COMO CITAR:

Graça, Joana. «Judith Butler, Problemas de Género». Forma de Vida, 2017. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0098 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0098

Joana Graça

Existem livros que merecem ser traduzidos e lidos, por mais tempo que passe. Felizmente, Gender Trouble, de Judith Butler, é exemplo vivo disso mesmo. Não só pela extrema contemporaneidade do tema que desenvolve, mas pela seriedade e rigor que este ensaio revela. Assim, passados vinte e sete anos, o livro é pela primeira vez traduzido em português europeu. Problemas de Género, assim intitulado, chega até nós traduzido por Nuno Quintas e com uma introdução de João Manuel de Oliveira, editado pela Orfeu Negro.

Professora de Literatura Comparada e Teoria Crítica na Universidade da Califórnia em Berkeley, Butler doutorou-se em Filosofia na Universidade de Yale, em 1984, e é hoje um dos nomes mais sonantes das teorias queer. Contudo, a grande particularidade de Butler está na convergência entre filosofia e a forma como esta interage com o mundo. Se no primeiro prefácio, de 1990, a autora nos diz que a obra resulta de bolsas de estudo que lhe foram atribuídas, no prefácio de 1999 (de notar que a edição portuguesa possui ambos) Butler confessa que se inspirou no convívio de catorze anos com pessoas homossexuais na Costa Leste dos EUA:

 

Enquanto estava instalada na academia, levava também uma vida fora desses muros e, ainda que Problemas de Género seja uma obra académica, começou para mim como uma transição, sentada em Rehoboth Beach, a perguntar-me se poderia relacionar entre si os vários aspectos da minha vida. Poder escrever num modo autobiográfico, acredito que não altera o lugar que ocupo como sujeito que sou, mas talvez dê ao leitor uma sensação de consolo de que existe alguém aqui (suspendo por ora o problema de que este alguém é dado pela linguagem). (p. 29)

 

Consequentemente, a autora desenvolve o seu argumento revelando astúcia no equilíbrio entre as suas experiências e a academia, resultando num ensaio sólido e intelectualmente honesto. Em momento algum Butler omite a importância destas questões na sua vida privada; porém, nunca sobrepõe as suas opiniões à investigação académica. A força do ensaio advém dos argumentos que a escritora desenvolve, reconhecendo as suas fraquezas, utilizando outros autores sem distorcer os argumentos originais, argumentando contra teses ou argumentos e não contra os seus autores, reconhecendo o valor de argumentos contrários aos seus, utilizando-os ao mesmo tempo que aceita a possibilidade de estar errada. Butler poderia facilmente ter enaltecido os elementos autobiográficos — como é comum a alguém que, por estar inserido numa determinada comunidade, torna o signo igual ao significado —, mas não o faz. Como João Manuel de Oliveira, autor da introdução «Dançar primeiro e pensar depois» e revisor científico desta versão, diz em entrevista ao Observador:

 

Ela não é a filósofa habitual, a figura que pensa o mundo retirada do mundo (…). A Butler é do mundo e está metida no mundo. Não pensou apenas a partir da academia, mas também dos movimentos sociais com que se envolveu na década de 80.

 

Porém, Problemas de Género é um ensaio académico e não foi pensado para o grande público. Além de fazer inúmeras referências a outros autores pressupondo um conhecimento prévio por parte do leitor, Butler recorre a uma linguagem marcadamente hermética. É exactamente pela complexidade e densidade dos seus ensaios (não só em Problemas de Género, mas também em Bodies That Matter e Undoing Gender) que a autora é comummente criticada. Nuno Quintas, também em entrevista ao Observador, refere algumas das maiores dificuldades aquando da tradução deste livro:

 

«Foi um combate permanente: é tão fácil ser-se prolixo [palavroso] em português, e o meu estilo é o oposto. Poderia ter simplificado o texto, mas seria traí-lo. (...) Escolhi o equilíbrio difícil entre a prolixidade e a legibilidade», tendo adaptado passagens em que a tradução «resultaria confusa, atabalhoada ou simplesmente incompreensível.»

 

Contudo, parece-me que Judith Butler não recorre a este estilo semanticamente complexo de forma gratuita. Há uma certa perplexidade, aceite e reconhecida pela autora perante o próprio tema que desenvolve, pois reconhece as inúmeras questões que ficaram e ficarão por responder, ao mesmo tempo que nos revela as próprias limitações da linguagem:

 

Se tornar-se lésbica é um acto, um tirar licença da heterossexualidade, uma autodenominação que rejeita os significados obrigatórios dos termos mulheres e homens da heterossexualidade, o que impede o nome da lésbica de se tornar uma categoria igualmente obrigatória? O que se qualifica como lésbica? Alguém sabe? (p. 256)

 

As frequentes interrogações retóricas parecem estabelecer uma relação com o leitor. Convida-nos a percorrer e a questionar os argumentos de autores como Foucault, Freud, Lévi-Strauss, Monique Wittig, Simone de Beauvoir, Derrida, Luce Irigaray, Julia Kristeva, Lacan, entre outros. No entanto, parece existir uma certa perversidade neste estilo de escrita. Este surge como uma espécie de desculpa prévia para qualquer falha argumentativa futura. Logo, se a autora parece admitir uma determinada perplexidade perante o tema, parece também reconhecer a fluidez deste. Admite então, através da sua escrita, a impossibilidade de responder a todas as questões e de explorar todas as dimensões que o género abrange. Exemplo disso é, aquando da reedição de 1999, Butler rever através do prefácio algumas considerações assumidas, admitindo que se hoje voltasse a escrever o livro daria igual ênfase às pessoas transexuais e intersexo.

O livro divide-se em três partes fundamentais. A primeira foca-se na linguagem e na desconstrução dos conceitos de sexo e género. A segunda explora a ideia de «heterossexualidade obrigatória» e de como esta foi fomentada pela Ciência, em particular durante o século XX. A terceira parte, cuja extensão é relativamente maior, retoma a tensão entre sexo e género, considerando-os performativos. Exploram-se conceitos como o de travestismo e de travesti, que nesta tradução mantêm a terminologia inglesa drag (de acordo com Nuno Quintas, o termo inglês possui «ressonâncias culturais distintas»). A força centrifugadora do ensaio culmina nesta teoria performativa do género que o defende como uma construção, isto é, um produto de acções e comportamentos (um produto de performance). Ao recorrer à figura do drag, a autora demonstra a dimensão performativa do género que está a ser representado e do suposto género «real». Argumenta que os gestos e representações, a linguagem, os códigos comportamentais, a roupa e certos tabus trabalham para produzir o que é entendido como elementos masculinos ou femininos. Logo, quando observamos um drag que utiliza certos maneirismos considerados femininos, percebemos a performatividade do próprio género feminino (não só quando representado por alguém do sexo masculino, mas pela performatividade das acções em si). Butler visa então desconstruir esta noção de uma identidade estável e pré-adquirida, ao mesmo tempo vista como uma extensão do próprio corpo sexual.

É nesta linha de conta que a linguagem adquire um papel fundamental em Butler. Se o género é produto de uma fabricação, também o é a linguagem. Ao contrário da tradição discursiva feminista, Butler desenvolve o seu ensaio sem tentar enunciar um sujeito, por entender que até mesmo o «nós» feminista é uma construção performativa:

 

The foundationalist reasoning of identity politics tends to assume that an identity must first be in place in order for political interests to be elaborated and, subsequently, political action to be taken. My argument is that there need not be a “doer behind the deed”, but the “doer” is variably constructed in and through the deed. [1]

 

Consequentemente, a linguagem utilizada pela filósofa ultrapassa qualquer padrão linguístico, porque nem a gramática nem o estilo são completamente neutros. Como João Manuel de Oliveira explica:

 

Descrever é já produzir um determinado sujeito. Quando se diz a uma menina que ela é muito feminina, está-se a construir, e a constranger, o que a menina vai ser. Não é apenas este discurso que contribui para isso, há outras estruturas sociais que o fazem. A ideia de ‘gay’, para a maioria das pessoas, incluindo muitos homossexuais, aponta para uma certa pertença a uma classe social, uma certa inserção racial, um certo capital económico. Mas há muitos gays que não são isso e, eventualmente, a palavra não esgota a possibilidade de serem outras coisas ao mesmo tempo. A Butler demonstra isso a partir da categoria ‘mulher’. Ela desconstrói a ideia de mulher, vem dizer que se trata de uma construção do discurso. Discurso não são apenas as palavras, são as instituições, desde logo o Estado, que geram representações.

 

Problemas de Género é um ensaio pós-modernista que refuta qualquer tipo de assunções simplistas em relação à identidade feminina. Butler quebra qualquer tipo de categorização binária, seja ela entre homem e mulher ou entre sexo e género. Ao transpor estas barreiras, a autora revela a artificialidade do discurso patriarcal hegemónico, ao mesmo tempo que denuncia as falácias da tradição discursiva feminista (tradição essa que era representativa de posições históricas, sociais, económicas e geográficas particulares). Um livro intelectualmente desafiante que, apesar da sua densidade, deve ser lido e relido. Com este ensaio, Judith Butler convida-nos a repensar na forma como vemos o mundo e os outros, ensinando ao mesmo tempo a importância de sermos intelectualmente honestos.

 

[1] Judith Butler. «Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity». In Mary Eagleton, Feminist Literary Theory: A Reader, Malden, MA: Wiley-Blackwell, 1997, p. 367.

REFERÊNCIA:

Butler, Judith. Problemas de Género. Lisboa: Orfeu Negro, 2017.