Camila Lobo

«There are plots against people, aren’t there?»

Estamos no ano de 1968. Na América do Norte, e um pouco por todo o mundo, o movimento feminista ganha força. A cidade de Nova Iorque, em particular, é palco de protestos feministas sem precedentes. Se as New York Radical Women tomam conta das ruas em protesto contra noções tradicionais de feminilidade, articulando pela primeira vez o slogan «Sisterhood is Powerful»[1], a National Organization of Women protesta contra a criminalização do aborto: «Nobody should legislate my rights to my body»[2], lê-se no cartaz transportado por Kate Millet.

Nesse mesmo ano, alguém que, apenas alguns anos mais tarde, seria condenado pela violação de uma menor, tornando-se assim um dos mais célebres inimigos da causa feminista, faz-se autor de um filme incontornável para a reflexão feminista sobre cinema. O homem é Roman Polanski e o filme é Rosemary’s Baby, uma obra de difícil categorização, que navega entre o terror, o gótico e o thriller psicológico. Um clássico moderno, Rosemary’s Baby desenrola-se na mesma Nova Iorque dos protestos contra a organização patriarcal da sociedade. E, no entanto, nada de explicitamente político carateriza a obra, e em nenhum momento podemos falar de uma consciência feminista que nos guie por entre as suas peripécias. O que há, então, de feminista, ou de político, num filme realizado por um anti-feminista declarado?

À primeira vista, o enredo do filme presta-se a uma interpretação relativamente simples: Rosemary (Mia Farrow) e Guy Woodhouse (John Cassavetes) formam um jovem casal que planeia constituir família, mas decide adiar esse passo até que a sua vida se encontre mais estável financeiramente. Tal estabilidade depende do sucesso de Guy, ator medíocre a quem, num golpe de sorte, é dada a oportunidade de substituir um ator rival numa peça, depois de este ficar subitamente cego. O casal decide então ter um primeiro filho, mas, na noite escolhida para a conceção, Rosemary desmaia e sonha que é violada por uma criatura demoníaca.

Guy admite ter tido relações sexuais com Rosemary enquanto ela se encontrava inconsciente, ao que se segue uma gravidez extraordinariamente difícil: Rosemary sofre dores intoleráveis, vê a sua saúde deteriorar-se, e sacrifica a pouca agência que lhe resta em nome de uma gravidez que deve ser levada a termo a todo o custo. Entretanto, tudo e todos à sua volta parecem naturalizar a situação. Não tarda, o espectador descobre, com Rosemary, que a jovem é vítima de uma seita satânica, na qual está envolvido não apenas Guy, como também o casal idoso da vizinhança, e até mesmo o médico que acompanha a sua gravidez. Juntas, todas as personagens que povoam a vida íntima de Rosemary, são atores num esquema de controle e manipulação com o propósito de ficar com o seu filho, que profetizam ser o escolhido para levar o mundo num caminho de escuridão apocalíptica.

O filme é, no entanto, composto por camadas: numa camada superficial, Rosemary é de facto a vítima de uma seita satânica que quer ficar com o seu filho, e o filme não passa de uma fantasia gótica que explora os limites entre a paranoia e o mal radical. Mas basta escapar um pouco desse plano de literalidade, para descobrirmos um complô de violação, gravidez e domesticidade forçadas, gaslighting e exploração, que não são senão pilares do sistema patriarcal global. Como muitos dos melhores filmes na história do cinema, Rosemary’s Baby parte do particular para o universal, e ao falar da violência cometida contra Rosemary, fala da violência estrutural contra todas as mulheres.

A opressão começa em casa, com Guy como porta-estandarte, a reproduzir as tradicionais dinâmicas de poder doméstico que colocam as ambições, interesses e estatuto do homem acima das necessidades da mulher – no caso, as mais básicas das necessidades: a sua saúde, segurança, integridade física. Mas se Guy aqui representa a dominação masculina, Rosemary é – salvo raras exceções – o símbolo da subordinação feminina no seu expoente, sacrificando uma e outra vez a sua agência, interesses e individualidade em nome das suas responsabilidades domésticas, do seu marido e família. Assim funciona o sistema patriarcal global, totalmente dependente da cumplicidade das mulheres que subordina e explora. Rosemary deve isolar-se em casa, a sua vida totalmente dedicada a Guy e ao filho que aguarda, sem capacidade crítica ou possibilidade de aceder a uma perspetiva externa.

No seu apartamento nova-iorquino, Rosemary e Guy vivem aquilo a que D.H. Lawrence chamou um «egoísmo a dois», uma forma de relacionamento alicerçado na posse, na dependência, no enclausuramento e que, aliado à organização patriarcal da sociedade, se torna instrumento de dominação masculina. O ideal do amor romântico, aqui radicalmente degenerado, transforma, pois, Rosemary’s Baby numa fábula sobre a subordinação das mulheres sob o signo do patriarcado, traçando os contornos de uma estrutura de opressão que encontra o seu epicentro no próprio lar. Nesta Nova-Iorque privada, o slogan «Sisterhood is powerful» está longe de ser ouvido, e os recursos interpretativos necessários à identificação das perversas dinâmicas do isolamento doméstico escasseiam.

Tal como sucede com a rede de influência do culto satânico, porém, a ideologia patriarcal entranha-se em todas as dimensões da vida, incluindo nos espaços de mais incontroversa «objetividade». Num momento em que quase tudo está já perdido para Rosemary – a sua agência, a sua saúde, a confiança em si mesma e naqueles que a rodeiam –, a jovem procura recorrer ao seu médico num derradeiro esforço de reaver controlo sobre a sua vida. Mas também o médico, figura de autoridade que o próprio espetador encara com uma última réstia de esperança, se revela parte do esquema conspirativo.

Que Rosemary seja traída pelo próprio médico num momento em que procura recuperar a sua agência é, não por acaso, visto pela cineasta Karyn Kusama como uma das mais assustadoras cenas de terror de todos os tempos. Como no mundo patriarcal, os tentáculos do culto satânico alastram-se por todas as partes, definem o que é verdadeiro e falso, determinam o que conta como real. Contra a ideologia, nenhuma ciência. Contra os interesses do grupo dominante, nenhum defensor da verdade. Depois de perder tudo, Rosemary perde finalmente o direito à sua autodeterminação física – o eco distante do slogan «Nobody should legislate my rights to my body» – com o aval de alguém que, por definição, teria o dever de a proteger.

Mas regressando à nossa questão: o que queremos dizer quando falamos de um filme feminista? Quais serão os critérios para assim identificar uma obra de cinema? Uma forma popular de dar resposta a esta questão é apelar a abordagens quantitativas que se propõem medir a representação de género em obras de ficção. Mas o problema deste tipo de abordagem é ser essencialmente incapaz de identificar o modo como essa representação ocorre já numa dimensão cultural androcêntrica, que não procura necessariamente desafiar. Pelo contrário, continuamos a assistir à produção de artefactos culturais que, limitando-se a incluir a sua quota-parte de personagens femininas, reproduzem uma lógica eminentemente sexista. A mais famosa destas abordagens, o Teste de Bechdel-Wallace, note-se, foi criada com o humilde objetivo de operar como barómetro social. Mas apesar das melhores intenções das suas criadoras, a identificação do caráter feminista de um filme – ou de um qualquer outro produto cultural – é hoje frequentemente indexada a este tipo de abordagens aditivas e a um resultado positivo no teste da «representação de género».

O carácter feminista de um filme deve, pois, ser procurado noutro lugar. Regressemos então ao legado da chamada «segunda vaga feminista» e às análises feministas sobre cinema levadas a cabo nesse contexto. Naquele que continua a ser um dos mais importantes ensaios feministas sobre cinema, escreve Laura Mulvey: «Num mundo organizado através do desequilíbrio sexual, o prazer de olhar foi dividido entre o ativo/masculino e o passivo/feminino. O olhar masculino [male gaze] determinante projeta a sua fantasia na forma feminina que é estilizada em conformidade.»[3] Neste sentido, uma visão feminista crítica sobre o cinema procura romper com o papel tradicional da mulher como mera portadora de significado, recetora do olhar masculino, transformando-a antes em criadora de significado.

Mas em oposição ao tradicional «male gaze», as teóricas feministas não propõem um «female gaze» análogo. Este novo olhar sobre o cinema não quer tornar a objetificar, nem procura simplesmente o voyeurismo ou o prazer. Trata-se agora de criar e identificar o olhar «oposicional» de que bell hooks nos fala, e que procura desafiar o lugar da alteridade – das pessoas negras, das mulheres – no cinema[4]; de enfatizar o olhar «matricial» descrito por Bracha L. Ettinger como um olhar feminino crítico, que se opõe diretamente ao olhar fálico lacaniano, e desafia a dicotomia sujeito-objeto.[5] É, pois, no olhar – da câmara, da narrativa, do público – que se descobre o potencial crítico e de resistência de uma obra cinematográfica.

Acontece que, ao contrário de obras mais incontroversamente feministas, Rosemary’s não filma uma consciência feminista, i.e., não tem qualquer pretensão de representar uma personagem emancipada, que identifica padrões opressivos na situação com que é confrontada e que lhe resiste ativamente. Pelo contrário, a personagem de Rosemary exacerba a condição de subordinação da mulher no seio de uma ordem patriarcal. Mas terá realmente uma obra que apresentar mulheres emancipadas para falar sobre opressão e libertação? Não poderá, pelo contrário, colocar o sujeito subjugado no centro da ação e filmá-lo, e ao seu ambiente, através de uma perspetiva crítica?

De facto, num movimento surpreendente, Rosemary’s Baby propõe-se a desafiar o famigerado «male gaze» que predomina na prática cinematográfica. Esse olhar masculino, amplamente associado à representação da passividade feminina e à identificação com a personagem masculina no ecrã, é aqui substituído por uma mais complexa identificação do espetador com a protagonista feminina. A obra, note-se, não desafia os cânones narrativos do cinema de forma ortodoxa na medida em que não substitui a passividade da personagem feminina que, de acordo com Mulvey, serve o prazer masculino, por um tipo de atividade que causasse repulsa ao olhar dominante. E, no entanto, a passividade de Rosemary é filmada de forma ela própria ativa, servindo o tipo de denúncia levado a cabo pela teoria feminista. É nesta contradição entre conteúdo e forma que nos deparamos com o caráter político do filme: Rosemary’s Baby cumpre, afinal, essa possibilidade exclusiva da arte cinematográfica «de alterar a ênfase do olhar».[6]

Esta observação leva-me, finalmente, à nossa pedra no sapato: será que um filme pode ser feminista se o seu autor for um homem acusado de violação? É certo que Rosemary’s Baby foi um romance de Ira Levin, em 1967, antes de ser um filme de Polanski. E Levin, autor de Stepford Wives (1972), mantinha uma relação de proximidade com o movimento de libertação de mulheres que, nessa década de 1970, crescia a olhos vistos na América do Norte. Que Polanski adapte quase literalmente o livro de Levin dir-nos-á porventura algo acerca do verdadeiro autor desta parábola feminista. E, no entanto, não só do argumento vive o olhar crítico do filme, senão da subtileza da sua construção narrativa: nos diálogos, nos movimentos da câmara, na caraterização das personagens. Pelo que se conclui que Rosemary’s é também produto do génio cinematográfico de Polanski que, em última instância, lhe permitiu ser fiel às intenções narrativas de Levin.

Talvez não seja possível separar a obra do artista, para usar uma dicotomia que tem sido objecto de aceso debate nos últimos anos. Talvez não o queiramos fazer. Talvez tenhamos bons motivos – éticos, estéticos, políticos – para não o fazer. Mas nada nos impede, penso, de expropriar Polanski da sua obra. A arte, como nos lembra Julian Barnes, não pertence mais ao seu criador do que a quem a contempla: «a arte é o murmúrio da História, escutada acima do ruído do tempo».[7] Quem pode dizer, por isso, que Rosemary’s Baby é uma obra de Polanski quando ela vive do argumento de Levin? Quem pode dizer, como sugere Jason Zinoman, que esta não é acima de tudo a grande obra de Mia Farrow? O filme, assinado por Polanski, é hoje amplamente aclamado como uma das grandes obras de arte do cinema e a arte, essa, deve viver por si mesma. Fá-lo-á, aliás, ainda que não o desejemos.

Feminista ou não, Rosemary’s Baby serve, ainda hoje, uma reflexão sobre a opressão e a exploração reprodutiva das mulheres na nossa sociedade. Fá-lo de uma forma crítica, cuidadosa e criativa, que lhe aufere a capacidade de chegar a um público heterogéneo, de cultivar uma sensibilidade ética e estética cuja importância não deve ser desvalorizada. Como com toda a arte que desejamos continuar a apreciar contra impedimentos vários – como seja o facto de a obra ser assinada por um homem moralmente deplorável –, a nossa melhor hipótese é apropriá-la. Porque a arte é para ser circulada, discutida e posta ao serviço da sociedade.

 

Nota: a autora escreve conforme o Acordo Ortográfico de 1990.


[1] «A sororidade é poderosa.»

[2] «Ninguém devia legislar sobre os meus direitos ao meu corpo.»

[3] Laura Mulvey, Visual and Other Pleasures (1973)

[4] bell hooks, Black Looks: Race and Representation (1992)

[5] Bracha L. Ettinger, The Matrixial Gaze (1995)

[6] Laura Mulvey, Visual and Other Pleasures (1973)

[7] Julian Barnes, The Noise of Time (2016)

REFERÊNCIAS:

Polanski, Roman, realizador. Rosemary's Baby. William Castle Enterprises, 1968. 2 hrs, 16 min.