Maria Madalena Quintela
O ouvido mais atento terá notado a falta cada vez mais gritante de um certo piar pelas ruas lisboetas: o dos pardais. Estes pássaros, antes considerados comuns, vão-se tornando uma raridade cada vez maior. A diminuição da população de pardais é aliás um problema que afecta várias partes do mundo, Lisboa não é caso único, e tem chamado a atenção da comunidade científica, levantando várias questões sobre o porquê do desaparecimento dos pardais, e possíveis soluções. O novo livro de Adília Lopes, Pardais, publicado em Julho de 2022, ambiciona imitar o piar e a fisionomia destes pássaros: «Gostava que os meus poemas fossem pardos, modestos, pequenos, lisboetas como os pardais e que tivessem o som do piar dos pardais» (p. 36).
Em muito se assemelham os poemas de Adília Lopes a pardais. Este livro vem na esteira inaugurada por Manhã, em 2015, e que tem vindo a ser reforçada até Dias e Dias (2020), e aos dois poemas inéditos que comparecem na mais recente edição pela Assírio & Alvim de Dobra (2021), «Catalpa» e «Carinho»: um crescente pendor memorialístico acompanhado por apontamentos cada vez mais sucintos sobre o quotidiano. São poemas pequenos como pardais. Neste livro, temos acesso ao processo poético de Adília Lopes, onde fica patente a escolha de um estilo mais simples: «Gosto de ouvir a casa em silêncio. Mas também gosto de ouvir música. / Lx., 6-V-2022 / Eu tinha escrito uma coisa farfalhuda: A minha casa é fundada no silêncio como a música. Depois escrevi isto que é o mais certo.» (p. 31). Esse processo poético consiste aqui em depenar o poema, até que saia o que é farfalhudo e fiquem as simples penas dos pardais. Ora, por um lado, a falta de variação no tom e forma ao longo das obras mais recentes de Adília Lopes vai-se assemelhando à cor parda e modesta dos pardais: singela, mas em último caso pouco interessante. Por outro lado, Pardais apresenta alguns traços particulares a que é preciso dar relevo.
Para tal contribui a epígrafe que abre o livro: «Nous n’avons plus d’argent pour enterrer nos morts. / Le prêtre est là, marquant le prix des funérailles; / Et les corps étendus, troués par les mitrailles, / Attendent un linceul, une croix, un remords.».[i] O excerto é da autoria de Marceline Desbordes-Valmore, uma das únicas poetisas inscritas na lista dos Poetas Malditos, elaborada por Paul Verlaine. Isto indica já uma simpatia por um certo modo de vida e de escrita que é particular, que está já à margem, maldita.
Ora, se tomarmos a epígrafe como mote do livro, a visão do cemitério poisa sobre o livro como uma neblina, transforma-se num lugar para os mortos poderem finalmente descansar: os poemas tornam-se epitáfios, inscrições em lajes. O carácter sucinto das inscrições, a datação e a indicação do lugar nos poemas contribuem para esse efeito lapidar. Também o pendor memorialístico ganha uma dimensão quase elegíaca, fúnebre. Ao mesmo tempo, a possibilidade de fazer memória é uma forma de lutar contra a morte, e erguer lápides é uma forma de perpetuar a memória. Pardais é afinal um livro desta luta: «Não quero morrer, quero brincar. Estou contente, deixo-me estar acordada.» (p. 13), ou «Se nós não morrêssemos nunca e eternamente / buscássemos e conseguíssemos a alegria aqui» (p. 23).
Assim melhor se podem entender os «Desenhos feitos com a mão esquerda», presentes no final do livro. Este caderno ocupa metade de Pardais, fenómeno que não é estranho à obra de Lopes, pois já tinha acontecido em Apanhar Ar (2010), em que metade é constituído pelo fac-símile de um caderno de desenho da autora. Aliás, em termos visuais os desenhos são parecidos com os que encontramos em Pardais: são também eles rabiscos, mas em Apanhar Ar encontram-se a cores. «Cogito, ergo sum» é o mote do caderno fac-similado a preto e branco em Pardais. Cada página tem uma espécie de rabisco, acompanhado sempre pela mesma frase escrita com a mão esquerda (é possível notar até a dificuldade em escrever com esta mão), «Penso, logo existo», e a alegada data em que foi feito o desenho. Na luta contra a passagem do tempo, cada dia em que é feita a inscrição «Penso, logo existo» é um dia em que a existência é confirmada e prolongada. Este gesto repetitivo é uma tentativa de prolongar a existência, de lutar contra a morte.
Ao mesmo tempo, o gesto corre o risco, que já foi apontado, acerca da falta de variação de tom e forma na obra adiliana, de se tornar apenas isso: um gesto repetitivo. A repetibilidade da inscrição «Penso, logo existo» parece introduzir uma contradição: se é um gesto repetitivo, pode-se dizer com propriedade «Penso»? Aí reside a importância de a inscrição ser feita com a mão esquerda, pois introduz uma nota de dificuldade e esforço que comprova a legitimidade da inscrição «Penso, logo existo». É uma forma de Adília Lopes se manter acordada, de não adormecer. Lopes brinca com as expectativas criadas pelo enunciado «Cogito ergo sum», porque afinal a ênfase não está num esforço intelectual, Lopes não está necessariamente a pensar; a ênfase está no esforço físico de escrever com a mão esquerda, e é esse gesto que prolonga a existência.
O aparecimento de fac-símiles ou de fotografias na obra de Lopes é um movimento que em muito lembra o de Barthes em Roland Barthes por Roland Barthes (1975). Desde que em Manhã se deu o aparecimento de registos fotográficos (a bem dizer, foi na primeira edição de Dobra, em 2009, que apareceu uma fotografia, mas não foi de forma tão consistente), que estes registos têm vindo a ganhar um peso cada vez maior no contexto da obra adiliana. A inclusão em Dobra (2021) das fotografias que, entretanto, já foram aparecendo desde 2015 confirma a sua pertinência. E a verdade é que em Pardais esse tipo de registos ganham uma força tal que ocupam metade da obra, para bem ou para mal (apesar de o fenómeno já se ter dado em Apanhar Ar, essa foi uma obra de tiragem pequena, não é uma aposta tão grande como em Pardais).
A esse propósito, é pertinente atentar na escolha da capa de Pardais. Já em Dobra (2021) tinha sido escolhida uma fotografia a cores de um quadro do avô materno da autora, Raul da Silva Vianna, e agora repete-se o mesmo tipo de apresentação. O que é de notar é que estas fotografias a cores contrastam com os registos fotográficos dentro do livro, que são sempre a preto e branco e de ar antiquado. Isto acusa uma anacronia, uma troca nos termos: aquilo que seria mais recente (por exemplo, para além do fac-símile do caderno, também a fotografia da casa da autora que se encontra em Pardais) é apresentado como se só se tivesse à disposição meios antiquados para a captura das imagens, o que faz com que a realidade fotografada pareça mais antiga do que na realidade é; e aquilo que é mais antigo e corresponde de facto a uma outra época da história (como o quadro pintado pelo avô em 1944) é apresentado utilizando os meios tecnológicos normais à disposição hoje em dia. A bem dizer, até a escolha do tema dos pardais indica uma anacronia: se eles estão hoje em dia em vias de desaparecer, que pardais anda Adília Lopes a ouvir? A abundância de pardais a que o livro se parece referir só pode corresponder a um outro tempo onde abundavam pardais, como se Adília Lopes percorresse as ruas de uma Lisboa do século passado.
Também aqui a anacronia parece uma forma de baralhar o tempo, e de por isso lutar contra a morte. Não exactamente correr mais rápido que o tempo, fugindo à morte, mas fintando-os. Inscrevendo as coisas num tempo que não lhes é próprio, como se fosse um jogo das escondidas, procura esconder-se do tempo.
Num livro de tom simples, por vezes até infantil, está a acontecer um jogo entre vida e morte, está espelhada a vivência do drama da passagem do tempo. «Naivety and irony, the true signs of genius», lembrava Alfred Brendel, retomando um apontamento de Goethe e Zelter sobre Haydn. É com estes ingredientes que Adília Lopes está também a jogar: ingenuidade e ironia. Por um lado, temos a simplicidade do tom, o depenar dos poemas, as brincadeiras através da anacronia, os desenhos com a mão esquerda – sinais de uma certa ingenuidade, um esforço de, como a autora diz a dada altura em Estar em Casa, «[s]er sempre criança» (p. 36). Por outro lado, temos a epígrafe que dá um outro mote para a leitura do livro, esse bem mais mórbido e menos solar. É preciso procurar a outra face, a outra capa do livro. «Pensei escrever um livro chamado Jarra com três jarros e pôr na capa a reprodução do quadro do meu avô. Mas assim era uma provocação. Não faço essas coisas. Era como se o Ceci n’est pas une pipe de Magritte fosse um Ceci est une pipe». Pardais funciona como um trompe l’oeil, engana o olhar. Pardais está a entrar num jogo bastante perigoso.
[i] «Já não temos dinheiro para enterrar os nossos mortos. / O padre está lá, a fixar os preços dos funerais; / E os corpos estendidos, perfurados pelos estilhaços, / Esperam uma mortalha, uma cruz, um remorso.».
Bibliografia
Barthes, Roland. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris. Éditions du Seuil, 1975.
Brendel, Alfred. “Naivety and Irony: Goethe’s Musical Needs”, Publications of the English Goethe Society, 91:1, 75-87. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/09593683.2022.2027736?cookieSet=1 (último acesso a 27/09/2022).
Lopes, Adília. Apanhar Ar. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
———. Dobra. Lisboa: Assírio & Alvim, 2021.
———. Estar em Casa. Porto: Assírio & Alvim, 2018.
REFERÊNCIA:
Lopes, Adília. Pardais. Lisboa: Assírio & Alvim, 2022.