James Dias
O primeiro livro de Jarvis Cocker é um memoir num sentido diferente do normal. Parte dos objectos que ele foi guardando num sótão durante 20 anos para memórias suscitadas pelos mesmos. Para mostrar estes objectos, Cocker faz uso de uma espécie de jogo com o leitor (e no qual a maioria das pessoas já teve de participar a dada altura da sua vida): decidir se vai guardar um objecto ou deitá-lo fora: «Até podemos fazer disto um jogo – chamemos-lhe “Guardar ou deitar fora”.»[1]
Cocker é mais conhecido pelo seu trabalho como vocalista da banda inglesa popular nos anos 90, Pulp. Como diz a certa altura do livro, «Para mim, Pop e Pulp são termos intermutáveis»[2]. Toda a sua vida foi, segundo ele, dedicada a uma fascinação com o que é pop: «Porque a ideia de que uma cultura se pode mostrar mais através dos seus objectos descartáveis do que através dos seus artefactos supostamente venerados era algo de fascinante para mim. Ainda o é.»[3]
Cocker foi testemunha da chegada do punk na sua cidade de Sheffield nos anos 70 e do que veio depois disso. Uma das primeiras histórias que ele conta relacionadas com a dicotomia «Boa Pop / Má Pop» é sobre o famoso produtor e músico Steve Albini. Em 2008, Cocker gravou um disco com Albini. Um dia, durante o almoço, Albini perguntou a Cocker qual era o seu género de música favorito, ao que Cocker respondeu «música pop». Albini achou que estava a ser sarcástico, porque para ele música pop era música feita apenas com o intuito de vender o máximo possível e representava um tipo de atitude face ao mundo que desdenha profundamente. Mas Cocker discorda disto: Para ele, música pop é sinónima de diversão. Em sua defesa, Cocker fala das tabelas de singles pop do Reino Unido (UK Pop Charts): «uma mescla louca de comércio desenfreado e democracia de proximidade: as pessoas “votavam” ao comprar discos e ao acompanhar o seu progresso nas tabelas.»[4] Isto é o lado bom que Cocker via e vê na música pop e que é visto de forma pessimista por pessoas como Albini. Dá o exemplo de canções que chegaram ao topo da tabela como «O Superman» de Laurie Anderson que é tudo menos uma canção que Albini chamaria de pop. E o «algo» («something») que Cocker diz haver na música pop que a torna tão popular
[atravessa] todos os preconceitos sobre gosto, estilo, inteligência, classe, raça e tocou num aspecto humano comum aos cidadãos do Reino Unido na segunda metade do século XX. O sonho manifestado de Dziga Vertov de uma forma de arte proletária auto-gerada. Na secção de discos da Woolworths. Boa pop.[5]
Seguem-se várias considerações sobre outros objectos banais, alguns com valor sentimental para Cocker e outros nem tanto: o rádio com que descobriu as suas maiores influências musicais através do conhecido programa do famoso DJ John Peel na BBC Radio 1; a sua primeira guitarra eléctrica; e objectos como um pedaço de sabão da marca Cussons Imperial Leather e um frasco velho de Marmite. Guardou estes dois últimos objectos por razões semelhantes: a mudança do design do logótipo da marca de sabão ou a transição de tampas de lata para plástico nos frascos de Marmite lembram a Cocker «um traço de personalidade maior com o qual lutei durante toda a minha vida: uma aversão profunda à mudança.»[6] Mas isto não lhe aconteceu apenas com coisas de que gostava. Guardou também uma garrafa de sumo de lima da marca Rose’s pela mesma razão que guardou o sabão. A certo ponto, uma pessoa tem de se aperceber que não vai usar certas coisas, mas que o facto de as ter comprado por uma razão diferente do costume pode apontar para certas formas de ver as coisas: «Porque sou tão desconfiado de mudança? (...) O que estou a tentar esconder? (...) Nem todos os objectos que descobrimos vão acabar numa posição tão exaltada (...) mas todos contam. Porque estão todos aqui. Todos aconteceram. São a verdade incontroversa.»[7]
Cocker fala de vários assuntos ao longo do livro, mas há dois que se destacam e são de grande importância para ele: um deles é como a verdade sobre as coisas e o modo como se contam certos factos podem alterar a nossa maneira de ver o mundo. Por exemplo, Cocker sempre achou que só tinha começado a usar óculos a partir dos seis anos de idade, mas descobriu há cerca de dois anos que sempre precisou deles; apenas passou os primeiros cinco anos da sua vida num nevoeiro. Certas coisas acontecem de uma forma e, por vezes, só anos mais tarde descobrimos que afinal não aconteceram exactamente da maneira como achávamos que tinham acontecido.
Outro dos assuntos mais queridos a Cocker é a ideia de que a arte pop pode ser libertadora. Num segmento em que fala da importância que a televisão teve nele, Cocker conta a ocasião da sua banda Pulp ter ido ao famoso programa de TV Top of the Pops, conhecido pelos artistas fingirem que tocam os seus instrumentos, em playback. Houve certos artistas que tentaram subverter e fazer pouco desta prática (por exemplo, J J Burnell, o baixista da banda punk The Stranglers, simulou tocar um baixo sem cordas), mas Cocker insistiu em mimar a parte vocal em vez de a cantar ao vivo por uma razão muito simples: foi assim que viu todos os outros artistas fazer no programa, «porque para mim isso parecia mais autêntico. (...) A meu ver, mimar era keeping it real.»[8]
Esta atitude alinha-se ao ponto principal do livro: a relação entre punk e pop. Quando foi ver The Stranglers ao vivo, Cocker foi vestido de uma forma que na altura não era vista como pertencendo à moda punk, recebendo insultos de membros da plateia. Isto surpreendeu-o, pois «a meu ver, punk queria dizer vale-tudo. (...) Pareciam o gangue de miúdos violentos da escola que gostavam de futebol. Isto eram punks?»[9] A decepção de Cocker pela etiqueta punk foi combatida pela descoberta de outra banda, The Fall. Liderada por Mark E. Smith, a banda inglesa apareceu quando o punk se tornou fora de moda e o movimento post-punk tomou o seu lugar:
The Fall levaram a sério o desafio do punk de inventar algo de novo. No caso deles, quis dizer questionar a própria noção do que a música podia ser. Tinha de estar dentro do ritmo? (...) O “vocalista” tinha mesmo de cantar? E dava mesmo para se meter “-ah” no fim de cada palavra?[10]
The Fall foram importantes para Cocker porque lhe mostraram que ser punk não queria dizer andar vestido de uma forma particular, mas sim olhar para música de uma forma diferente.
Os objectos pop de Cocker, sejam de «Boa Pop» ou «Má Pop» têm aspectos em comum. Um exemplo disto é um fac-símile de cartão da mala da ex-Primeira Ministra do Reino Unido Margaret Thatcher. Cocker comprou-o numa altura em que não sabia bem quem ela era (no final dos anos 70), sendo que, mais tarde, Thatcher se tornou num símbolo do Mal para as pessoas e classe social da geração em que Cocker cresceu. A razão pela qual Cocker comprou esta mala é, mais uma vez, muito simples: ele viu-a como um objecto pop, «Mais especificamente, fez-me lembrar este objecto “pop” – o suplemento que vinha dentro da capa do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles.» [11] Para Cocker, os Beatles são um exemplo de «Boa Pop», visto que arranjaram formas de manter independência criativa, fazer da música pop o que entendessem e levar isso a um número elevado de pessoas. No entanto, a mala de Thatcher
anuncia o início da era da “Pop Má”. (...) Porque a partir de agora, os políticos vão usar as ferramentas e truques da Pop para fazerem passar a sua mensagem. Vão empregar agências de publicidade e “criativos” para inventarem a Pop nova deles: uma Pop que agora significa “Populismo” em vez de “Popular”.[12]
© Jarvis Cocker, Jonathan Cape-Penguin Random House. O fac-símile da mala de Margaret Thatcher.
A exploração de memórias através de artefactos que o autor encontrou no sótão deu conta de como as suas convicções morais, sociais e artísticas tomaram forma. E a distinção que faz entre «boa» pop e «má» pop parecia ser do género da que separava as pessoas supostamente punk do concerto de The Stranglers das pessoas que, para Cocker, são verdadeiramente punk como Mark E. Smith e os devotos de The Fall.
Um exemplo perto do fim do livro termina numa conclusão moral positiva. Uma vez, depois de ter ido sair à noite, Cocker estava à espera de um autocarro para ir para casa. De repente, apareceu um grupo de townies[13] (Cocker equiparava-os a mineiros, pessoas agressivas e supostamente incultas) que começou a fazer pouco dele e da sua roupa fora do comum. Quando o autocarro chegou, Cocker entrou e sentou-se. Os townies continuaram a maçá-lo pela janela do lado de fora e então Cocker decidiu «[espetar-lhes] o dedo e [mussitar] “Vão-se foder!” pela janela.»[14] No entanto, Cocker tinha-se esquecido de que os autocarros nocturnos esperavam dez minutos na paragem antes de partirem. O líder do grupo entrou no autocarro e empurrou com força um kebab meio-comido contra a cara de Cocker e foi-se embora. Apesar disto, a conclusão de Cocker é positiva:
Eventos como este naturalmente fizeram-me ter cautela com townies. (…) Mas não havia como evitar o Bruno (…) e falar com ele e com o Keith [mineiros companheiros de ala de hospital a dada altura da vida de Cocker], fizeram-me perceber que tinha sido culpado de fazer um julgamento geral. Categorizar todos os mineiros como townies era simplesmente errado (…) Não quero ficar todo “Ebony & Ivory” convosco, mas há mesmo “bom e mau em todos”. Mineiros bons, mineiros maus, esquisitos indie bons, esquisitos indie maus. Talvez até townies bons, townies maus (Pop boa, pop má). Assim que se começa a ver as coisas em detalhe, é difícil não reparar que o mundo é um lugar muito mais matizado do que parece.[15]
Good Pop, Bad Pop mostra mais do que factos interessantes sobre os inícios da banda Pulp e aspectos autobiográficos do autor. Este livro mostra também que todos os objectos que mantemos próximos de nós se podem traduzir, a dada altura, em convicções que temos: «uma salganhada de coisas sem um único factor dominante – é a mistura que importa.»[16]
[1] «We can even make a game out of it – let’s call it “Keep or Cob”. (“Cob” being a Sheffield word meaning “to throw”, e.g. “I cobbed it at a kid.”).» (p. 3). Nota: Todas as traduções das citações foram feitas pelo autor para esta recensão.
[2] «Pop and Pulp are interchangeable terms for me» (p. 25).
[3] «Because the idea that a culture could reveal more of itself through its throwaway items than through its supposedly revered artefacts was fascinating to me. Still is.» (ibid.).
[4] «a crazy collision of rampant commerce & grass-roots democracy: people “voted” by buying records & then watching their progress up the charts.» (p. 47).
[5] «[cuts] through all preconceptions about taste, cool, intelligence, class, race & touched some common human aspect of UK citizens in the latter half of the twentieth century. Dziga Vertov’s dream of a self-generated proletarian art form made manifest. In the record department of Woolworths. Good pop.» (p. 48). Nota: Woolworths era uma cadeia de lojas no Reino Unido que vendia vários artigos, entre eles roupa, discos, brinquedos, etc. que foi à falência em 2009.
[6] «a major character trait I have grappled with throughout my life: a profound aversion to change.» (p. 107).
[7] «Why am I so mistrustful of change? (...) What am I trying to hide? (...) Not every object we unearth is going to end up in such an exalted position (...) but they all count. Because they’re all here. They all happened. They’re the undisputed truth.» (p. 110).
[8] «because to me that felt more authentic. (...) Miming was “keeping it real” as far as I was concerned.» (p. 170). Nota: «keeping it real» é uma expressão de calão Norte-Americano que significa ser honesto ou genuíno.
[9] «as far as I was concerned punk meant anything goes. (...) They were like a gang of the tough kids at school who liked football. This was a punk crowd?» (p. 160).
[10] «The Fall took punk’s challenge to invent something new seriously. In their case that meant questioning the very notion of what music could be. Did it have to be in time? (...) Did the “singer” actually have to sing? & were you really allowed to put “-ah” at the end of every word?» (p. 161).
[11] «Specifically, it reminded me of this “pop” item – the insert that came in the other half of the gatefold sleeves of The Beatles’ Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.’» (p. 261). Ver: https://vinyldistractions.com/wp-content/uploads/2019/10/Sgt-Peppers-Insert.jpg.
[12] «heralds the beginning of the era of “Bad Pop”. (...) Because from now on politicians are going to use the tools & gimmicks of Pop to get their message across. They are going to employ advertising agencies & “creatives” to invent their new Pop: a Pop that now stands for “Populism” rather than “Popular”.» (p. 262).
[13] Nota: Termo pejorativo usado no Reino Unido para descrever pessoas incultas e grosseiras, normalmente de classe mais baixa (semelhante a outro termo pejorativo mais conhecido e comum: «chav»).
[14] «[stick] two fingers up & [mouth], “Fuck you!” through the window.» (p. 337).
[15] «Events like this naturally made me wary of townies. (...) But there was no avoiding Bruno (...) & speaking to him & Keith [companheiros de ala de hospital a dada altura da vida de Cocker], made me realise that I’d been guilty of making a blanket judgement. Categorising all miners as townies was just wrong. (...) I don’t want to get all “Ebony & Ivory” on you here but there really is “good & bad in everyone”. Good miners, bad miners, good indie weirdos, bad indie weirdos. Maybe even good townies, bad townies (Good pop, bad pop). Once you start looking at things in detail you can’t help but see that the world is a far more nuanced place than it might appear.» (p. 338).
[16] «a jumble of things with no one factor in dominance – it’s the mix that’s important.» (p. 348).
REFERÊNCIA:
Cocker, Jarvis. Good Pop, Bad Pop: An Inventory. Londres: Jonathan Cape-Penguin Random House, 2022.