Pedro Sepúlveda editou, na Ática, dois livros de Fernando Pessoa: Crónicas da Vida que Passa (2011), e, com Jorge Uribe, Sebastianismo e Quinto Império (2011). Está no prelo um livro seu sobre Os Livros de Fernando Pessoa. É, além disso, uma das cabeças do Projecto Estranhar Pessoa e, em rigor, o seu braço direito, ao qual devemos uma série de iniciativas públicas intituladas “Assuntos” — que, aos poucos, têm contribuído para clarificar o debate pessoano e, arrisco, solucionar desavenças antigas. Não digo que novas desavenças não tenham surgido por sua (das iniciativas, não dele) causa; mas digo que, se porventura apareceram, são efeito secundário —  e, portanto, não intencional — de um benefício maior. Uma série de coisas boas e importantes que têm acontecido neste campo podem ser reconduzidas, de uma forma ou de outra, a acções e pensamentos do Pedro. Que este seja um amigo de longa data explica, em parte, estas considerações. Mas não as invalida.  O que se segue nasce de uma conversa entre mim e ele a propósito das minhas considerações anteriores sobre o conceito de “ortónimo”. Na sua opinião, não devemos perder de vista que o uso de “ortónimo” por Pessoa está, entre outras coisas, exclusivamente associado a uma obra. Antes de passarmos a outras coisas, será que podes começar por explicar esta ideia, Pedro? 

 

Pedro: Precisamente, o que me parece é que o uso que Pessoa faz de ‘ortónimo’ na famosa Tábua Bibliográfica, publicada em 1928 (a única ocorrência que se conhece do termo, para além da sua inclusão num dos esboços da mesma Tábua) associa o conceito exclusivamente a uma obra. O conceito é utilizado enquanto adjectivo que caracteriza uma categoria de obra distinta de outras pelo modo específico de utilização do nome de autor nela implicado. O que, aliás, revela uma continuidade impressionante com a definição de ‘heterónimo’ — e não de ‘ortónimo’, que parece ter sido uma genuína invenção de Pessoa — registada no Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da Lingua Portugueza, de Domingos Vieira, publicado entre 1871 e 1874: “Obra heteronyma; obra publicada debaixo do nome verdadeiro de um outro. Auctor heteronymo; auctor que publica um livro sob o nome veridico de uma outra pessoa”. Esta definição utiliza ‘heterónimo’ enquanto adjectivo, que caracteriza uma obra e também um autor, uso este que Pessoa confere a ortónimo e derivados gramaticais: “O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar orthónymas e heterónimas.” Num passo posterior da mesma Tábua, lê-se ainda que “Fernando Pessoa publicou, orthonymamente”, seguindo-se a listagem de parte do que hoje conhecemos como obra ortónima. 

Humberto: Devemos, então, por analogia com o uso adjectivo de ‘heterónimo’, quer na Tábua, quer na definição de Domingos Vieira, entender ‘ortónimo’ como adjectivo. E, todavia, a larga maioria dos leitores — sobretudo os especialistas — parecem usar estas palavras como substantivos. Este erro parece-te interessante? Como explicá-lo? 

Pedro: É, de facto, interessante que o uso comum do termo pelos leitores o tenha transformado em substantivo. No entanto, diria que apenas em alguns casos me parece ser um erro a sua utilização nominal. A própria associação que Pessoa faz da categoria de obra ao tipo de autoria nela implicada, definindo precisamente essa categoria a partir do problema da autoria, parece legitimar que se fale, num certo sentido, de um Pessoa ortónimo, para designar Pessoa enquanto assinatura de obras, ou seja, algo como “a obra de Fernando Pessoa assinada em nome próprio”, distinguindo-a portanto da que está assinada com outros nomes e também, necessariamente, da que não está assinada. Será porventura inevitável transpor, como fazemos no caso da obra heterónima, determinadas características da obra para uma certa ideia da figura autoral da mesma. Não me choca portanto que se fale do Pessoa ortónimo no sentido de uma figura autoral que se desenha a partir ou juntamente com a obra assinada em nome próprio. No entanto, veria o uso errado de ‘ortónimo’ no caso de se pretender com este substantivo referir uma pessoa real, de nome Fernando Pessoa, o cidadão, ou mesmo o escritor Fernando Pessoa num sentido mais abrangente. É que na Tábua o nome Fernando Pessoa é utilizado numa posição que engloba as obras ortónimas e heterónimas: “O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras”; “As obras heterónymas de Fernando Pessoa”; “Fernando Pessoa publicou, orthonymamente”; “Fernando Pessoa não tenciona publicar”. Esta posição é negligenciada pelos leitores que vêem o ortónimo como sinónimo de Fernando Pessoa, designando a pessoa ou o escritor. Será necessário distinguir, pois, não só, como fez por exemplo Augusto Seabra, entre o cidadão Fernando Pessoa e o Pessoa poeta, mas entre, por um lado, a obra assinada em nome próprio, à qual corresponde uma figura de poeta (ou seja, a obra ortónima e, se quisermos, o poeta ortónimo, figura que surge aliás inserida num contexto ficcional do qual fazem parte Caeiro, Reis, Mora et al.), e o escritor e editor de obras Fernando Pessoa, que é afinal o autor de todas elas.

Humberto: Ora, the plot thickens. Se compreendo, pareces sugerir que onde tínhamos, no esquema de Seabra, Pessoa-pessoa-normal diferente Pessoa-poeta-ortónimo diferente de Pessoa-poetas-heterónimos, temos, do teu ponto de vista, Pessoa-pessoa-normal diferente de Pessoa-poeta-ortónimo diferente de Pessoa-poetas-heterónimos diferente de Pessoa-escritor-e-editor, autor de todas elas (incluindo a proliferação de figuras e coisas que não sabemos bem como qualificar). O senso comum pareceria sugerir que não existe talvez diferença entre Pessoa-pessoa-normal e o Pessoa-autor-de-tudo-o-resto, mas pressinto (posso estar errado) que vês aqui uma distinção. Como descreverias essa distinção? Eu inclino-me a pensar que esta é, em parte, uma questão de atribuição de funções, o que me leva a interpretar a tua sugestão como uma sugestão acerca de um certo tipo de papel: se quiseres, uma meta-função, a de autor-editor, organizador de tudo. Nas palavras de Soares, “Deus sou eu”?

Pedro: Algo desse género, sim, concordaria com o teu enquadramento. O que se passa é que existem, realmente, diversas funções do nome Fernando Pessoa, com diversos referentes. Imaginar que alguém possa justapor ou identificar o Pessoa real com o Pessoa figura de autor de uma série de obras é para mim absurdo. Mas, de facto, outra identificação mais comum seria, como dizes, entre o Pessoa-pessoa-normal e o Pessoa-autor-de-tudo. Embora entenda melhor que se possa identificar estes dois referentes, parece-me que aqui é pertinente retomar uma distinção simples entre o Pessoa real e o Pessoa que surge na obra, nomeadamente na Tábua, enquanto autor ou editor de toda a obra. Simplesmente porque essa posição do nome cumpre uma função no seio da obra que difere daquela que ocupa o ortónimo. Há outro texto em que é feita referência a um executor (Cartas aos directores da presença, 1998, p. 280), e mesmo a referência, no prefácio Aspectos, a um autor real, que é contraposto às diversas figuras — Caeiro, Campos, Reis, Mora e Guedes — poderia ser lido nesse sentido. Claro que, parecendo-me todas estas distinções necessárias, a obra tem por vezes a capacidade de as baralhar, superá-las ou misturar os referentes… nem sempre a delimitação é clara e esta confusão será certamente propositada, parte do jogo.

Humberto: Pode ser aliás que a distinção ‘ortónimo’ vs ‘heterónimos’ seja instrumental à, a meu ver, amplamente menosprezada, produção de desentendimento. Mas se a confusão é propositada, tem uma função. Suponho que seja, no fundo, a de nos entreter em relação a um certo tipo de coisas por oposição a outras. Em todo o caso, o teu apelo à ideia de ‘o Pessoa real’ é — embora eu compreenda o que queres dizer: o Pessoa fotografado, de bigode, carne e osso, etc. — posto em causa por Pessoa. Aliás, reiteradamente. Por exemplo, na Tábua. Pessoa parece ter sérias dúvidas sobre o critério de existência estritamente materialista a que apelamos ao distinguir entre Pessoa real, Ricardo Reis, etc. Por outras palavras, Pessoa parece suspeitar da utilidade e simplicidade dessa “distinção simples”. É muitas vezes como se nos sugerisse que o Pessoa-pessoa-normal é menos real que o Pessoa-poetas-ortónimos e que, a respeito dos últimos, devemos até dispensar o prefixo “Pessoa”. Simplificando, na imagem realista que nos estás a dar, “Pessoa” seria um prefixo indispensável, ainda que implícito, de qualquer outro nome seu. Por contraste, no entanto, ele parece querer que os desliguemos de Pessoa (e do nome “Pessoa”), ponto final. Como é que vês esta tensão?

Pedro: Se entendo bem o que estás a defender, o que Pessoa coloca em jogo na obra seria a ficcionalização de tudo, ou quase, em particular das figuras de Pessoa que possam daí surgir, paralelamente ou a par das dos heterónimos. Estas figuras têm por base critérios de existência que não passam pela sua materialidade, pelo que poderíamos simplesmente prescindir da referência a um “Pessoa real”. Caso tenha interpretado bem as tuas palavras, concordo com elas, apenas não concordaria com a conclusão, se é que de uma conclusão se trata, ou seja, com o facto de essa concepção colocada em jogo na obra nos levar aparentemente a poder prescindir da referência a um “Pessoa real”. O meu argumento para o facto de não podermos prescindir dessa referência é bastante simples: se prescindirmos dela a tensão entre ficção e realidade seria anulada. E parece-me que é isto que não acontece, e precisamente por isso existe essa importante “produção de desentendimento”, uma confusão certamente propositada entre os diversos referentes do nome Pessoa. A confusão é tal que conduz a perguntas como “O que é a realidade?”, em Aspectos. Parece-me que existe, nomeadamente nesse texto mas também em tantos outros, uma constante mistura de planos. É, no entanto, igualmente certo que se há confusão ou mistura de planos é porque há distinções que são introduzidas, porque não se poderia confundir o que não é à partida distinto. O que me parece é que — e aí concordaria contigo — esta referência ao “Pessoa real” não é particularmente relevante para a análise da obra, a não ser por oposição. Não imaginaria que dessa referência, fortemente procurada por interpretações biografistas, resultassem análises particularmente reveladoras dos conteúdos da obra. A referência ao real não me parece que seja “realista”, porque não há propriamente imagem desse real a não ser a de Pessoa como figura literária, e, no entanto, os textos aludem a esse real.

Humberto: Compreendo. Mas, se compreendi, vejo uma diferença importante entre o que estamos a dizer. Por um lado, estás a sublinhar uma distinção entre o Pessoa de carne e osso e o Pessoa autor — nas suas diversas atribuições; por outro lado, estás a descartar o apelo ao primeiro como origem de explicações interessantes acerca do segundo. E todavia repara que esse apelo não é necessariamente irrelevante. Depende daquilo que nos interessa explicar. Repara, por exemplo, que explicações filológicas preservam uma esperança robusta na figura do autor material. Eu, pelo contrário, estou a imaginar que levemos a sério a ideia (articulada na Tábua e numa série de outros lugares) de que por “real” se deve talvez entender o Pessoa autor —ou, por assim dizer, o Pessoa autores — e não o Pessoa de carne e osso; não o indivíduo material, mas o autor moral, o indivíduo que responde por aquilo que escreveu. Vês a diferença? Não proponho que se prescinda da referência a um Pessoa real, mas que mudemos de ideias a esse respeito.

Assim, a minha ideia não vai no sentido da ficcionalização de tudo, mas no sentido — porventura inconcebível para uma percepção realista — de que, nem que seja para tentarmos compreender Pessoa, devemos levar a sério a concepção não reducionista de ‘pessoa’ implicada pelos nomes heterónimos. Quer dizer, a sua definição de ‘pessoa’ é diferente da habitual. A carcaça que te calha, que aprendemos a ver como um dado natural da existência de cada indivíduo, é, para Pessoa, um aspecto perfeitamente acidental e secundário. Quer dizer, existir enquanto pessoa não se atribui ao corpo humano vivo, materialmente entendido, para o qual calhou nasceres, mas antes a um certo tipo de preocupação a respeito do teu destino individual; ser um indivíduo não é, assim, para Pessoa, um atributo natural, mas uma questão de grau, relacionada com o grau de singularidade (eu gostaria de dizer: o estilo) dessa preocupação numa pessoa. Não se é um autor se não se for um indivíduo e não se é um indivíduo se não se for uma pessoa. Daí a ideia de os heterónimos existirem enquanto pessoas independentemente de não serem (mau grado aquilo que nos é dito na Tábua) fotografáveis — e daí também que nem todos os nomes de Pessoa possam ser considerados ‘heterónimos’.

Eu iria mais longe. Admitirmos a sua existência enquanto pessoas é a condição de aplicabilidade do conceito de heterónimo, uma vez que o conceito de autor heterónimo presume o de ‘pessoa’. Desse ponto de vista, talvez a definição de Domingos Vieira continue a ser, ironicamente, uma vez que precede toda a crítica pessoana, a mais útil e perspícua. “Auctor heteronymo; auctor que publica um livro sob o nome veridico de uma outra pessoa”. Se não supusermos pessoas, o conceito de heterónimo é simplesmente ininteligível: não se aplica. Que sejam pessoas inventadas, em vez de naturais, fará grande diferença a respeito da sua qualidade de autores e indivíduos? Parece-me limitador imaginar que a distinção habitual entre ficção e realidade faz aqui a mínima diferença. Por isso, não vejo aquela pergunta de Aspectos (e “O que é a vida?”) quer como expressão de uma confusão, quer como um modo de produzir confusão. Parece-me que Pessoa está a falar, naquele caso, com absoluta clareza.

Repara que não estou a procurar desfazer a distinção comum entre ficção e realidade, mas a dizer que apelar a essa distinção é, para certos efeitos, perfeitamente indiferente. A individualidade de Campos ou de qualquer um dos outros não se entende em relação a essa distinção, que me parece inócua e, em última análise, estranha neste contexto. Falar sobre uma “constante mistura de planos” é já tratar a questão sob uma cortina realista possivelmente desnecessária. É preciso meter na cabeça que não existem planos distintos de todo.

Pedro: Partimos de argumentos diferentes, mas talvez possamos chegar a conclusões comuns. Repara que não confundo um “Pessoa real” com um “Pessoa material”. Essa realidade pode ter uma componente material ou ideal, decerto ambas. Nesse sentido, essa referência a uma realidade acaba por ser inevitável, precisamente enquanto origem de explicações. No entanto, gera-se um problema quando não há a cautela necessária nesse tipo de referência e uma referência passa de uma alusão a uma possível realidade à substanciação da mesma, como origem de explicações sobre uma obra a partir de um ponto que lhe é exterior e condiciona todas as possíveis interpretações. É o que Eduardo Lourenço define como a “redução da estranheza” da obra, como acontece por exemplo no caso de Gaspar Simões, em que uma série de teses prévias sobre a psicologia do autor determinam à partida as possibilidades interpretativas. O mesmo acontece, precisamente, como dizes, no caso de explicações filológicas que transformam uma possível e necessária referência à materialidade da obra — ou até, porque não, ao autor, o tal sujeito fotografável e que, ao que parece, escrevia de pé — num determinismo essencialista, onde tudo parece relevar ou ser explicável a partir da materialidade. No âmbito deste suposto rigor empirista, o que se passa é que uma das dimensões da obra é substanciada e ascende a essência dessa mesma obra, como se fosse essa a sua única realidade (e na pretensão paradoxal de evitar, precisamente, o erro em que acaba por cair). Em qualquer destes casos extremos, a explicação da obra é monocausal, redutora, em suma, pobre.

Humberto: Neste teu livro exploras, no entanto, outra direcção de leitura. Em linhas gerais, poderias explicar a ideia do teu livro?

Pedro: O que procurei fazer, não sei se o consegui completamente, em Os livros de Fernando Pessoa, foi articular a propósito dos problemas do livro e da edição em Pessoa questões que passam pela materialidade da obra, mas não relevam desta. A articulação da idealidade e da materialidade da obra, se quisermos, permite mostrar nomeadamente como a propósito destes problemas Pessoa perseguia um certo ideal de livro enquanto totalidade expressiva, noção esta aplicada a cada livro projectado e a uma colecção de livros em que se materializaria o conjunto da obra. Mostra ainda a presença em Pessoa, essa figura mítica a quem supostamente não interessaria publicar a obra, de um pensamento editorial — tomando “editorial” em sentido lato, mais comum no inglês, de selecção, delimitação e organização da obra. Esse pensamento editorial leva Pessoa não só a preparar a obra para uma publicação futura, que em grande parte foi póstuma, como determina as suas distinções fundamentais, como a divisão entre obra ortónima e heterónima. Este pensamento ajuda também a compreender a fragmentaridade dessa obra — que contrasta com uma persistente ideia de totalidade, de obra acabada e fechada — não enquanto realidade pretendida ou consequência de uma estética do fragmento, mas como passo necessário com vista à concretização de uma ideia de obra em que não há espaço para o fragmento, como evidenciam as suas publicações em vida. Para não me alongar, salientar este ponto serve apenas para mostrar como se poderia cair no erro, o que aliás já aconteceu e acontece ainda numa crítica filológica mais extremada, de transformar o inacabamento de muitos dos textos do espólio num programa estético, ou seja, partir de um determinismo que transforma a materialidade na essência da obra, idealiza essa materialidade em nome de um suposto rigor.

Humberto: Na tua opinião, não se segue, portanto, da fragmentaridade superficial da obra de Pessoa a sua, digamos, fragmentaridade constitutiva. Este ponto é interessante por diversas razões. Uma dessas razões é ser muito delicado entre os especialistas. Essa transformação implica todo um programa filológico e de edição. A tua posição parece implicar que a transformação do inacabamento em programa estético é sobredeterminada por uma dada interpretação das funções do filólogo. Como responderias a esta caracterização?

Pedro: O que julgo que resulta principalmente de uma análise atenta da questão do fragmento — feita já anteriormente por Manuel Gusmão, Fernando Cabral Martins ou Rita Patrício, entre outros — é o contraste óbvio entre uma certa fragmentaridade de alguns textos, principalmente ao nível material, e um persistente ideal de completude que o pensamento estético de Pessoa advoga. Mas é aqui necessário distinguir tipos diferentes de fragmentaridade ou de fragmento, como faz Gusmão, que distingue três: um texto pode ser fragmentário no sentido de possuir lacunas, este seria o seu sentido mais material; o do texto inacabado, por existirem indicações que nos levam a entendê-lo enquanto parte de um todo que não chegou a ser concretizado; ou pode ser fragmentário no sentido de estar subjacente um pensamento estético do fragmento enquanto realidade poética.

Este último sentido, característico de várias obras modernas ou pós-modernas, se assim as quisermos designar, parece-me estar totalmente ausente em Pessoa. Mesmo no caso do Livro do Desassossego, por vezes tomado como suposto exemplo deste último tipo de fragmentaridade, sabemos que Pessoa imaginava proceder a uma escolha muito selectiva de trechos (a palavra que utiliza, precisamente em vez de “fragmento”), adequando-os à personalidade da sua figura autoral, como aliás fez ou planeava fazer em tantos outros casos.

Nos outros dois sentidos encontramos, de facto, fragmentos na obra de Pessoa e apesar do estado de inacabamento de alguns dos textos o sentido mais forte da fragmentaridade parece-me ser o segundo, ou seja, a projecção de um todo que excede a parte constituída por um texto em particular. Este é um sentido determinante e que é manifesto nos planos e projectos editoriais que Pessoa elaborava, planeando e concebendo títulos que englobariam outros já existentes, inserindo-os em conjuntos maiores.

Aqui, precisamente, reencontramos a sua noção de livro e de colecção enquanto totalidade, que excedia o que preparara até então. Esta noção excede a materialidade, mas é comprovada precisamente por vários elementos dessa materialidade. A conversa seria longa, mas apenas para referir alguns: as indicações constantes, sob a forma de títulos, abreviaturas ou notas, de que dado texto é parte de um conjunto maior, os planos e projectos editoriais, incrivelmente ricos, numerosos e minuciosamente elaborados, ou a ausência em textos publicados das marcas de fragmentaridade, no sentido de lacuna ou inacabamento, que encontramos nos textos do espólio. 

Humberto: A ideia de um Pessoa fundamentalmente editor parece-me não apenas plausível, como verdadeira. Vejo-o, de facto, como um organizador robusto — de tal modo que a procura de uma beleza de organização parece importar tanto como a beleza procurada em verso e em prosa. Para todos os efeitos, porém, aquilo que nos chegou está, pelo menos em certas regiões, amplamente inacabado. Há aquele trecho memorável de Ricardo Reis em que este comenta, por outras palavras, que Caeiro, desculpe o leitor, morreu na altura certa, etc. Parece-te que o grau de inacabamento se deve a Pessoa ter morrido antes de tempo?

Pedro: É talvez a pergunta mais difícil, porque procura descobrir as razões por detrás daquilo que encontramos, um espólio onde são visíveis marcas de fragmentaridade, essencialmente nos dois sentidos de que falava, enquanto texto lacunar ou parte de que falta o todo, e um persistente ideal de completude, ligado à sua ideia de obra, como dizes, plenamente organizada. Esta organização da obra é para Pessoa uma constante obsessão e, concordo, está intimamente ligada à beleza formal e de conteúdo da sua prosa e poesia. Essa obsessão é especialmente visível no seu planeamento editorial da obra, que se manifesta em notas, nos diversos textos que serviriam ou chegaram a servir de suporte a publicações — prefácios, posfácios, notas editoriais etc.; os vários textos que circundam o projectado livro de Alberto Caeiro são disso um magnífico exemplo! — e é ainda visível nesse corpus imenso de listas de obras a editar e publicar. Em grande parte, portanto, e a julgar pela ausência de marcas de fragmentaridade nos textos publicados em vida, a obra poderia ter um aspecto diferente se Pessoa tivesse vivido mais tempo.

No entanto, é também possível pensar não só no perfeccionismo quase doentio de Pessoa, que o levaria porventura a não ter a capacidade de concluir a obra ou algumas das obras, de colocar um ponto final, como também no modo como entendia de um modo mais amplo as questões da edição e do livro. Este entendimento revela uma dimensão temporal ou até messiânica da obra, projectando constantemente no futuro a concretização de algo de que o texto existente é apenas um indício, parte de um todo por concluir. Como se a Grande Obra por vir fosse uma espécie de Quinto Império por alcançar.

Encontramos inúmeros textos em que Pessoa critica, diminui ou renega parte da sua obra, mesmo ou em particular a já publicada, em nome de uma obra maior por concluir. Este movimento, se quisermos, parece-me característico e poderia prosseguir por muitos mais anos que Pessoa tivesse vivido. A esta noção de completude ainda por alcançar Pessoa associa a ideia de livro e de colecção de livros, que opõe às publicações realizadas em jornais e revistas, ou também em folhetos (como O Interregno ou os Poemas Ingleses), remetendo essa completude para outro suporte material e outra concretização da obra. Mesmo no caso de Mensagem, assim como no dos folhetos referidos, Pessoa insere emendas sobre os exemplares publicados que conserva e concebe uma publicação futura diferente da que chegou a realizar. É difícil ou mesmo impossível saber que publicações Pessoa poderia ter feito ainda com mais algum tempo, ou se chegaria a conceber essa completude definitiva que ia adiando, mas talvez baste que nos confrontemos com o que ficou. E o que ficou é essa colisão entre um ideal de completude e a sua concretização apenas em termos parciais, o que não nos pode levar a ignorar esse mesmo ideal, porque ele está presente nos textos.

Humberto: De facto, a ideia de um organizador presume uma procura de unidade. A tua leitura sugere que essa unidade idealizada se entrevê na fragmentaridade de superfície e que, num sentido particular, devemos julgar Pessoa em relação a uma coisa que não conseguiu propriamente concretizar. Esta ideia é importante e extraordinária, ainda que, previsivelmente, vá chocar uma data de pessoas. Com efeito, podemos entender isto no sentido que acabaste de sugerir, em relação à publicação vindoura de uma obra no seu estado perfeito de acabamento. Por outro lado, talvez a grandiosidade de Pessoa não esteja simplesmente naquilo que fez, mas porventura naquilo que pensou fazer, nos seus planos. Este sentido é diferente apenas por representar como uma certa indiferença em relação à importância de um ponto de chegada aquilo que pareces entender como perfeccionismo. Por outras palavras, não sei se estamos perante perfeccionismo ou uma noção penetrante das próprias limitações. Pode ser que abraçar o inacabamento como condição seja a única salvaguarda eficaz contra a perecibilidade. Talvez por isso não me pareça motivo de ultraje, mas deliberada e triunfante, no caso de Pessoa, a ideia de que devemos julgá-lo pelo que não chegou a concluir. É tão bom, tão bom, que basta admirarmos a ideia a partir daquilo que sobrar. O que, a resultar de uma escolha, é de uma força de espírito muito rara. E é ainda como se nos convidasse a entender a poesia enquanto uma arte conceptual, cuja beleza está, não estritamente numa camada de versos, mas num todo entrevisto, que dispensa, em última análise, uma conclusão material.

Pedro: Não poderia concordar mais. O perfeccionismo será apenas uma das características do criador implicadas no processo. Mas no essencial é, sem dúvida, essa projecção no futuro de uma ideia de obra que excede a concretização um dos motivos fundamentais do deslumbramento que esta provoca no leitor. A capacidade de podermos, como dizes, “admirar a ideia a partir daquilo que sobrou”. É precisamente neste sentido que entendo o fragmento, não querendo excluir a existência de um outro sentido, o mais comum de texto lacunar; no seu sentido mais forte em Pessoa o fragmento é algo que remete para uma totalidade, essa “totalidade entrevista”, que não está e talvez nunca pudesse chegar a estar concretizada. Está concretizada apenas e sempre de um modo parcial, numa materialidade limitada por aquilo que a transcende. A utilização do fragmento em Pessoa será, afinal, uma crítica cabal a qualquer estética da fragmentaridade como realidade última. Gostava de regressar, entretanto, ao que dizias sobre a individualidade em Pessoa, não sei se entendi bem e se concordo…

Humberto: De acordo.

Pedro: A relação que estabeleces entre a criação de diferentes obras e de indivíduos que são autores das mesmas, e para os quais não é determinante uma existência real, neste caso no sentido material, parece-me decisiva. Também me parece que, ao tratar esta questão, a da substância desses indivíduos, de nome Caeiro, Campos, Reis, Soares ou Pessoa, não é determinante a distinção entre ficcionalidade e realidade, a não ser talvez no caso do nome Pessoa, simplesmente por este ter também como referente uma pessoa real. No entanto, concordaria que para o efeito de um certo tipo de argumentação esta referência não seja de todo necessária.

Ainda assim, vejo a presença desta distinção na obra, precisamente em algumas considerações sobre a figura do autor Pessoa, de um modo evidentemente propositado, criando uma confusão que interessa à própria obra na medida em que reflecte sobre os seus limites, que passam pela tensão entre ficcionalidade e realidade, por exemplo de um ponto de vista tão banal e concreto como a publicação de um livro. Esta questão está presente em Aspectos (qual o nome de autor que figura na capa do livro? Quem é o “autor real”? Quem edita o livro ou quem o assina?). Mas entendo perfeitamente que este tipo de distinção possa não interessar para certas análises, depende, evidentemente, do problema que se quer analisar, para onde se pretende olhar.

No sentido de entender então melhor o que estás a defender, a ideia de individualidade, quando aplicada às várias figuras autorais, incluindo a de Pessoa, seria baseada num conceito de pessoa que prescinde da sua dimensão material? Mas o que fazer então com o facto de, como dizes, os heterónimos serem “fotografáveis”, ou existirem descrições sobre as suas feições, a brancura de Caeiro, os seus olhos azuis, etc.? Parece-me, aliás, interessante analisar a figura de Pessoa deste ponto de vista, ou seja, prescindindo da referência a um “Pessoa real” e colocando-o no mesmo plano que as outras figuras, porque é, de facto, o que acontece na obra. Repara que quando me referi a diferentes planos referia-me a diferentes níveis ou dimensões, mas que, em última instância, se encontram no seio de um sistema, o da obra, que me parece ser sempre o melhor ponto de partida. Esta obra tem uma espessura própria e uma unidade, ainda que precária, porque dependente dessa dimensão ideal que não se encontra plenamente concretizada. Mas a minha questão principal é então a seguinte: se me parece que estás, por um lado, a focar-te nas figuras autorais que a própria obra propõe, porquê a necessidade dessa referência a Pessoa enquanto “autor moral” (nas tuas palavras)? Não estarás a focar-te assim numa instância exterior à obra? Qual a necessidade dessa referência?

Humberto: São duas perguntas relacionadas para as quais tenho respostas em diferentes graus de provisoriedade e que devem ser tomadas como expressão de uma intuição. A minha resposta menos provisória diz respeito à segunda pergunta e, no fundo, resume o que tentei dizer antes. Por “autor moral” proponho que se entenda não somente o ortónimo “Pessoa”, mas, em rigor, cada um dos autores heterónimos tomados como indivíduos, pessoas. Talvez a sugestão de que aquelas figuras são pessoas como nós viole a concepção naturalista de ‘pessoa’ que domina as nossas intuições mais comuns, conduzindo-nos a identificar a questão da individuação com a posse, ou a indissociabilidade, de um certo género de corpo. Parece-me que, embora nascidos para uma dada espécie (da qual, tirando, como disse alguém, a maldição de Gregor Samsa, não podemos sair), ser um indivíduo não é, na perspectiva de Pessoa — a julgar pela centralidade da autoconsciência como problema na sua obra — uma questão estritamente biológica ou animal.

Uma das razões da provisoriedade desta primeira resposta é a de que não me sinto completamente satisfeito com a minha descrição (de facto, com qualquer descrição disponível) da relação entre a ideia de ‘ortónimo’ e a ideia de ‘autor moral’. A segunda razão conduz-me, em todo o caso, à minha resposta à primeira pergunta, com a qual me sinto ainda menos satisfeito.

Essa resposta, numa palavra, seria “não”; ou, em três, “mais ou menos”. Não consigo imaginar pessoas como substâncias desencarnadas e por isso não vejo que a concepção de ‘pessoa’ implícita na ideia de autores heterónimos dispense alguma ideia de encarnação. Mas (e daí o “mais ou menos”) aquilo a que chamas “dimensão material” sugere uma interpretação materialista, realista, da ideia de encarnação, a que Pessoa torce caracteristicamente o nariz. Podemos não estar de acordo e é possível que esteja simplesmente errado, etc. (e já ouço alguém lá ao fundo a protestar que não se pode julgar os poetas desta maneira). Mas Pessoa parece querer admitir — e convida-nos explicitamente a admitir — que existir enquanto indivíduo não se explica fundamentalmente em relação à indissociabilidade do corpo. Voltando atrás, não significa que esta ideia de indivíduo prescinda de uma encarnação corpórea. Por isso mesmo não conseguimos descrever Caeiro, Reis, Campos, sem ter algum modo de referência à sua corporalidade: à sua, digamos, fotografabilidade. No que diz respeito ao fundo histórico-literário e sistemático destas descrições, a explicação de António Feijó da fisionomia de Caeiro e da monumentalidade dos heterónimos parece-me, por exemplo, insuperável. No entanto, não é o corpo que faz a pessoa, a não ser, por exemplo, no sentido em que uma pessoa veja no próprio corpo a explicação de uma tragédia pessoal, e em sentidos análogos a este. Mas aí não é a matéria que produz as descrições.

Assim, parecer-me-ia estúpido e deslocado, por um lado, falar sobre a “dimensão material” de Campos; mas, por outro lado, não me causa quaisquer problemas falar sobre o seu corpo. O caso de Maria José é de particular interesse a este respeito, pela corcunda. No fundo o que estou a tentar dizer é que perceber a relação entre a corcunda e a tragédia da corcundinha não implica, nem tornaria menos estúpido e deslocado, discutir a dimensão material, real ou ficcional, da corcunda, etc. Essas maneiras de falar são, no fundo, outros modos de redução da estranheza. Neste caso temos um drama pessoal com origem num aspecto do corpo, cuja descrição suscita, por um lado, algumas questões de exegese da obra (a meu ver, algumas das mais importantes) e, por outro lado, algumas questões filosóficas mais gerais. Na minha opinião, nem umas, nem outras, precisam de ser tratadas em relação à distinção habitual entre ficção e realidade. Em todo o caso, a razão da minha insatisfação é a de que, a não ser nos casos de Álvaro de Campos e de Maria José (que me parece uma caricatura do Campos tardio), não é muito óbvio, ou pelo menos não consigo compreender bem, de que modo as descrições de Pessoa do corpo e da fisionomia e Caeiro e dos poetas em torno de Caeiro se cruzam — se é que se cruzam — com a sua preocupação fundamental com o recorte das suas suas próprias vidas.