Tiago Clariano*
Art History versus Aesthetics tem por proposta contemplar as disciplinas da História da Arte e da Estética como duas ilhas que se avistam uma da outra e tentar analisar as formas de comércio que mantêm entre si. Este volume faz parte da colecção The Art Seminar. Cada livro tem a estrutura de um livro de actas de um congresso e começa com «Starting Points», depois segue-se a transcrição de uma mesa redonda, com a subsequente transcrição das folhas de sala dos participantes e dos espectadores e, no fim, alguns ensaios com tom de «Afterwords». Por causa dos seus intuitos conciliatórios, James Elkins esforça-se por reconhecer que existem pontos de contacto entre as disciplinas: que a sensibilidade estudada pela Estética está contaminada por conhecimento histórico e que as antologias resultantes de trabalhos em História da Arte são fruto de decisões baseadas em juízos estéticos. No fundo, se tivéssemos um registo dos movimentos comerciais entre as ilhas na abordagem de uma obra de arte, não se saberia de que ilha partiriam, nem a qual se dirigiriam.
O título é o primeiro problema para um congresso cujo organizador pretendia conciliatório das duas disciplinas: a oposição implícita no termo «versus» sugere a imagem de um encontro de futebol ou de pugilismo. A este respeito, há uma intervenção de Stephen Melville no livro que explica bem o problema deste título quando entendido em função dos propósitos do organizador: «Fui persuadido, por Hegel, e por outros, de que quando começamos uma conversa por um desacordo, qualquer modelo ou teoria que utilizemos vai acabar por reproduzi-lo»[1]. Seguindo o raciocínio de Melville, é natural que um esforço de conciliação que parta da oposição das disciplinas tenha por efeito o reforço da sua separação.
Uma das hipóteses para entender esta distância está no desfasamento entre as acepções de Estética que persiste ao longo dos vários contributos, das reacções ao colóquio e dos posfácios, e que dificulta a defesa desta entidade quimérica. Nicholas Davey oferece três definições para Estética: a da antiguidade clássica, que designava a actividade de contemplar (de passar da análise da sensação ao pensamento); a que deriva de Baumgarten e Kant e que estuda discursos a respeito da sensibilidade e do gosto; e, por fim, a forma de estética mais recorrente no século XX, que implica determinadas normas ideológicas (de que dá por exemplo a estética marxista, feminista e fenomenológica)[2]. À taxinomia de Davey, David Raskin acrescenta uma outra distinção entre «estética fraca» (que diz orientar os historiadores da arte quando fazem decisões com base naquilo com que lhes vale a pena ocupar o seu tempo) e uma «estética forte» (que é comum nos estetas que tomam por base das suas interpretações as «premissas do seu envolvimento com o facto estético»)[3]. E David J. Getsy acrescenta, ainda, uma distinção baseada no modo como os condicionamentos geopolíticos de determinados países podem configurar modos distintos de sensibilidade, propondo que a Estética sintonize e refine melhor o seu discurso com as categorias do global e do histórico (p. 196). Desta profusão de sentidos para a Estética pode entender-se que nenhum dos advogados estava a defender o mesmo arguido, uma vez que todos estes sentidos são utilizados indiscriminadamente, levando a desacordos acerca do objecto e do escopo da Estética e à necessidade de chamar outras disciplinas para testemunhar nesta disputa, como disso são exemplo a Filosofia da Arte (Joseph Margolis implica que para se explorar a questão da percepção da pintura em Cézanne se teria de passar da Estética à Filosofia da Arte, p. 118) e os Estudos Culturais (Diarmuid Costello e Anna Dezeuze referem os contributos dos Estudos Culturais para um modo de fazer filosofia de um modo menos historicamente insensível ou culturalmente conservador, pp. 57 e 71).
Thierry de Duve[4] propõe uma interessante função social para a História da Arte: considera que o trabalho dos historiadores da Arte consiste em transmitir a tradição a novas gerações, descrevendo-os como «guardiões da tradição» (pp. 58-60), uma espécie de super-heróis que defendem o mundo da arte das ameaças do esquecimento[5]. Simultaneamente, parece atribuir aos historiadores da arte o papel de testes do tempo, como se fossem decisores sincrónicos de padrões de recorrência de referências a uma obra que só se podem aferir de um ponto de vista diacronicamente desfasado. Pode arguir-se que estes padrões têm flutuações sempre que, por exemplo, uma pessoa traz uma obra de arte pouco conhecida para uma conversa, mas a diferença é que a História da Arte produz e divulga antologias de obras de arte devidamente legendadas e categorizadas em períodos cronológicos, interferindo directamente nos padrões de recorrência das referências a determinadas obras de arte.
A discussão decorre entre o senhor bem vestido, metodológico e de discurso estruturado, que representa a História da Arte—que vê o seu objecto à distância, separado por uma vitrine temporal—e uma quimera que representa a Estética—que não tem problemas em rebolar nas tintas nem em tocar nos materiais das obras de arte. Ou, se recuperarmos a ideia de que uma disciplina não existe sem a outra, a discussão está entre o Dr. Jekyll da História e o Mr. Hyde da Estética—e um não fala enquanto o outro está no comando. A imagem de Dr. Jekyll e Mr. Hyde pode ajudar a entender esta oposição se tivermos em conta o contributo de Michael Newman para o debate, que expõe o carácter íntimo da relação entre as várias disciplinas que estudam arte como «modalidades de ciclos de retorno»[6]. Jekyll e Hyde eram duas personagens, com aspectos radicalmente distintos, na mesma pessoa e, no conto de Stevenson, os documentos deixados por Hyde eram importantes enquanto formas de «ciclos de retorno» para Jekyll (e vice-versa). O destino de duas disciplinas é muito diferente do destino do protagonista dum mistério, mas talvez seja tempo de as disciplinas reconhecerem a sua «complexa e primitiva dualidade» (expressão de Stevenson), para se evitar a continuação do antagonismo pressuposto no livro de Elkins. Mas também é a objectificação de domínios de conhecimento que torna fugazes os entendimentos quanto ao Mr. Hyde da Estética: os vários domínios disciplinares invocados estão todos confundidos à partida. Da abordagem geopolítica de disciplinas que se querem ver separadas (patente na sua recorrente analogia com ilhas), resulta um péssimo modo de se aceder ao problema ou de propor modos para o solucionar.
Pode defender-se que o ponto de partida das disciplinas é o mesmo e consiste numa noção de erotismo que Mary Rawlinson e Alexander Nehamas partilham. Rawlinson diz que «Uma coisa que é bela leva-nos a amá-la. Apanha de surpresa os nossos olhos e faz-nos desejá-la, engendra um desejo pela sua presença» (p. 138)[7] e Nehamas que «a beleza não é a propriedade de algo com bom aspecto, nem um elogio vazio: é simplesmente o objecto de amor.»[8] Estas formulações eróticas da relação com o facto estético são provenientes de discursos de estetas e são as propostas mais conciliatórias deste livro, por apelarem ao mais comum sentimento nutrido por ambos tipos de especialistas pelo seu objecto: o interesse, ou amor.
Por fim, as perguntas que são levantadas e que mais apontam para uma conciliação vêm de Crispin Sartwell, que nota que o problema não existe fora dos corredores dos edifícios da Academia: «Que tipo de coisas é que experienciamos? E como é que as categorizamos? Como é que descrevemos tais experiências? E como é que contamos a história destas coisas e de como nos relacionamos com elas?»[9] As perguntas que Sartwell levanta não são perguntas exclusivas ao domínio académico, mas são, por outro lado, partilhadas por muitas pessoas desprovidas de interesses académicos pela Estética ou pela História da Arte.
O problema deste livro consiste, portanto, numa disputa de fronteiras imaginárias: Mr. Hyde é Dr. Jekyll, a quimera vem bem vestida e o que quer que a Estética seja—se depender da análise de impressões, sensações e padrões de impressões e sensações que informam o gosto—é condição para o Historiador aceder à obra de arte e produzir discursos a seu respeito; discursos estes que, por sua vez, manifestam juízos de gosto. É aqui que se começa a notar que o conflito abordado por este livro não tem tanto interesse para um público geral, é antes dirigido a agentes directamente interessados na separação entre duas disciplinas que partem de uma mesma relação de interesse e que retroactivamente se alimentam dos produtos uma da outra. Apesar de repleto de pontos de vista proveitosos acerca dos objectos e escopos destas disciplinas—há, por exemplo, um consenso em admitir Michael Baxendall como exemplar no casamento das disciplinas, com obras como Patterns of Intention (Yale University Press, 1985) e Painting and Experience in Fifteenth-Century Italy (Oxford University Press, 1988)—, o espectro disciplinar e académico que assombra este livro (e a relação entre as disciplinas) faz gorar os objectivos conciliatórios de James Elkins. Por outro lado, Winckelmann, fundamental para ambas disciplinas, é uma ausência notória[10]. A oposição entre a História da Arte e a Estética é pressuposta como argumento de partida, recebe qualidades de facto e torna-se inescapável ao discurso, por muito que se pretenda conciliar ou fazer casar as disciplinas através deste livro.
[1] James Elkins (ed.) 2006. Art History versus Aesthetics, Nova Iorque: Routledge. «I am persuaded—by Hegel among others—that if we begin our conversations by positing a disconnection, our models and theories or theorizations can only end by reproducing it.» (p. 229).
[2] «To the Greeks, aesthetics or rather aisthesis was a term for the activity of seeing well, not just in terms of sensory perception but also in terms of grasping what sensory perception led one to see. For Aristotle seeing (aisthesis) “tends” toward an idea or a universal. Second, there is the meaning of aesthetics which has been prevalent in our conference discussions and which derives from Baumgarten and Kant. Within this framework of thought, the meaning of aesthetics becomes attached to discourses about sensibility and taste as well as to debates about how the beautiful might be judged. And then, third, there is a twentieth-century usage of the word which speaks of a Marxist, a feminist, or a phenomenological aesthetic. This usage is linked to the notion of “a way of seeing,” that is, to that [sic] Ideological norms, phenomenological expectancies or evaluative perspectives that literally shape or construct the content of the “seen” world. It is a usage which of course draws on earlier related notions of a Lebenswelt or of a Weltanschauung and has a great bearing upon how specific themes or subject matters are represented by the art practices they sustain.» (ibid., 61-2).
[3] Numa interacção com Anna Dezeuze, Arthur C. Danto e Diarmuid Costello, David Raskin diz: «Aqui pode ser interessante distinguirmos um sentido forte de um sentido fraco de Estética, bem como as direcções que os estetas e os historiadores da arte seguem depois de um encontro com uma obra de arte. A maioria dos historiadores, parece-me, são guiados por um sentido fraco de Estética: fazemos as nossas decisões com base naquilo que vale o nosso tempo, aquilo que nos parece mais atraente. Posso considerar um Donald Judd mais atraente que um Robert Morris e é aqui que localizo um sentido forte na minha interacção com a obra: é aqui que me pergunto qual é o sentido da obra e porquê. Por outro lado, um esteta pode ter um sentido forte de Estética e um sentido fraco de arte. Da decisão inicial de considerar uma obra, metem marcha-atrás, para depois questionar as premissas da sua interacção e de onde é que vem.» [«It might be interesting to distinguish between a strong and a weak sense of aesthetics, and between the directions in which aestheticians and art historians go after their initial encounter with a work. Most art historians, I find, are guided by a weak sense of aesthetics: we make our decisions based on what is worth our time, and what seems most compelling. I might find a Donald Judd more compelling than a Robert Morris, and at this point I will take a strong sense in my engagement: I will ask what the work means and why. On the other hand, an aesthetician might take a strong sense of aesthetics and a weak sense of art. From the initial decision to consider a work, they will go backward, questioning the premises of their engagement, and asking where it comes from.»] (ibid., 71-2).
[4] Uma das mais hilariantes tiradas deste painel vem, justamente, de uma interacção entre Thierry de Duve e Anna Dezeuze, quando esta pergunta «Why is Kant more useful for understanding Paul McCarthy than, say, psychoanalysis?” e aquele responde «Kant is not at all useful, neither in understanding nor in appreciating Paul McCarthy. Of course not. (…) Say you throw yourself out of the window, and you land on the sidewalk. Is Newton useful to you? You have just obeyed the law of universal gravity, that’s all.» (ibid., 81-2).
[5] «So, when I say that art historians are the guardians of tradition, I mean that they are also the guardians of the avant-garde tradition. That’s where aesthetics comes in. What, if not those guardians’ aesthetic judgements, is going to decide what we shall keep and what we shall throw away, what will be called art and preserved under that name, and what will disappear from the record?» (ibid., 60) e «When art historians think of their own practice as having some reason to exist within society at large, that is where aesthetics comes in. My view of the raison d’être of art historians is that they are the guardians of tradition. [Slight laughter from the audience.] Yes, a dirty word. I mean that tradition is no longer transmitted from one generation of artists to the next without the art historian’s help» ibid., 58).
[6] «Art practice is not separate from philosophy, art history, and art criticism: there are all sorts of “feedback loops” at work. The very discipline that explores the conditions of possibility for the constitution of object-domains may itself become the object of its object, whether that be art history or art practice. This is inherent in the philosophy of art from the beginning, in Plato, the “artist” of the dialogue excludes the artists from the city» (ibid., 211).
[7] «A beautiful thing causes us to love it. It attacks our eyes and makes us desire it, engendering a longing for its presence» (ibid., 138).
[8] «So, beauty is neither the property of looking good nor an empty compliment: it is simply the object of love. What we find beautiful—persons or objects—is what we want to make part of our life because we love it—not just because it is interesting, important, or even a great work of art. It is what moves us, and what, as we pursue it through life, gives our lives direction and shape and helps us become who we are» (ibid., 154).
[9] «What sorts of things do we experience; how do we sort them out; what are the experiences like; and how do we tell the story of those things and of ourselves in relation to them? On that level aesthetics and art history are obviously entwined and mutually dependent, since art history has to figure out what it’s a history of and a philosophy of, art has to respond to the actual things that it counts as art as those things unfold historically. The problem is certainly nor principled or conceptual; it is, again, professional and professorial» (ibid., 122).
[10] É mencionado por Ján Bakoš, que refere uma ideia ultrapassada de Winckelmann, a do «normativismo histórico», substituído por «relativismo histórico», entretanto.
* Programa em Teoria da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Bolseiro de Doutoramento FCT (referência 2020.05089.BD). Endereço electrónico: tiagoclariano@campus.ul.pt.
REFERÊNCIA:
Elkins, James (ed.) Art History Versus Aesthetics. Nova Iorque: Routledge, 2006.