COMO CITAR:

Amado, Nuno. «Fernando Pessoa, Obra Completa de Ricardo Reis». Forma de Vida, 2017. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0081 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0081

Nuno Amado

Depois da publicação da Obra Completa de Álvaro de Campos, em 2014, e da Obra Completa de Alberto Caeiro, já em 2016, a Tinta-da-China concluiu no final do ano passado a trilogia das obras integrais dos três principais heterónimos pessoanos com a Obra Completa de Ricardo Reis. De acordo com os editores, Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, os propósitos desta edição eram os de dar a ler «um Reis mais bem decifrado, mais completo e mais diacrónico» (p. 17). Os principais méritos desta edição são indissociáveis destes três propósitos.

Um bom exemplo da importância que a decifração de certos documentos do espólio pessoano continua a ter é a ode «Ininterrupto e unido que o teu curso» (p. 100). A ode encontra-se manuscrita a lápis nas entrelinhas de uma outra ode («Sob estas arvores ou aquellas arvores») e a sua legibilidade não está de modo algum garantida. Parte do esforço editorial desta ode em concreto passa por procurar resolver os problemas de sentido que as transcrições propostas em edições anteriores levantam. Ainda que a proposta desta edição não dispense a discussão, e a releitura de alguns versos seja assumidamente conjectural, tem decerto o mérito inegável de, reconhecendo que a decifração desse conjunto de versos não só não é fácil como depende em grande medida das soluções apresentadas em edições anteriores, problematizar a sua fixação. Outro bom exemplo da forma como esta edição se relaciona com as anteriores, procurando consolidar o que fora feito antes, é a ode «Não batas palmas deante da belleza» (p. 104). Apesar de a ode ter sido publicada logo na edição de 1994 dos Poemas de Ricardo Reis da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, a cargo de Luiz Fagundes Duarte, a versão que agora se publica, manuscrita num documento diferente, esteve inédita até 2007, quando Manuela Parreira da Silva a publicou na 2.ª edição da Poesia de Ricardo Reis da Assírio & Alvim. Assumindo que a versão agora publicada é uma versão posterior e melhorada da primeira (a datação dos dois documentos e o aspecto lacunar evidente do primeiro assim o autorizam), os editores optam por aceitá-la como definitiva, remetendo para nota a versão antiga.

O propósito de apresentar uma obra mais completa concretiza-se, por sua vez, num esforço generalizado de datação dos documentos, na inclusão de alguns inéditos e, sobretudo, na junção da poesia e da prosa de Reis no mesmo volume. A completude, no entanto, não inviabiliza a contenção. Obedecendo a um critério editorial restritivo, que consiste em publicar apenas a versão considerada definitiva de cada ode, os editores optam por não incluir no corpus da poesia do heterónimo várias odes que consideram versões primitivas de outras, remetendo-as para nota. A diferença de estatuto entre versões definitivas e versões preparatórias é, na maior parte dos casos, amplamente justificável, e o critério parece adequado. Há casos, porém, em que a autonomia de uma versão talvez justificasse outro tratamento. O exemplo mais flagrante é o da ode «Jovem morreste, porque regressaste» (p. 402), que é apresentada num anexo às notas da ode XIV (pp. 82-83) do Livro I publicado na revista Athena. A ode em causa é um treno (elogio fúnebre) inacabado a Alberto Caeiro, de Novembro de 1918, e é bem possível que constitua o ponto de partida do grande treno que é a ode XIV, que terá sido trabalhada no final de 1923. O problema é que, à excepção do conjunto de versos que dariam fecho a esta versão, e que passam para o final da ode XIV, o louvor de que Alberto Caeiro é alvo é concretizado em termos completamente distintos. A reciclagem de um grupo de versos inicialmente usados em odes que ficaram por publicar era prática comum do heterónimo, e não assegura por si só que os lugares em que se registam sejam versões da mesma ode. Praticamente metade dos doze versos da versão inicial daquela que viria a ser a ode XII do Livro I (p. 400) foram reaproveitados, quase sem alterações, para a versão definitiva da ode VIII do mesmo Livro I (p. 80). Há, aliás, versos de um heterónimo que são reciclados por outro. Num pequeno texto sobre a inexactidão das frases de Campos (p. 326), Reis parodia a personificação involuntária dada pela ideia do mar a lavar as costas, usada num verso da Ode Triunfal («e o mar antigo e solene, lavando as costas»), mas o verso de Campos recicla, na verdade, o último verso da ode «O rhytmo antigo que ha nos pés descalços» (pp. 57-58) do próprio Reis («do mar lavando as costas»). Mais problemático ainda, no caso da ode XIV, é o facto de haver um terceiro treno a Caeiro (provavelmente uma versão intermédia dessa ode XIV), a que esta edição dá honras de ode autónoma. A ode «Antes de ti era a Mãe Terra scrava» (p. 117) terá sido composta no mesmo mês de Novembro em que a ode «Jovem morreste, porque regressaste» (p. 402) foi composta, e parece aliás derivar, não obstante todas as diferenças, da ideia implícita no primeiro verso da segunda estrofe dessa ode embrionária: «Antes de ti já era a Natureza». Todas as edições se confrontam com problemas deste género, e as decisões nem sempre são fáceis de tomar. No que diz respeito especificamente à decisão de remeter versões preparatórias e variantes de poemas para as notas da versão definitiva, a dificuldade reside, muitas vezes, em distinguir uma versão preparatória de um poema cuja versão definitiva se privilegia de um poema que, apesar de partilhar características com outros poemas, possui autonomia própria. Uma vez que seria impraticável, e nada económico, conceder o mesmo estatuto a todos os pedaços de poemas atribuíveis ao heterónimo, qualquer edição da obra de um autor, mesmo uma edição completa, se vê na obrigação de deliberar, muitas vezes por estipulação, acerca do que deve integrar essa obra e acerca do que deve ficar remetido aos arredores dela. Esta edição não foge a essa obrigação. E, apesar do exemplo, a deliberação geralmente justifica-se.

O terceiro grande propósito desta edição, o de apresentar a obra de Ricardo Reis à luz da sua evolução no tempo, também não se concretiza sem percalços. Desde logo porque a distribuição dos materiais por ordem cronológica não exclui a necessidade de arrumá-los também por géneros literários (poesia e prosa) e, dentro de cada um desses géneros, em pequenos grupos temáticos (odes que fazem parte de um projecto de publicação em 1914, odes publicadas na revista Athena, odes publicadas de modo esparso na revista presença, etc.). Ora, uma das maiores vantagens do critério cronológico, o de preservar editorialmente a proximidade no tempo entre dois ou mais documentos, perde-se se esses documentos acabarem por ficar separados por força dessa necessidade. Um bom exemplo tem de novo a ver com a ode «Não batas palmas deante da belleza» (p.104), pois a recomendação de índole apolínea que a percorre, a de que não devemos reagir com euforia à presença da beleza («não batas palmas deante da belleza / não se sente a belleza demasiado»), devendo pelo contrário contemplá-la calmamente («Calma é a belleza. Ama-a calmamente»), ressurge, reformulada na ideia de que, ao contrário dos pagãos, os cristãos não são lúcidos, sentindo excessivamente a beleza com que se deparam, num texto em prosa intitulado O Regresso dos Deuses (pp. 287-292):

 

Amamos a belleza demasiadamente: os gregos não a amaram assim. Para o seu sentimento passára a calma da lucidez com que viam. Vêr muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente. Porisso pouco sentiam. De ahi a sua perfeita execução da obra de arte. Para executar a obra de arte com perfeita perfeição é preciso não sentir excessivamente a belleza que se vae esculpir. (p. 287)

 

A proximidade inequívoca entre esta passagem e a ode «Não batas palmas deante da belleza» é reforçada, de resto, pela contemporaneidade dos materiais (o texto surge datado nesta edição de cerca de 1914 e a primeira versão da ode é de Julho desse mesmo ano), e merecia pelo menos uma referência em nota. Ainda assim, essa proximidade só seria realmente preservada na edição abdicando da separação entre a poesia e a prosa de Reis, o que decerto prejudicaria a arrumação geral da obra. Seja como for, o exemplo torna claro que o propósito de apresentar a obra à luz da sua evolução no tempo não é exequível sem algumas concessões, e que as necessidades de arrumação dessa mesma obra constituem muitas vezes um obstáculo a tal propósito.

Noutros casos, porém, é o propósito de apresentá-la assim que se constitui como obstáculo de uma arrumação mais eficiente. No texto intitulado «Os deuses: defeza d’elles» (p. 272), Reis refere três faculdades intelectuais distintas: 1) as de «percepção e reminiscência», que trabalham com as «idéas concretas»; 2) as de «raciocínio», que trabalham com «as idéas abstractas»; e 3) as «de ordem imaginativa», que trabalham com ideias «de specie intermedia», que «nem correspondem á realidade, como as idéas concretas, nem, como as abstractas, deixam de corresponder a ella» (pp. 272-273). Esse texto pertence a um grupo de textos (p. 274 e p. 275) cuja proximidade, com uma excepção, esta edição não negligencia. A excepção é o texto que começa «Quando, ha quatro annos quasi» (p. 244), e é nele que a defesa dos deuses iniciada no texto intitulado «Os deuses: defeza d’elles» (p. 272) verdadeiramente se conclui e consuma (note-se, aliás, que Reis não chega sequer a mencionar os deuses nos três primeiros textos). Como se percebe pelo que Reis diz neste quarto texto, os deuses correspondem justamente às ideias de espécie intermédia, nem propriamente concretas nem propriamente abstractas, a que se reportava no primeiro texto do grupo: «os deuses pertencem á categoria das abstracções, no que respeita á sua relação com a realidade, mas não pertencem a essa categoria como abstracções, porque o não são», sendo portanto «reaes e irreaes ao mesmo tempo» (p. 245). Enquanto «abstracções concretizadas», os deuses não servem «para nos conduzirmos entre as cousas», que é aquilo para que servem as ideias abstractas, mas «para nos conduzirmos entre homens» (p. 245). Ao contrário, pois, das ideias abstractas, que têm uma utilidade prática (os exemplos, nos outros textos do grupo, são o da linguagem [p. 273] e o dos números [p. 274]), as ideias de espécie intermédia, às quais os deuses afinal pertencem, têm uma utilidade humana:

 

Não são reaes porque não veem pelos sentidos, por onde nos vem a realidade; mas não são irreaes, porque a sua natureza é análoga á dos objectos que os sentidos nos dão e, quando as empregamos, produzem cousas que são reaes, como quando, inventando um aparelho, uma machina, o executo, e elle passa a ser uma cousa real, e nova, ainda, a dentro das cousas reaes. A imaginação combina o real para o renovar humanamente. A creança que, divertindo-se, sotopõe uma pedra sobre outra pedra, practica um acto semplice de artista, porque, embora sem gosto, combina cousas reaes em a realidade. (p. 273)

 

Privado da relação de continuidade que se estabelece entre esse grupo de três textos e o quarto texto, que aparece deslocado dos outros três essencialmente por razões de datação (e pela vertente narratológica que apresenta), o leitor não fica a perceber que os deuses fazem parte do conjunto das ideias de espécie intermédia, sendo portanto equiparáveis a qualquer outra coisa cuja realidade se deve à acção de combinar coisas reais, como sejam um aparelho inventado ou um grupo de pedras sotopostas. O exemplo serve para mostrar que o propósito de apresentar a obra à luz da sua evolução no tempo deve saber conviver com o propósito inegociável de garantir o mais possível a perfeita legibilidade dessa obra. Salvo as pouquíssimas excepções de que alguns destes exemplos dão conta, esta edição não descura essa convivência. A decisão dos editores em agrupar os textos de Reis destinados a prefaciar a obra do mestre Caeiro, não hesitando nesse caso em sobrepor um critério temático ao critério cronológico, assim o demonstra.

Dos três heterónimos principais de Fernando Pessoa, Ricardo Reis é o menos estudado e o que menos interesse costuma suscitar, tanto entre académicos como nos leitores em geral. É muito possível que a releitura da sua obra propiciada por esta Obra Completa de Ricardo Reis, assim como a completude a que ela se propõe, o ensejo de reorganizá-la em função da sua evolução no tempo e, de modo geral, o rigor e a qualidade com que é apresentada ajudem a contrariar essa tendência.

REFERÊNCIA:

Uribe, Jorge; Pizarro, Jerónimo. Fernando Pessoa: Obra Completa de Ricardo Reis. Lisboa: Tinta da China, 2016.