas grandes obras. Entre as assinaladas, a Condessa poderia encontrar L’Enlèvement de Proserpine, obra que mostra uma faceta invulgar de Rubens, não sendo composta pelo excesso corpóreo que identifica as suas telas mais famosas, mas sim pelo traço difuso e vaporoso que bem faz justiça a um barroco mais mediterrâneo que setentrional. Embora a Condessa pudesse parecer satisfeita, vale a pena ter também considerações por obras que, para o seu tempo, seriam contemporâneas, demasiado atuais, ou até anacrónicas. Os momentos mais obscuros da arte são bem visitados por obras evocativas de Delacroix, Moreau e Jongkind, enquanto a luz resplandece nos trabalhos dos pré-rafaelistas numa das salas mais interessantes da exposição permanente do palácio das artes de Paris. Vai ser já no rés-do-chão onde aparecem as obras mais laureadas da exposição, sendo estas compostas por um afamado Monet e grandiloquente Doré que competem com o dramatismo de Le Christ de Bonnat. A pintura rainha da exposição permanente é definitivamente En soirée – Madame Pascal Blanchard, retrato de uma mulher elegante que certamente pareceria chic para a Condessa Gouvarinho. A possível chegada do estilo parisino a Lisboa, fruto da nossa imaginária visita ao museu, também poderia aparecer no mobiliário. Com uma intermitência quase arbitrária, o museu apresenta peças decorativas que evocam os tempos dos impérios e a belle époque. Entre estas destacam-se os mobiliários art nouveau e a cristaleira que enchera as salas elegantes de tempos já passados. Muito provavelmente a Condessa houvera preferido o sóbrio estilo inglês do escritório de Carlos da Maia em lugar da fragilidade da arte nova.
A fingida visita da Condessa não pode estar completa sem aceder à exposição temporária dedicada a Greuze. Após o pagamento de um bilhete, a visitante é convidada a mergulhar em sete salas que evidenciam a fascinação do artista com os modelos de idade pueril. Não é uma intriga desconhecida que Greuze foi questionado pelo seu trato das formas na pintura histórica, razão que pode sustentar a escolha da infância como foco da exposição. Mas a curadoria sugere também um sentido muito parecido com um juízo, até, um questionamento. Os quadros de Greuze mostram crianças a usar o espaço que fora reservado para adultos. A transposição de modelos faz uma espécie de contrassenso onde as poses típicas da arte são agora encarnadas por corpos que estão, ou deveriam estar, desprovidos dos valores sugeridos pela pictórica. Temas como o heroísmo, o patetismo e inclusive a sensualidade são representados por crianças, o que pode gerar a repulsa razoável ante as telas.
Existe uma incongruência evidente no trabalho de Greuze sobre a infância que bem pode questionar a forma como o artista a representou. O mundo do adulto é fingido por figuras impróprias numa proposta em que ainda resiste uma sensação de inocência que é perdida quadro a quadro. A curadoria parece ciente deste problema e interpreta a obra como uma forma de abordar o lugar da infância dentro de um mundo onde se questiona a natureza do Homem e o seu lugar na sociedade. Ainda quanto às inquietudes do século das luzes, estas são possíveis de adivinhar por causa da sugestão do museu; o sentido humanista das obras vai sempre ser contestado pelas formas duvidosas que o artista apresenta. A exposição pode parecer, dessa forma, uma celebração válida do mérito pictórico e o sentido profundo da obra, mas também um remanente do questionamento que já o distanciara de Diderot e que parece renovado uma vez que o visitante vagueia pela exposição de não-crianças reunidas todas no ambivalente festejo dedicado ao artista.
É possivelmente pela insistente abundância das obras de Greuze que o questionamento aflora no visitante. A justaposição falta nos grandes nomes da arte citados na exposição permanente, o que, talvez, seja o motivo da evidente dualidade que atualmente divide o Petit Palais entre artistas expostos para desfrutar ou para julgar. Ainda assim, estas subtilezas poderiam não ser advertidas pela Condessa desde que estas nasçam de um juízo ético sobre o lugar das crianças na sociedade e na arte, ideias que provavelmente faltavam na Condessa, segundo sugere o romance, devido ao trato dela com o seu único filho. Muito provavelmente a Condessa teria saído para Les Champs-Élysées com o seu spleen apaziguado e com a conformidade de ter presenciado obras imortais detidas no tempo. Mas, também muito provavelmente, a admiração da Condessa pelas obras de Rubens e Greuze seja motivada por estas serem propriedade de Carlos da Maia, forma de evocação artística que é contrária ao espírito público de um museu criado nos ideais artísticos do segundo império e da terceira república.
Nota: A exposição pode ser visitada até 25 de Janeiro 2026.