1. Usando o verbo existir de um modo característico, Fernando Pessoa dissocia a concepção de existência enquanto indivíduo da concepção, digamos, historico-natural, de senso comum, de existência enquanto pessoa. Ser-se um indivíduo significa combinar certas qualidades de um modo particular bem definido. Assim se explica que existir seja, do seu ponto de vista, possivelmente uma questão de grau (veja-se, por exemplo, Notas para a recordação…, os textos ibéricos, etc.). Indefinidas nas suas qualidades, Pessoa parece admitir que muitas pessoas naturais, tal como muitas personagens fictícias, não são propriamente indivíduos. Daí que, num sentido especial, não existam. (Teófilo Braga, por exemplo, “não existia”.) Os heterónimos serem nomes de figuras fictícias não quer portanto dizer que estas figuras não existam. Muito pelo contrário. Elas existem enquanto indivíduos e são fictícias enquanto artefactos. Enfatizar a sua inexistência enquanto pessoas naturais é, portanto, perfeitamente desnecessário.

2. Um naturalismo de senso comum leva-nos a saber distinguir pessoas de personagens e cadeiras, etc., em relação a uma diferença entre coisas naturais e coisas construídas, artefactos. Quase se perdeu na sensibilidade actual o ponto de vista teológico mais amplo sob o qual pessoas (como aliás todas as coisas naturais e artificiais) são consideradas artefactos. Não chega todavia a ser necessário apelar a esse ponto de vista teológico para se perceber que, no sentido mais ou menos claro e importante de que cada pessoa é, em parte, o resultado de uma construção — de que se é, nas palavras de MacIntyre, co-autor — a diferença entre pessoas e personagens, tal como a diferença entre real e fictício (na acepção de Pessoa), se esbatem. Aparentemente atraído por uma certa fantasia de omnipotência, Pessoa tende por vezes a imaginar que existir é ser fundamentalmente fictício. Não admira assim que, na maior parte das vezes, adopte em relação aos heterónimos o ponto de vista teológico que nenhum de nós (nem qualquer um dos heterónimos) pode ter em relação a si mesmo.

3. Fernando Pessoa parece interessado em levar-nos a admitir que existir enquanto pessoa não se reduz a existir enquanto mero corpo animal; e que o grau mais elevado de existência enquanto pessoa (a que, sem que o prescreva, se refere quase sempre num modo implicitamente injuntivo) é existir-se enquanto “individualidade”. Os indivíduos heterónimos preenchem assim uma visão idealizada de poeta lírico, logo atrás de uma visão abertamente esquisita de individualidade: a de um poeta dramático de último grau, i.e. “um poeta que seja vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica”. Pessoa usa a este respeito o conceito de “despersonalização” e eis que muitos dos seus intérpretes escorregam na ideia de uma individualidade cindida. Embora se enfeite com uma certa dose de psicopatologia de vez em quando, estrategicamente, Pessoa tem porém o cuidado de explicar a especificidade da sua interpretação de semelhante “escala de despersonalização”. Trata-se, repare-se, de “despersonalização, ou seja … imaginação” (idem), pura e simples. Por muito que “o próprio Fernando Pessoa” diga, a posição de poder ocupada por “um poeta que seja vários poetas” está muito longe da imagem generalizada de um vaso partido.