My bonnie lies over the ocean
My bonnie lies over the sea
Numa das cenas de Die Reise nach Lyon/ Le voyage à Lyon (1981), da realizadora alemã Claudia von Alemann, a protagonista, Elisabeth (Rebecca Pauly), caminha junto ao rio com o seu gravador, enquanto fala sobre baralhar pistas, insinuando o desfiar daquele que é o seu projecto: procurar vestígios da passagem da socialista utópica e feminista Flora Tristan por Lyon, na Primavera e Verão de 1844, ano da sua morte, como parte de um itinerário por sítios como Paris, Marseille, Carcassonne, Toulouse. As impressões da escritora sobre essa jornada, experiência a partir da qual pretendia aprofundar o seu conhecimento acerca da classe operária francesa, sobrevivem no diário de viagem Le tour de France (1843-1844), o livro que Elisabeth transporta consigo quando chega de comboio à cidade, a 7 de Julho, o mesmo dia em que o seu objecto de estudo deixou aquele lugar mais de cem anos antes.
Aquele diário acompanha a personagem ao longo de todo o filme e o modo como a vivência de Elisabeth se confunde, se embaraça com e simultaneamente se distancia daquele texto está no centro desta obra. Vinda da Alemanha, onde deixou para trás, de forma aparentemente temporária, marido e filha, Elisabeth é, segundo uma auto-descrição, uma historiadora que deixou de o ser. Teve contacto com um manuscrito de Tour pela primeira vez em Amsterdão, no Instituto Internacional de História Social, e destaca a estranheza de ir encontrar na Holanda um texto sobre a França e o modo como aquela «escrita caótica», aquelas «linhas embrulhadas» lhe saltaram aos olhos, como a interpelaram. É dessa interpelação, dessa sensação de que o manuscrito está vivo que parece nascer o interesse da então historiadora por aquela outra mulher.
A escolha de Lyon como destino será justificada, entre outras razões mais cinematográficas, pela importância que assume no diário francês. Tristan aguardava com particular expectativa a sua chegada à cidade, empolgada pelo que ouvira sobre os operários locais serem particularmente activos em termos políticos, o que o seu contacto com eles confirmará — os canuts de Lyon, trabalhadores especializados na tecelagem da seda, são aliás conhecidos pelas insurreições das décadas de 30 e 40 do século XIX. As entradas de Tour descrevem dias buliçosos, passados a andar de oficina em oficina, calcorreando as infindáveis escadarias da colina da Croix-Rousse, o bairro dos canuts, onde conversa com os trabalhadores sobre as suas condições de vida, sobre o livro que publicara no ano anterior, L'Union Ouvrière (1843), sobre o projecto político socialista. No registo destes dias descreve as dificuldades em fazer-se aceitar, por ser mulher, e compreender, devido à diferença de escolaridade que a afasta dos operários. Teme que seja demasiado longo o processo de lhes transmitir o que ela própria, diz, demorou duas décadas a aprender. Este receio é corroborado pela sua saúde frágil, ainda mais debilitada pela constante actividade física e intelectual a que se dedica.
Apesar destas dificuldades, Tristan olha Lyon com singular afecto. No dia seguinte à chegada, no início de Maio, fala no diário de um pensamento que a acomete, a ideia de que não irá para além de Lyon, de que esta é sua última paragem. De facto, daí era natural Eleonore Blanc, uma lavadeira que Tristan considerava uma espécie de filha adoptiva e a quem deixou o seu diário, legatária que reuniu as notas da amiga, permitindo a publicação póstuma de Tour, mais de cem anos depois, em 1973,[1] que acaba assim onde a autora imaginou. Já o inicialmente imprevisto regresso, duas semanas depois, no final de Junho de 1844, culminará numa despedida emocionada e numa outra convicção, confirmada em retrospectiva pela morte da escritora, em Novembro desse ano: o de que nunca mais deverá voltar a esta cidade. Se a consciência da gravidade do seu estado de saúde explicaria a clarividência de Tristan sobre Lyon, não deixa de ser impressionante a nitidez e a força com que este lugar se inscreveu no seu espírito, como se fosse, de facto, o apogeu do seu itinerário, não apenas pelas dinâmicas complexas da cidade, mas sobretudo pelas ideias que a visita fez florescer em si. A importância do encontro de Tristan com Lyon será talvez o cerne da busca de Elisabeth, ainda que esta não o saiba inicialmente.
Como sugeri, o interesse específico da personagem por Lyon deve-se em parte quer à figura de Blanc, sobre a qual sabe e descobre muito pouco, quer ao fulgor que a cidade assume em Tour. Estes dois elementos, um ligado a uma dimensão material, histórica, o outro relacionado com uma dimensão impressionista, pessoal, sintetizam de modo significativo a natureza do projecto de Elisabeth, que está em crise relativamente aos métodos que caracterizam a sua disciplina. Por um lado, o seu conhecimento de Tristan depende efectivamente de fontes históricas mais propriamente clássicas: o diário, o registo cadastral de Lyon, o que leu sobre a cidade e sobre o período histórico em que Tristan viveu. É a esses documentos que começa por recorrer e nesse sentido a sua posição não é, como veremos, de total abandono da historiografia, mas de uma reserva em relação a uma história que só retrata os grandes acontecimentos, os grandes edifícios, os grandes participantes e relega para o absoluto esquecimento tudo o que seja de menor dimensão.
Além disso, o recurso àquelas fontes traz-lhe uma série de problemas, que inicialmente se dividem entre saber demasiadas coisas e saber demasiado pouco. Uma das pessoas com quem discute a natureza do projecto e as dificuldades que este acarreta, é uma mulher que costuma encontrar no restaurante da Rue Sainte-Catherine, provavelmente um dos sítios mais importantes dos seus dias em Lyon. Essa mulher costuma entreter-se a recortar jornais e a fazer colagens com os recortes. Num dos seus encontros discutem a tarefa, que a comensal explica ser uma tentativa de espelhar, visualmente, a multiplicidade de coisas que sucederam num mesmo dia, contrariando a proeminência dos cabeçalhos, que, como lhe lembra Elisabeth, não são «o nosso mundo», mas «o mundo das notícias, dos jornais». Aquela espécie de arquivista acredita que a possibilidade de ver, ao mesmo tempo, tudo o que aconteceu nesse dia, não é a mesma coisa que ler um artigo a seguir ao outro —, encontrando um instrumento útil na simultaneidade, um conceito que irá reaparecer no filme mais adiante, a propósito da música. Este instrumento seria uma forma de auxiliar a memória e de ajudar o pensamento, porque, como sugere, é preciso saber tudo para poder reflectir, ideia da qual Elisabeth discorda. A ela parece-lhe que a memória não precisa de ajudas desta espécie, por haver uma certa virtude em não nos lembrarmos, de facto, de tudo. Se soubéssemos tudo, seríamos realmente capazes de pensar, não ficaríamos antes assoberbados por esse conhecimento, pergunta a protagonista?
O segundo problema que enfrenta no recurso às fontes é, como dizia, saber demasiado pouco. Um dos seus outros interlocutores é uma livreira, junto de quem procura gravuras de época de Lyon. Esta mostra-lhe o que tem e o que considera ser mais típico: desenhos onde surgem membros da guarda nacional, igrejas, o tipo de coisas nas quais Elisabeth não encontra grande interesse. Como diz à senhora, não quer que a sua pesquisa consista em olhar para coisas que já são conhecidas. A pasta com gravuras da Croix-Rousse, diz-lhe a livreira, perdeu-se. A única coisa relacionada com o bairro leva-as para o pólo oposto, os patenteadores, os governantes, não os tecelões: a gravura de um tear Jacquard, outra de um tear perante o qual pede a Elisabeth que imagine a imperatriz a tecer. Esta responde-lhe que as oficinas parecem demasiado grandes naquelas imagens, a livreira anui, «Sabe, as gravuras não são muito exactas», tentavam fazer as coisas parecer melhores do que o que eram. O mesmo acontece quando olham para as imagens da Place des Terreaux, no centro da cidade, e a livreira lhe explica que normalmente o que aparece nas representações são o edifício da câmara e o palácio de St Pierre, esquecida a outra metade da praça pela sua banalidade arquitectónica. Mas é precisamente esse lado que Elisabeth procura. Ali, o lado da praça onde ficava o Hotel de Milan, em que Tristan estava alojada, que não aparece nas gravuras, mas que o filme mostra (Arnaud, 2021). Esse hotel é então, no final dos anos 1970, um cinema, da mesma forma que o quarto de hotel de Elisabeth, na Quai de Pierre-Scize, é o nosso filme — a possibilidade de o cinema ser também lugar de história faz parte da proposta de Alemann.
De modo mais amplo, o que Elisabeth procura é o ponto cego da história, conceito acertadamente recuperado pelo título inglês do filme, Blind Spot: a zona da retina que se cruza com o nervo óptico e onde não há receptores de luz, gerando uma ausência de imagem, uma obscuridade que é geralmente preenchida pelo outro olho ou pelo próprio cérebro. Encontrar esse ponto morto, o que não se vê, depende em grande parte de seguir o diário de Tristan, que levanta também algumas questões difíceis. Por um lado, serve a Elisabeth como uma espécie de guia para os lugares onde procurar respostas, os lugares onde a escritora passou: as ladeiras e as ruelas da Croix-Rousse, o cemitério, a oficina de um tecelão, a Place des Terreaux, as margens do Saône, afluente do Ródano, onde Eleonore lavava roupa. Por outro lado, a realidade de Le tour de France no meio do século XIX não corresponde ao que lá se encontra no último quartel do século XX.
O que Elisabeth vê de Lyon contrasta com o livro, como ela constata: quando procura a casa de Eleonore, numa rua (a das luzernas) que tem agora um novo nome, ninguém lhe sabe dizer onde é; se em Tour se descrevem reuniões e discussões infindáveis, salões cheios de gente e fumo, Elisabeth encontra uma cidade vazia, quieta em que todos foram de férias e só ficaram «os velhos e os trabalhadores migrantes»; Tristan escreveu que tinha encontrado em Lyon os operários mais inteligentes de França e perante isto Elisabeth queixa-se de que não consegue encontrar sequer uma padaria aberta; a primeira chegou de barco, a segunda de comboio; a primeira pugnava pelo direito das mulheres ao divórcio depois do casamento com um homem desprezível, a segunda permanece de modo voluntário e afectuoso ligada ao marido; uma subia e descia escadas cheia de energia, a outra percorre devagar os degraus, de pernas cansadas; uma palmilhou a França com um projecto de dinamização política e ideias fortes sobre a importância da emancipação das mulheres em qualquer processo de libertação da classe trabalhadora, a segunda acha que ninguém espera nada dela e não sabe sequer se há-de descrever a sua viagem a Lyon como férias ou como uma forma de desemprego forçado, hesitante sobre qual será afinal a sua tarefa e qual a relação entre ela e o resto, entre o seu trabalho e a sua vida familiar, como aliás o marido lhe pergunta numa carta.
A diferença entre as duas experiências parece-me conter dois elementos a assinalar, elementos que se entrelaçam. O primeiro relaciona-se com a crise em que Elisabeth se encontra relativamente ao emprego das fontes históricas, que, como na conversa da livraria, se provam parciais, incompletas, crise que surge a par das diferenças que o tempo operou na cidade: a Lyon a que Elisabeth chega nunca poderia ser a Lyon de Tristan e as representações que existem desse outro tempo não revelam essa realidade desaparecida, vendo-se ela a mãos com uma reconstituição que terá necessariamente um aspecto adulterado. Simultaneamente, Elisabeth é uma mulher bem diferente de Tristan e essa individualidade, que parece um obstáculo quando tenta escrever história isenta de subjectividade, revelar-se-á essencial para o seu projecto. A grande questão será pois pensar como se encontra um ponto comum, uma forma de voltar a Tristan, sendo que qualquer regresso é, como o filme especula em diferentes momentos, impossível.
Esta disjunção da experiência manifesta-se no filme de forma interessante,[2] no modo como Elisabeth se relaciona com Le tour de France. O livro é um dos poucos objectos que transporta consigo: além de uma mala com vestidos de Verão, traz um bloco de notas, um gravador, um retrato da filha e um globo de vidro com um boneco lá dentro, aos quais acrescentará alguns objectos novos. Quando chega a Lyon, de comboio, senta-se num banco da estação, poisa e abre no colo o que parece ser um volume. O plano médio frontal da personagem, que percorre o volume com um lápis na mão, não nos deixa perceber de imediato, pela distância a que a câmara se encontra dela, se aquilo que faz é sublinhar um livro ou escrever no seu próprio caderno — a confusão entre a vida de Elisabeth e o texto de Tristan de que falava acima.
Esta indefinição mantém-se ao longo de Reise, constantemente pontuado pela voz de Elisabeth em over, que intercala entre a leitura de excertos do diário da antecessora e pensamentos seus, que de alguma forma se escrevem através do filme. Estes dois «diários», cujos níveis de materialidade poderiam ser considerados distintos (escrita e oralidade, ou antes pensamento em forma de oralidade), tornam-se parte de um mesmo contínuo, sendo que há momentos particulares em que se cruzam, em que um se confunde com o outro, apesar das ligeiras diferenças de entoação perceptíveis na voz da personagem. É disso exemplo uma cena em que Elisabeth caminha junto ao rio e a sua voz em over lê uma passagem do diário de Tristan: «Esta noite, tentei compreender o que Eleonore sentiu acerca de mim e aquilo que eu mesma senti», palavras que de algum modo ecoam o processo pelo qual Elisabeth está a passar e que depende de assumir o seu posicionamento em relação às coisas e às pessoas, nomeadamente aos que a antecedem — Tristan —, aos que se lhe seguem — a filha — e aos seus pares — o marido, os seus interlocutores em Lyon.
A estranheza de não ter um posicionamento que se traduza no seu método de trabalho assoma de forma muito evidente numa das cenas iniciais do filme, em que depois de um almoço mais apetitoso do que esperava vemos Elisabeth escrever à máquina, sobre o estado de saúde de Tristan durante a sua estadia em Lyon. A personagem interrompe a certa altura a escrita: «Esta língua não é minha. Sou livre de a usar, mas escapa-me». Se aquilo contra o qual Elisabeth se agita parece ser uma certa rigidez ou impessoalidade do texto mais propriamente académico que tenta escrever, também está presente a disjunção da experiência de que falava acima: como escrever depois daquele repasto sobre a falta de saúde e apetite de Tristan? O seu problema não é de todo a diferença entre as duas experiências, mas antes o ela não estar incorporada no que se escreve. Nesse sentido, é falso o que lhe sugere o professor Janin, um historiador que visita mais adiante no filme, por sugestão do marido, sobre a possibilidade de Elisabeth se identificar demasiado com Tristan. O professor é inquisitivo e não esconde a sua desconfiança relativamente ao tipo de trabalho que ela está a desenvolver, achando que este nada tem a ver com fazer História, perguntando-lhe de quê exactamente está ela à procura. Numa das suas respostas, Elisabeth explica-lhe que a sua pesquisa em bibliotecas e arquivos a deixava sistematicamente insatisfeita e diz-lhe (e a formulação parece-me importante aqui), «Eu quero» — quer «imaginar aquilo que Tristan pode ter ouvido, visto, cheirado, as cores, os sons, tudo isso…»
Janin fala-lhe da dificuldade de «alguém se posicionar numa outra época», tal como a livreira, entretida também com documentos impressos, lhe lembrava. O historiador expõe-lhe o que entende ser o dever e a forma adequada de trabalhar enquanto historiador: apagar a sua presença na apresentação das figuras que estuda, cuja existência tenta reconstituir, «deixá-las falar», em vez de tornar a sua imagem pessoal ostensiva. A pergunta que Elisabeth lhe devolve, ela que a todo o momento identifica as diferenças entre si e Tristan e que não está propriamente obcecada com a sua própria pessoa, é se não será ainda assim importante, necessário até, um certo de grau de entendimento da alegria e do sofrimento daqueles que se estudam, e se não poderia nascer dessa afinidade alguma forma de acção em vez de um mero conhecimento ou entendimento passivos (Balsom, 2021). Como explica a Janin, no gravador que traz sempre consigo, registou «o ruído dos passos que Tristan poderia ter ouvido», admitindo que o ruído não será exactamente o mesmo, porque os seus sapatos não são iguais, mas aceitando as diferenças que as separam e o valor das suas próprias observações, que o filme guarda e inscreve com ela: o lado material, histórico — as imagens das casas, das ruas dos edifícios da Croix-Rousse, que percebemos repletos de importância quando começamos a ler sobre o passado de Lyon; o lado impressionista, pessoal, traduzido nos sons da chuva, dos pássaros, das crianças, dos comboios, dos passos.
Perante a assombrosa ausência de Tristan em Lyon, a melhor coisa que pode fazer, percebe Elisabeth a certa altura, é tentar reviver um eco, reviver a existência de Tristan passando pelos sítios por onde ela passou. Se isto parece uma duplicação da sua ideia inicial, à medida que o tempo passa, a actividade torna-se um bocadinho mais significativa do que quando chegou a Lyon e a cidade não lhe era familiar. Elisabeth perde muito tempo neste deambular, nesta sala dos passos perdidos como indirectamente lhe chama. De alguma forma, parece haver uma tentativa de esquecer, de deixar para trás coisas, de «queimar pontes», para encontrar formas diferentes de pesquisar, de recordar, novas formas de historiografia (Castro, 2022). «Baralha as pistas», como os habituais do restaurante passam a vida a baralhar cartas, que cada jogador tenta voltar a «reunir», para si, numa certa ordem. Estes jogos, observados e ouvidos à distância, parecem-me tão importantes para a trajectória de Elisabeth como os bons repastos que ali vai encontrar. A muitos daqueles jogadores volta a vê-los nas ruas de Lyon, nas oficinas, a comunidade que vai tornando sua: «Numa cidade desconhecida, encontro às vezes a mesma pessoa em lugares diferentes». Os seus métodos tornam-se mais claros à medida que avança, o que será certamente um grande erro metodológico aos olhos de Janin. Subir e descer os degraus da Croix-Rousse incontáveis vezes transporta-a para um sítio onde subitamente o som dos seus passos assinalam uma forma de existência comum, de continuidade.
Esses passos, diz Elisabeth, ecoam os passos de Tristan. Elisabeth não se transforma — estranho seria — em Tristan, mas transforma-se numa pessoa que percebe a certa altura qualquer coisa. A espécie de resposta que encontra, e que não corresponde a uma resolução imediata, mas a um aparente agudizar da sua crise, chega-lhe mais ou menos por acaso, depois de um pequeno-almoço inusitado na estação de comboios, ao som de um oratório de Handel que ouve na rádio: Elisabeth lembra-se do seu violino, feito em Viena no final do século XVIII, violino que descreve como um som que transporta consigo, um som que não pertence a mais ninguém, «um som que é história», porque contém na sua origem uma materialidade que dá conta dessa história, numa resposta antecipada à pergunta de Janin sobre o que significam os sons que anda a gravar.
No dia em que deixou pela segunda vez Lyon, Tristan estava, como vimos, convencida de que não deveria voltar àquela cidade a não ser que tivesse já as condições de iniciar uma organização política mais sólida com os operários locais, proibindo-se a si própria de regressar a um sítio que se tinha tornado tão caro aos seus olhos. Tristan está de certa forma consciente da impossibilidade da repetição e aceita que qualquer regresso terá de ser necessariamente uma nova chegada. Nas suas caminhadas por Lyon, Elisabeth conhece um homem com quem acaba por envolver-se de forma passageira, mas que lhe oferece uma pista importante para o enigma que ela está a tentar resolver. Fala-lhe da primeira vez que viu uma ponte cair e da proibição de um batalhão marchar sobre pontes, por causa do risco de a frequência da marcha fazer colapsar a estrutura. À possibilidade de certos sons quebrarem meios de ligação, Elisabeth responde no final do filme com a solução oposta: de volta à estação onde, no primeiro dia, leu sentada o diário de Tristan, passeia-se agora por um salão vazio, tocando o seu violino vienense, com dois séculos, um som que é só seu, como a felicidade que Tristan levou de Lyon para se alimentar nos seus dias de tristeza.
[1] De acordo com o prefácio à primeira edição de Le tour de France, de 1973, Eleonore Blanc escreveu uma pequena biografia de Tristan em 1845, mas não conseguiu publicar as notas. Será o seu filho, Pétrus Blanc, a enviá-las, em 1910, a Jules-L Puech, autor de uma tese de doutoramento sobre Tristan, que seria também a primeira biografia da autora: La vie et l'oeuvre de Flora Tristan: 1803-1844 (1925). Puech coligiu e anotou o diário, mas viu a publicação impedida pela Segunda Guerra, uma das razões que explicam a relevância, no interior do filme, da revisitação do episódio de perseguição e extermínio de judeus levados a cabo pelos nazis em Lyon. O manuscrito anotado por Puech foi reencontrado em 1970 e Le tour de France só viria a ser publicado pela primeira vez em 1973, cinco anos antes de Alemann iniciar a rodagem deste filme.
[2] Haveria ainda um outro aspecto interessante a explorar no que toca à disjunção linguística no filme, presente também no título, nomeadamente o facto de existirem duas versões da voz over, talvez justificadas por questões de produção, mas ainda assim significativas: uma em francês, a língua de Tristan, e outra em alemão, a língua que a personagem fala com a família, que ficou na Alemanha, de onde veio. As duas versões são idênticas em várias sequências, mas apresentam algumas diferenças significativas. A voz over nem sempre é interpretada por Pauly, havendo uma segunda voz de mulher, não identificada, e algumas passagens de texto surgem em momentos distintos do filme, conforme se trate da versão francesa ou alemã, com ligeiras, mas curiosas alterações. Tudo isto mereceria atenção numa análise mais detalhada do que esta.
Referências
Alemann, Claudia von (1981). Die Reise nach Lyon/ Le voyage à Lyon. DVD, Deutsche Kinemathek Berlin, 2021.
Arnaud, Maelle (2021), «Le Voyage à Lyon (Claudia von Alemann, 1981)». Plateforme des collections films de la Cinémathèque française.
Balsom, Erika. «Remembering Women: Claudia von Alemann’s Blind Spot». Cinema Scope, 16 de Junho de 2021
Castro, Teresa. «Hidden Figures». Sight and Sound, Março de 2022
Tristan, Flora. Le tour de France. État actuel de la classe ouvrière sous l’aspect moral, intellectuel, matériel. Paris: Éditions Tête de feuilles, 1973.