James Dias
Em 2003, Laurinda Bom publicou um livro que, até há pouco tempo, era o que mais se aproximava a um livro de entrevistas dadas por Alexandre O’Neill, intitulado Alexandre O’Neill. Passo Tudo pela Refinadora. Para além de duas entrevistas concedidas a Adelino Gomes e Joaquim Furtado em 1983, Bom organizou algumas das respostas de O’Neill por temas, como «Poesia»; «Surrealismo»; «“Parentela” poética»; «Publicidade»; «Sociedade e consumo»; «Crítica»; «Vária». O maior problema com esta organização é que se parece mais com um conjunto de ditos de O’Neill, do que com uma reunião de conversas.
Apesar de o último volume organizado por Joana Meirim ser de ensaios sobre (ou para) Alexandre O’Neill (E a Minha Festa de Homenagem? Ensaios para Alexandre O’Neill, 2018), faz todo o sentido ver este novo livro como uma continuação desse. O primeiro passo dado por Bom em 2003 foi expandido e melhorado por Meirim, visto que agora temos acesso às entrevistas completas, perguntas e respostas, com uma ordem concreta.
Na introdução, Meirim diz-nos que nas entrevistas «é perceptível a coincidência entre projecto poético e forma de vida, sendo possível, aliás, imaginar no futuro uma edição da obra de O’Neill (...) que contemplasse vários dos comentários que foi deixando nas entrevistas.» (p. 11) Isto liga-se à ideia de que em Portugal não há, ou há pouco, hábito de ler entrevistas de escritores. Tomar o que o escritor diz em entrevistas como merecendo igual consideração na crítica da sua obra é, a meu ver, algo que pode ser muito valioso, não porque o entrevistado ofereça necessariamente uma interpretação certa da sua obra, mas por oferecer algo que possa conduzir a outras interpretações.
A cisão entre obra e entrevista de um autor torna-se mais apelativa quando o mesmo expressa um desgosto por essa forma. O’Neill parecia ser um destes autores, especialmente se olharmos para o poema que dá título ao volume de Meirim:
diz-lhe que estás ocupado
a entrevistar-te a ti mesmo
mesmo porque se não
o pões desde já porta
fora tás quilhado vai
espiolhar-te apalpar-te
meter-te o dedo no cu
(O’Neill, «Entrevista», Poesias Completas, p. 400)
Este poema aponta para uma relutância forte face a entrevistas (preferindo o poeta «entrevistar-[se] a [si] mesmo»), o que não é compatível com o que O’Neill disse anos mais tarde quando lhe perguntaram sobre esta sua aversão: «(...) não tenho qualquer preconceito contra as entrevistas.» (O’Neill em Meirim, «Introdução», «Diz-lhe Que Estás Ocupado», p. 10) Isto sugere uma diferença entre o que se diz em poemas e o que se diz em entrevistas que parece bastante trivial, se não fosse o facto de O’Neill insistir em várias ocasiões que não fazia distinções entre a sua vida e a sua obra. Tudo isto poderá fazer mais sentido se olharmos para a característica que Meirim mais vê na obra de O’Neill, que também transparece nas suas entrevistas: a modéstia. Num ensaio do primeiro livro organizado sobre O’Neill, diz:
Além do propósito de desimportantizar o que escreve e o que se escreve, isto é, libertar-se da retórica da «poética poesia», a que persiste em fazer a distinção entre a linguagem de todos os dias e a linguagem poética, não é menos significativo o propósito de reduzir as expectativas quanto à importância que as pessoas julgam e querem ter. (Meirim, «Animais modestos», E a Minha Festa de Homenagem? Ensaios para Alexandre O’Neill, p. 105)
Segundo Meirim, parte do projecto poético de O’Neill passa, inevitavelmente, por reduzir as expectativas que as outras pessoas têm sobre ele e, mais importante, as expectativas que ele mesmo tem sobre a sua poesia e o seu modo de ser. Em vez de aumentar o valor que a vida tem para a poder equiparar à «poética poesia», diminui o valor da poesia para estar ao mesmo nível da sua vida. Este tipo de intenções parece bastante modesto, tornado tema recorrente na poesia:
Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo,
uma tinta de virtude:
é um modo de ser,
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer
(O’Neill, «Saudação a João Cabral de Melo Neto», Poesias Completas, p. 152)
Muitas das entrevistas de O’Neill vêm confirmar as suspeitas bem fundadas de Meirim de a modéstia «se elevar não só a tópico por excelência de toda a sua obra (...), mas também de existir no tratamento deste tópico uma intenção programática» (Meirim, «Animais modestos», E a Minha Festa de Homenagem?, p. 117). Por exemplo, numa entrevista com Fernando Assis Pacheco publicada em 1982, O’Neill lamenta que «a realidade fez de mim, novamente um poeta actual. (...) Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.» (O’Neill em Meirim, «Diz-lhe Que Estás Ocupado», p. 116).
O maior interesse deste volume são os comentários de O’Neill que tornam as distinções entre vida e obra quer mais evidentes, quer mais duvidosas. Mais interessante ainda é O’Neill não se preocupar se uma está mais certa do que a outra, e saber que as opiniões dele, como as de todos, se vão alterando com o tempo, sem haver nada de contraditório nisso.
Bibliografia
Bom, Laurinda. Alexandre O’Neill. Passo Tudo pela Refinadora. Lisboa: Editorial Notícias, 2003.
Meirim, Joana (org.). E a Minha Festa de Homenagem? Ensaios para Alexandre O’Neill. Lisboa: Tinta-da-China, 2018.
O’Neill, Alexandre. Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
REFERÊNCIA:
Meirim, Joana (ed., org. e intro.). «Diz-lhe Que Estás Ocupado»: Conversas com Alexandre O’Neill. Lisboa: Tinta-da-China, 2021.