COMO CITAR:
Furtado, Maria Rita. «Isabela Figueiredo, A Gorda». Forma de Vida, 2017. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0079 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0079
Maria Rita Furtado
Ao abrir A Gorda, o primeiro romance de Isabela Figueiredo, além de epígrafes que poderiam ser consideradas comuns, na medida em que são excertos de textos, deparamos com uma «epígrafe sonora». Tal epígrafe não consiste em citações de letras de músicas, como se poderia esperar, mas antes numa lista de nomes de artistas e de títulos de músicas, ordenados cronologicamente. A lista é tão variada que não pode deixar de surpreender: ver nomes como Lou Reed e Ornatos Violeta ao lado de Abba e Amor Electro não é coisa habitual. A primeira curiosidade que o livro despertou foi, portanto, perceber o que faziam «Language is a Virus», de Laurie Anderson, e «Amanhã é Sempre Longe Demais», dos Rádio Macau, na mesma página, uma vez que não parece que a escolha das canções tenha sido acidental. Assim, foi preciso pensar nas letras das músicas e tentar descortinar o denominador comum: quase todas descrevem amores infelizes e todas contam histórias de vidas que ficaram por viver, pelas mais variadas razões. E é disso que Isabela Figueiredo nos fala: da vida não vivida de Maria Luísa, a personagem principal de A Gorda, mas também, e acima de tudo, da vontade que ela tem de a viver.
Passadas as epígrafes, entra-se no romance como se entra numa casa, estando A Gorda dividida em secções cujos títulos correspondem às divisões de um apartamento. Desse modo, Isabela Figueiredo faz-nos percorrer a casa onde mora a sua narradora, levando-nos a conhecer, sem uma ordem particular, a história de Maria Luísa. A primeira secção, «Porta de Entrada», é a única que dispensa apresentações. Todas as outras divisões são acompanhadas de uma descrição que nos indica onde ficam localizadas, se têm luz ou não ou que plantas têm. No entanto, a porta de entrada prescinde de qualquer tipo de explicação prévia porque, além de não ser uma divisão, é aquilo que vemos primeiro quando chegamos a uma casa: é, mais do que o «Hall», um cartão de visita e, embora A Gorda seja o título, a porta de entrada no romance propriamente dito é ter deixado de o ser.
Assim começa A Gorda:
Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo. Ou seja, que arrastava. Foi como se os médicos me tivessem separado de um gémeo siamês que se suicidara de desgosto e me dissessem, no final, «fizemos o nosso trabalho, faça agora o seu e aguente-se. Aprenda a viver sozinha». (p. 19)
«Aprender a viver sozinha» é aprender a viver sem a muleta da gordura, é aprender o que é não ser vista como gorda, é aprender a viver sem os pais, que sente muitas vezes como um peso, mas não é, como se verá, aprender a viver sem David, o único homem que amará e que, por mais infeliz que tal amor seja, é a única destas coisas que nunca pesa a Maria Luísa. No entanto, embora a narradora passe por várias aprendizagens / experiências, o leitor fica a saber que «aprender a viver sozinha» não quer dizer aprender a viver sem qualquer tipo de companhia ou apoio, ainda que tal seja muitas vezes sentido de modo negativo. É por isso que, como ficamos a saber logo a seguir à passagem citada, o peso perdido depois da gastrectomia continuará a ser um gémeo siamês mal amputado, que permanecerá com Maria Luísa até ao fim da vida: «Não me tornei invencível. Ainda penso como gorda. Serei sempre uma gorda. […] Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. […] Os aleijados são, como se diz dos diamantes, eternos.» (p. 20) Além do mais, tal como o peso da gordura, também o peso dos pais não desaparecerá totalmente, ainda que ambos deixem de pesar à narradora, como será explicado no final deste texto.
A meio do romance, Maria Luísa explica que «o monstro da fome é um grande amigo quando está saciado» (p.155), indicando que o que o apazigua é, claro, a comida. A seguir, percebe-se que esse monstro não é apenas ter fome; o monstro representa qualquer coisa que ainda não foi vivida (que Maria Luísa ainda não sabe o que é) e que as várias epígrafes anteciparam:
Calhou-me o monstro multicéfalo da fome no interior do estômago, ligado ao cérebro. […] Se tivesse sido logo o que vim cá ser, viveria em paz com o monstro e dormiria com ele, como com um cão. Medito. Remoo. Maldigo. Eu ainda não sou o que vim cá ser. E o que é isso que me espera? (Idem)
Ao longo do romance, Maria Luísa luta com o que julga que a impede de ser o que deveria ser, ainda que não saiba em que isso consiste. Luta com a gordura, mas também com os pais, com as suas expectativas, com o facto de terem sido quem a educou e com o trabalho que cuidar deles lhe dá, quando, em momentos diferentes, ambos adoecem, o que a obriga a regressar à casa a que correspondem os títulos dos capítulos.
Quase cem páginas antes da citação acima destacada, numa conversa com o director do colégio interno que frequenta durante a adolescência, Maria Luísa diz-lhe: «A liberdade e a felicidade dependem uma da outra.» (p. 61) Esta ideia surge de uma sensação de voo que a narradora associa a leveza e à libertação de pesos reais e metafóricos, e que descreve em vários momentos de A Gorda. Maria Luísa sente que voa durante os anos em que trabalha longe dos pais, no Alentejo («Nesses anos antes de […] me ver obrigada a regressar do Alentejo, habitava um sótão em Grândola, no qual […] voltei a voar.» – p.133), e quando é criança («O meu corpo diminuía à razão de 250 gramas por dia, e comecei a ficar leve, quase a levantar voo, como não me sentia desde a infância.» – p. 19). Esta sensação de voo será importante, uma vez que é nesses momentos que Maria Luísa se sente mais próxima da realização, da vida que veio viver.
Como se disse, para Maria Luísa, tornar-se no que veio ser corresponde a saciar de vez o monstro da fome, e saciar monstros é voar e, por isso, sinónimo de liberdade e felicidade. Todavia, à primeira vista, a liberdade só se consegue a partir da libertação definitiva de todos os gémeos siameses. Por isso, Maria Luísa fantasia com a morte dos pais, principais culpados de tudo o que não a deixa levantar voo: «Ser órfã tardia constituía a única salvação ao meu alcance. Se os papás desaparecessem, o meu caminho ficaria livre.» (p. 78) Contudo, quando os pais morrem efectivamente, dá-se um choque violento que causa sentimentos contraditórios:
Fiquei sozinha no mundo como um gato ou um cão, um animal qualquer que é tolerado se se adaptar às regras e as cumprir. Causa medo e ao mesmo tempo é uma liberdade íntima quase sem limites. (p. 176)
E, adiante,
E agora? A mesma pergunta, ciclo após ciclo. E agora? O que me resta sem eles, sem nada por que esperar, a que obedecer, respeitar, cuidar?! Sem amarras, sem âncora, sem desejo de fuga? Como é que se vive?! (p. 178)
É preciso aprender a viver outra vez e testar, por fim, a teoria da dependência entre liberdade e felicidade. Porém, a narradora nota que só retrospectivamente se apercebe da felicidade que o voo metafórico lhe proporciona e percebe que o que importa é passar a reparar na felicidade, no momento em que é feliz, como é dito no capítulo «Quarto de Solteira»: «Estou [ainda] longe de […] compreender que é possível conquistar ilhas de liberdade e gozá-las momentaneamente.» (p. 63) Ora, para a narradora de A Gorda, a dificuldade que temos em perceber que somos felizes no momento em que essa felicidade ocorre (e a que a autora tão bem sabe dar voz) prende-se com o facto de o passado nos moldar e nunca deixar, por essa razão, de existir no presente. Assim, para que se possa agarrar a promessa de felicidade futura, reconhecendo-a quando ocorre, é preciso fazer sentido da infelicidade passada e, nos termos deste romance, isso faz-se falando sobre o que nos aconteceu.
Escreve Isabela Figueiredo, no prefácio à sétima edição de Caderno de Memórias Coloniais (publicado pela Caminho em 2015): «O paradoxo reside no facto de só se ultrapassarem os choques de uma vivência desenterrando-a, revolvendo os seus restos. O tempo silencioso apenas se abstém de produzir ruído.» (p. 8) Para ultrapassar o choque da morte dos pais e o choque da cirurgia, mas também para se manter no amor que sente por David (a que se aludiu no início desta recensão), Maria Luísa tem de, como Isabela Figueiredo, falar. Contudo, como a autora bem diz, a solução encontrada é, no caso dos choques, paradoxal, pois falar sobre eles é «revolver os seus restos» e, portanto, voltar a eles.
Ainda no Caderno, Isabela Figueiredo diz-nos que o seu livro de memórias é uma traição ao pai, de quem tanto gostava, por descrever de modo duro o seu racismo. Para a autora, foi preciso regressar à dor que lhe causara o comportamento do pai, descrevendo-a, de modo a fazer sentido dos sentimentos contraditórios que tivera toda a vida. No entanto, fazer tal descrição de alguém que se ama é, aqui, uma forma de transgressão, ideia recorrente que passa para o romance em análise como inextricável da sua vontade de viver. Porém, leia-se ainda o que se diz no Caderno, quando a pequena Isabela Figueiredo decide vender mangas à porta de casa: «Vender mangas ao portão, escondida da minha mãe, era uma desobediência que não compreendia nem resistia a praticar. Era ser o que tinha nascido.» (p. 70) «Desobedecer» é contrariar os pais, equivale a «transgredir», e é algo que tanto Isabela Figueiredo como Maria Luísa se esforçam por ir fazendo, uma vez que é quando se transgride que se vive a vida que se veio viver.
N’A Gorda, uma das maiores transgressões que a narradora se permite é o namoro com David, um rapaz mais novo e de quem a mãe não gosta, e é, por isso, aquilo que permite voos mais altos a Maria Luísa. É também a única coisa, das que considera que a moldaram, que sente como tendo sido leve e por cujo fim não anseia. No entanto, David e Maria Luísa namoram na faculdade, terminam antes de ela acabar o curso, voltam a encontrar-se numa escola onde ambos darão aulas e tornam a acabar a relação. O fim chega duas vezes e, tal como a morte dos pais e a gastrectomia, é sempre violento. Ao contrário do que se passa com os pais, nem a presença de David (como se disse) nem a sua ausência, são sentidas por Maria Luísa como um peso e, de ambas as vezes que a relação termina, o que fica é uma ligação forte e permanente:
Dir-me-ão que foi uma pena desperdiçar a minha vida esperando por um homem que passou ausente por toda a minha juventude. As pessoas têm sempre resposta fácil, mas eu não podia saber que não viria a existir outro homem para mim. Não digo na minha vida, digo para mim. Era este ou nada. (p. 280)
O facto de ter chegado à conclusão de que a espera por David durante toda a vida não tinha sido uma perda de tempo, é o que permite a Maria Luísa encontrar a solução para garantir que se torne no que veio ser, antecipada em «Porta de Entrada», a propósito do excesso de peso:
Por vezes considero que perdi muito tempo, no passado, desgostando de mim, mas reformulo a ideia concluindo que o tempo perdido é tão verdadeiramente vivido na perdição, como o que se pensa ter ganho na possessão. E volta o sossego. (p. 24)
Assim, a chave para se ser o que se veio ser e, com isso, obter a liberdade desejada, é revolver os restos do passado, ou seja, reviver a violência que são o peso da gordura, o peso dos pais e a frustração de uma relação idealizada. Como se tem vindo a perceber a partir da leitura das últimas passagens citadas, n’A Gorda, «liberdade» não é sinónimo de «libertação» e, tal como parecera ter feito instintivamente com os sentimentos por David, depois de ter perdido os pais e o peso, Maria Luísa deixa de os querer afastar, mantendo-os perto através da história que nos conta. Além do mais, aperceber-se disto é também o que lhe permite, mesmo depois de uma tentativa de deixar de pensar no namorado («Preciso de voltar a viver sem a tua sombra. Já comecei.» – p. 271), continuar a acalentar o desejo de reconciliação. Por isso, quando recebe uma carta de David pedindo-lhe que continue finalmente a esperar por ele e lhe responde, a narradora dirige-se ao leitor dizendo: «não podem imaginar como esta carta e este sonho me alentam, me dão um sentido, me tornam naquilo que vim cá ser» (p. 280). Concluindo, para que Maria Luísa possa ser feliz precisa de se tornar no que veio cá ser, e isso faz-se operando uma transgressão sobre o que a tornara no que tinha sido: os pais, o peso e até o que ela tinha pensado ser a grande transgressão, ou seja, o seu amor por David.
Recensão escrita ao abrigo da Bolsa de Apoio ao Doutoramento da Universidade de Lisboa (Faculdade de Letras).
REFERÊNCIA:
Figueiredo, Isabela. A Gorda. Lisboa: Editorial Caminho, 2016.