Algures entre a ignorância e o conhecimento, esse estado que nem sempre é a má morada de Eros segundo Platão, entro numa livraria à procura de um poema. Há muito tempo que não o leio. A livraria fica numa rua que sobe e continua a subir. O bairro fica numa cidade estrangeira, mas as tavernas e as ruas lembram uma geografia de Lisboa na qual Alexandre O’Neill viveu mais ou menos a partir da década de 50. É inverno, está a escurecer depressa. Há carros estacionados de um lado e de outro e alguns estacionados nos passeios, o que dificulta o acesso à entrada da livraria. Diante da montra um longo banco de madeira envelhece. É possível uma pessoa sentar-se a beber, a conversar ou a ler. Esse banco é um obstáculo que se acrescenta à complicada circulação desta rua e é também uma forma de hospitalidade. O poema está num livro que não é difícil de encontrar, porque tende a ser obra omnipresente em todas as livrarias deste país. Registemos esta condição peculiar, enquanto início deste texto, que é uma espécie de observação de algumas maneiras de dizer adeus a partir de «Um adeus português». É possível uma pessoa separar-se fisicamente de certas coisas, digamos um poema, por exemplo, sem necessariamente as perder.
«Um adeus português», o poema que pretendo usar como fio condutor deste ensaio, poderia ser lido a partir daquele poema muito famoso de Elizabeth Bishop, «One Art». Quando se lê «Um adeus português» ao lado desse poema, sobressaem as perguntas: «Um adeus português» é escrito enquanto art of losing, isto é, pode ler-se enquanto registo do primeiro passo dado na aprendizagem de uma perda ou, antes, é uma anti-art of losing? Foi composto para sobreviver àquilo que nele se descreve? Para não esquecer? É uma forma de dar testemunho?, para utilizar uma expressão de Jorge de Sena, contemporâneo de O’Neill que de resto apresentou No Reino da Dinamarca e que lia o livro nessa chave.
«One Art» foi publicado em 1976 em Geography III. Nesse mesmo livro Elizabeth Bishop traduz um poema de Octavio Paz dedicado a Joseph Cornell, que se intitula «Objects and Apparitions». «Objects and Apparitions» é um poema sobre as caixas de Cornell. No último verso da oitava estrofe lê-se: «out of your ruins you have made creations». E vale a pena copiar a estrofe seguinte: «Theatre of the spirits: / objects putting the laws / of identity through hoops.» Os últimos versos deste poema são um dístico: «Joseph Cornell: inside your boxes / my words became visible for a moment». Joseph Cornell tinha morrido em 1972. Como, ao certo, é que um poema que é uma forma de dizer adeus resiste a tornar-se uma visão de ruínas e se torna algo que parece conter alguma espécie de totalidade? Que forma de lucidez pode separar tão limpidamente a melancolia do reconhecimento para que uma palavra de apenas duas sílabas não se torne uma coisa que mancha uma vida? Deixemos, por um momento, de parte esta ideia de que certas revelações têm como requisito uma crise forçada pelo reconhecimento da ausência. Registemos apenas as condições de visibilidade, que são uma forma de (re)conhecimento.
«Inside your boxes / my words became visible for a moment» é uma maneira de dizer que às vezes existimos enquanto hóspedes temporários da arte que há nos outros. Essa arte é uma hospitalidade particularmente decisiva no sentido em que pode tornar possíveis coisas impossíveis («my words became visible for a moment»). O sentido da gratidão, no momento de dizer adeus, não se confunde necessariamente com uma função da tristeza, da mesma forma que uma das consequências da arte pode não ser tanto um caso de aprender a evitar a tristeza, mas antes permitir traçar os contornos da sua dimensão. É, mais ou menos obviamente, a geografia do que fica iluminado que importa. E a luz que essa delimitação pode emitir de volta. Dizer adeus, como certas coisas descritas em poemas, é por vezes uma coisa impossível. Uma coisa impossível que aprendemos a fazer naturalmente.
Que diremos em algum ponto adeus é uma coisa que pode ser ao mesmo tempo banal e exorbitante. Fabricada por terceiros contra a vontade das figuras representadas (personagens? sujeitos? agentes?) no caso daquele poema. Dizer adeus é, nesse sentido, rejeitar o artifício e escolher uma palavra que talvez seja ao mesmo tempo ferida e cicatriz, descrevendo o como, o que é sinal de vida. O adeus em «Um adeus português», enquanto afirmação, é uma coisa final que funciona bastante ao contrário da morte, no sentido em que o poema não acaba em algo que se extingue.
É um adeus indesejado, mas o significado desse não querer não é, por exemplo, da mesma espécie de um poema muito breve que foi escrito pelo então jovem poeta grego Yiorgos Seferis e que surge no seu primeiro livro, Strofí (1931). O poema «Negação» (Άρνηση - Arnisi, o termo pode também ser traduzido por «Recusa») é sobre uma paixão desencontrada e sobre aceitar esse desencontro. Um poema escrito para chegar à lucidez do inevitável, que é abdicar de um sentimento. O nome da amante, lemos no poema, é escrito na areia:
Πάνω στην άμμο την ξανθή
γράψαμε τ' όνομά της·
ωραία που φύσηξεν ο μπάτης
και σβήστηκε η γραφή.
Escrevemos o nome dela
na loura areia lisa,
mas ao de leve sopra a brisa
e a escrita já se vela.
Mas, como se explica, vem o vento e apaga o nome, o que precipita o final do poema:
Mε τί καρδιά, με τί πνοή,
τι πόθους και τί πάθος,
πήραμε τη ζωή μας· λάθος!
κι αλλάξαμε ζωή.
Com que alma e força desmedida
com que chama e paixão,
levámos a nossa vida, em vão!
E mudámos de vida![1]
Este poema que Seferis escreveu na juventude está publicado num livro cujo título é difícil de traduzir. A palavra remete ao mesmo tempo para noções de continuidade e mudança.[2] Nenhum poema na minha memória deste livro me parece tão irónico, tão opressivo e, paradoxalmente, libertador como «Negação», que terá na sua origem um facto biográfico: o fim de uma relação que Seferis manteve com uma mulher chamada Jacqueline Pouyollon. A expressão que Manuel Resende traduz por em vão, de modo a manter a rima, é, na verdade, em grego, λάθος (lathos): um erro, errado. Isto é, tudo o que é narrado é revisto à luz de um engano. É uma revelação definitiva que termina na conclusão a que se chega no último verso. A força negativa da recusa é tão vincada que é quase um protesto, o que explica que, muitos anos mais tarde, já depois de Mikis Theodorakis ter convertido este poema numa canção que se tornou uma espécie de hino não oficial da Grécia, esta foi cantada em protesto contra os Coronéis em 1971 pela multidão que se reuniu em Atenas para o cortejo fúnebre de Seferis. Aquilo que parece muito privado neste poema, da ordem dos factos que cinzelam uma personalidade no que de mais íntimo nela pode haver, torna-se anos mais tarde quase só decisivamente político. Este campo de forças opostas, entre o privado e o político, está também em causa em «Um adeus português». É uma ambiguidade com uma força destrutiva. O tropeço, mencionado no fim, no entanto, sugere que há coisas de ordem tão vital que política nenhuma as pode mudar. Podia ser quase a descrição de um automatismo de personalidade, tão involuntário como irreprimível.
Em «Negação», por outro lado, esse nome escrito no areal, quando apagado pelo vento, torna-se o oposto daquilo para que a escrita normalmente serve. A suprema imagem, na história da literatura, de um nome que pode ser escrito sem se fixar em escrita é, claro, aquela que o poeta John Keats queria para o seu epitáfio, Here lies one whose name was writ in water, e é de facto essa frase que hoje se lê na sua lápide, no Cemitério Acatólico de Roma, onde o seu nome não está. É uma forma de anonimato complicada. Morto Keats, a morte pode parecer, porque ele queria tanto notar que ia ser esquecido, não tocar sequer o seu nome. O que significa ao certo a presença ou a ausência do nome de alguém num poema? Nenhum nome é mencionado em «Um adeus português», existe apenas um «tu» que me parece ter qualquer coisa em comum com outro que vou mencionar um pouco mais abaixo neste ensaio.
Tropeçar, por outro lado, pertence a um mundo de coisas acidentais que talvez existam enquanto memória remota do que é aleatório e por isso libertador. É um final abrupto e inesperado para um poema, em harmonia com aquela emoção, também ela excessiva, que anos mais tarde, em 1984, no texto «A história de um poema», Alexandre O’Neill viria a descrever como coisa própria de adolescentes, que é a mesma palavra que surge como predicativo do sujeito no antepenúltimo verso do poema. Tropeçar de ternura é próprio de adolescentes. Quando é que os adultos deixam de fazer isso ao certo?
Regressemos ao uso do «tu». Em 1966, o poeta italiano Eugenio Montale fez circular, numa edição de apenas 50 exemplares, Xenia, um ciclo de 28 breves poemas que mais tarde, em 1971, viria a ser acrescentado ao livro Satura. Os poemas foram escritos depois da morte de Drusilla Tanzi, companheira de Montale, cuja alcunha, por causa da miopia, era Mosca. O termo xenia normalmente designa as ofertas votivas da hospitalidade trocadas entre hóspede e convidado na Grécia antiga. Marcial, o poeta romano, escreveu dois livros bastante obscuros, dos quais um deles tem por título Xenia, uma colecção de dísticos em que se descrevem presentes trocados entre convidados nos Saturnalia, o festival romano que tinha lugar em Dezembro e era dedicado ao deus Saturno. Xenia é também o título de um livro escrito a duas mãos entre Goethe e Schiller com o propósito de antagonizar os críticos da sua geração. As xenia assinalam as comunidades que escolhemos, tornam-nas visíveis quando delas nos separamos. A brevidade dos poemas que encontramos em Xenia de Montale talvez imite a brevidade da vida. Montale conheceu Drusilla Tanzi em 1927, quando se mudou para a casa que ela dividia em Florença com o seu marido da altura, o crítico de arte Matteo Marangoni. Montale e Drusilla Tanzi viveram juntos até à morte dela em 1963. No primeiro poema de Xenia, Mosca, como Montale lhe chama, reaparece ao narrador, mas sem óculos e sem eles o narrador também não a pode reconhecer. A ausência destes óculos sugere que a morte muda coisas outrora muito triviais, que de repente se tornam muito decisivas. Xenia enumera essas coisas escrupulosamente. Críticos destes poemas têm-nos explicado como depósitos dos escombros de uma vida, mas talvez esta definição seja um pouco incompleta. Como cartografia de uma ausência, ou como uma espécie de longo adeus, Xenia é o auto-retrato de uma relação de muitos anos entre duas pessoas muito diferentes. Estas duas pessoas muito diferentes conheciam os hábitos uma da outra e partilharam quartos de hotel, contas de telefone (que se tornam mais baratas depois da morte de Mosca), perderam-se um do outro para se encontrarem num bar da Avenida da Liberdade (grafado com um erro ortográfico, «Libertade», em várias edições, em diferentes línguas) na cidade de Lisboa, e por vezes, pelo puro sortilégio da longa convivência, trocavam de poderes de observação. Ainda que só um deles escrevesse, a ausência dos óculos no primeiro poema talvez tenha a ver com a impossibilidade de continuarem a trocar de perspectiva.
As identidades deste eu e deste tu existem num vai-e-vem constante em poemas que são um pouco como corredores de hotel, por exemplo aquele em Veneza, onde Mosca gostava especialmente de ficar hospedada, onde tropeçamos em diferenças prosaicas entre estes dois sujeitos, da ordem do quotidiano quando não do completamente banal. O que parece banal em «Um adeus português», como o que é banal em Xenia, enfatiza o estado de excepção. Mas, no livro de Montale, essas diferenças sublinham relações de cumplicidade e autonomia que, com o desaparecimento de Mosca, tornam quem fala singular e incompleto. As pessoas que amamos dão-nos as coisas banais do dia-a-dia, que nos banalizam e, ao mesmo tempo, nos permitem reconhecer, e por vezes sobreviver, ao que é extraordinário.
Xenia, de outra forma o nome de uma coisa antiga que, por definição, remete para um estado temporário, como uma breve estadia, uma data de validade ou uma vida humana, é então uma investigação metafísica («a metaphysical realist with an evident taste for extremely condensed imagery» é como Joseph Brodsky define Montale num ensaio intitulado «In the shadow of Dante»[3]) da perturbação gerada por uma ausência. Essa ausência, no entanto, um pouco como no poema de Octavio Paz que Elizabeth Bishop traduziu, não é da ordem do desaparecimento, mas da fulguração. É o catalisador de uma série de revelações urgentes que pareciam latentes até esta ausência se tornar parte da vida do narrador e que podem ser lidas como um exame do que a vida daquele «eu» significou por se ter ligado àquele «tu», do que a vida de alguém ganha em tensão e significado por ser partilhada com outro. Essa espécie de crónica de uma tomada de consciência talvez seja outra chave possível para a leitura de «Um adeus português».
As xenia existiram desde muito cedo na cultura grega, remontam ao período arcaico, e podiam por exemplo permitir a duas pessoas que estavam ligadas por uma relação de hospitalidade precedente, que corria entre famílias, reconhecer que esse laço existia, que é, por exemplo, o que acontece entre dois soldados inimigos, Glauco e Diomedes, no canto 6 da Ilíada, quando se preparam para combater um contra o outro. Desistem de se tentar matar ao entender que estavam ligados por esse tipo de hospitalidade. Xenia é, neste sentido, uma forma não apenas de reconhecimento, mas também de reciprocidade. A reciprocidade pode ser uma certa disposição para a proximidade que explica porque é que o amor ou a amizade não se confundem com coisas como o poder ou a mútua destruição. Aquilo que a descrição poética deste gesto tem de nostalgia da gentileza está presente no poema também para descrever a violência do presente. «Um adeus português» existirá como um poema insurgente em relação ao seu contexto histórico por razões semelhantes.
Consideremos uma imagem que condensa a tristeza de ter de dizer adeus e a consciência do seu significado colectivo. Em Atenas, no Museu Nacional de Arqueologia, há uma estela funerária que representa uma figura no momento em que ela própria se converteu em sombra. É uma representação muito particular, porque bastante minimalista, de um soldado que morreu provavelmente numa batalha naval em Nemeia, em 394 a.C. A família, que não o podia ter sepultado se ele morreu no mar, dedica-lhe então esta estela que foi, séculos mais tarde, escavada no Pireu. Melancolicamente sentado, de joelhos erguidos, um braço que se apoia no joelho e de cabeça apoiada na mão, visto ao lado da sua parafernália de hoplita, Demóclides, filho de Demétrio, assim se lê a inscrição na estela, olha melancolicamente o mar, diante da proa de um trirreme que se afunda. Demóclides quase parece estar sentado sobre as águas, que estão prestes a arrastá-lo. Vemo-lo, nesta estela fabricada para o adeus, de uma maneira como ele próprio não se podia ter visto, e como a família, que erigiu a estela, não o podia ter visto. O que há de poético neste objecto tem a ver com essa impossibilidade de ver que não é, no entanto, uma impossibilidade de representação. A imagem é verosímil, mas isto não é sobre veracidade, da mesma forma que a cidade ideal para onde o «tu» de «Um adeus português» parte corresponderá, de alguma forma, a uma imagem idealizada de Paris. O que é apenas verosímil nesta estela é sobre a exactidão do sentimento de um adeus, o nosso, e não só o daquela família, perante o desaparecimento de Demóclides, filho de Demétrio, estrangeiro e anónimo para nós apesar dos nomes que o identificam. Ao olhar essa estela tornamo-nos por um instante parte da comunidade dos que lamentaram este soldado. A nossa participação efémera nesse adeus torna-se, nesse sentido, à distância de muitos séculos, outra coisa impossível, uma espécie de laço, entre nós que estamos vivos e aqueles que desapareceram há muito tempo. Comove-me a beleza que há nesse cuidado, e a vulnerabilidade do corpo de Demóclides perante as ondas, o detalhe das mangas curtas da sua túnica, a inutilidade da sua parafernália de soldado, o seu escudo e o seu capacete, símbolos afinal de algum tipo de estupidez muito humana, diante da força imparável do mar. É o tipo de estupidez que implica a inabilidade de reconhecer o kairos, o momento que tem de ser agarrado. Em «Um adeus português» há um reconhecimento muito preciso desse tipo de tempo. O tempo implícito no poema é o de não poder agarrar esse momento.
Um adeus, por outro lado, são ainda as imagens que nos assombram no depois, e uma despedida pode ser uma escada vertiginosa. Esse movimento de aceleração em direcção ao adeus existe, por exemplo, nas sucessivas imagens que são descritas em «Um adeus português» e que se vão ligando em relações de contraste e continuidade. Alguma coisa na oposição de imagens discrepantes talvez derive das técnicas de outra arte cara aos surrealistas e que O’Neill praticou na época em que escreveu este poema, a das colagens. Mas essa aceleração é terminada abruptamente num tropeço, um pouco como quando no final de Os Lusíadas o narrador diz à musa que já chega.
A maior intimidade que teremos com a morte, antes de morrer, talvez seja o acto de dizer adeus. Quando voltamos ao poema de O’Neill relemo-lo para aprender a morrer ou a viver? O que é que muda no nosso modo de o ler à medida que a nossa experiência de vida avança? Há nele a descrição de duas realidades que correm paralelamente e assim se vão desenrolar, em duas cidades, uma portuguesa e a outra não, e há a rejeição de uma outra dualidade ainda, a do bem e do mal, que é descrita no último verso da penúltima estrofe:
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal[4]
A «roda de náusea» que é descrita na antepenúltima estrofe, e que faz pensar nas rodas de tortura medieval, é reconvertida na última estrofe noutra forma circular, a da «moeda falsa do bem e do mal». Essa «moeda falsa» já tinha surgido antes, num texto datado de 1948, e assinado como manifesto, a quatro mãos, por Alexandre O’Neill e Mário Cesariny, «Porque aderimos ao surrealismo». A rejeição desta moeda contrafeita é uma rejeição do que serve para simplificar e oprimir, um pouco do mesmo modo que ao movimento de girar até à idiotia se contrapõe a errância do amor, cujo papel não é suprimir a morte, mas fazer viver. É outra coisa ainda: numa sociedade onde se torna possível as palavras não terem qualquer relação com os factos, o bem pode facilmente parecer o mal e o mal o bem.[5] «Um adeus português» continua, no entanto, a conter a história de um adeus redimível apenas pelo deus ex machina de uma ternura adolescente.
Qualquer coisa no futuro que este poema desenha seria sobre a descrição de uma solidão cruel e intolerável se não houvesse nele o reconhecimento, espécie também de oferenda de xenia, daquilo que numa situação absurda é profundamente idiossincrático, mas não é absurdo: uma visão clara de coisas que, infere-se, não são mudadas pelo adeus. Que o adeus seja português, então, é algo que aponta talvez para uma ambivalência. Essa ambivalência é por um lado a do reconhecimento da mediocridade de uma contingência colectiva, originada numa página da história de Portugal, o que não só um adolescente zangado poderia descrever como a mediocridade do totalitarismo, e, por outro, esse adeus que é dito singularmente, por alguém também ele português.
Olhemos, quase para concluir, para uma representação esquemática do acto de ter de dizer adeus e não querer. Datado de entre o séc. VII ou VI chegou até nós um fragmento atribuído a Safo em que ela reproduz o que é dito numa despedida, provavelmente entre amantes — o fragmento 94. Como sucede com bastantes poemas de Safo, uma parte do significado fica em suspenso na forma de uma lacuna, o que se perdeu no papiro e a filologia não pode inteiramente reconstituir. O que se lê nas primeiras duas estrofes são palavras que amantes sussurraram ao longo de séculos. É o mais mínimo mapa possível do efeito de dizer adeus contra a vontade própria:
τεθνάκην δ’ ἀδόλως θέλω·
ἄ με ψισδομένα κατελίμπανενπόλλα καὶ τόδ’ ἔειπέ̣ [μοι·
̔ ὤιμ’ ὠς δεῖνα πεπ[όνθ]αμεν,
Ψάπφ’, ἦ μάν σ’ ἀέκοισ΄ ἀπυλιμπάνω.’
De verdade quero morrer;
chorando ela deixava-meentre muitas coisas também me disse isto:
«Ah, como sofremos terrivelmente,
Safo, contra a minha vontade te deixo...»(tradução minha)
O que me leva ao poema que mencionei no início deste texto. É um poema sobre não querer dizer adeus, sobre a passagem do tempo, medo, arte e, talvez, sobre uma forma menor, mas indómita, de resistência. O poema intitula-se Πριν τους αλλάξει ο Xρόνος («Antes que os mudasse o tempo») e o poeta grego Kavafis escreveu-o talvez em 1924 sobre duas pessoas de 24 anos que têm de se separar e não o querem fazer, muito embora, diz-se no poema, a paixão que os tinha juntado tivesse diminuído e já não fosse a mesma. Não é, importa notar, o poema mais famoso de Kavafis sobre o acto de dizer adeus. O poema mais famoso de Kavafis sobre esse assunto é um poema sobre a derrota do general romano António em Áccio, «O deus abandona António» (Απολείπειν ο θεός Aντώνιον), que Leonard Cohen viria a adaptar mais tarde numa canção também ela sobre dizer adeus, «Alexandra Leaving».
Em «Antes que os mudasse o tempo» um dos amantes tem a possibilidade de emigrar (para Nova Iorque ou para o Canadá) e o outro fica para trás. Há qualquer coisa neste poema do efeito de uma contagem decrescente, que é suspensa antes do fim por um raciocínio sobre algo perfeitamente artificial em sentido quase etimológico. É um raciocínio que tem a ver com a arte:
Όμως να χωρισθούν, δεν τόθελαν αυτοί.
Ήταν η περιστάσεις.— Ή μήπως καλλιτέχνις
εφάνηκεν η Τύχη χωρίζοντάς τους τώρα
πριν σβύσει το αίσθημά των, πριν τους αλλάξει ο Χρόνος·
ο ένας για τον άλλον θα είναι ως να μένει πάντα
των είκοσι τεσσάρων ετών τ’ ωραίο παιδί.
Or maybe Fate
appeared as an artist and parted them now,
before their feeling died out completely, before Time altered them:
the one seeming to remain for the other always what he was,
the exquisite young man of twenty-four.[6]
Este raciocínio deixa o sentimento que tinha juntado estas duas pessoas suspenso no tempo, é nesse sentido uma suspensão de uma espécie de morte, a de um sentimento, e faz pensar numa característica geral de uma estética da decadência que, nestes anos, posteriores já a The Waste Land, continuava a ser cara ao poeta de Alexandria, a de preferir a arte à realidade. Só que essa preferência, quase sempre em Kavafis, tende a ler criticamente a realidade. É um poema escrito contra a desfiguração imposta por aquilo que não pode ser uma escolha. Aquela imagem, de dois jovens de vinte e quatro anos, que é a última imagem que o poema nos dá, quase que existe, na sua precisão visual e de linguagem, como uma outra impossibilidade, uma fotografia que, vivendo apenas na memória, se fosse tornando mais nítida à medida que o tempo passa. Uma coisa mudada pelo tempo e tornada lucidamente clara pela sua passagem, uma coisa com a qual se continua a conviver, na qual se entende o que significa estar vivo. Isto é, uma maneira de aprender a tropeçar. Esta ideia talvez explique porque é que, já depois do suicídio de Nora Mitrani, Alexandre O’Neill publicou um poema em que lemos:
Passam os anos a caretear...
Com ou sem sorte,
não será tempo de viver, de amar,
de resistir à morte?[7]