COMO CITAR:

Gomes, Gonçalo. «R. W. Fassbinder, Die Hhe der Maria Braun». Forma de Vida, 2018. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2018.0083 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2018.0083

Gonçalo Gomes

 

The most political decision you make is where you direct people’s eyes. In other words, what you show people, day in and day out, is political... And the most politically indoctrinating thing you can do to a human being is to show him, every day, that there can be no change.

Wim Wenders

 

 

Serão poucos os pontos altos da carreira de Fassbinder que apresentem um carácter tão incontornável quanto Die Ehe Der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun), filmado entre Janeiro e Março de 1978 e exibido pela primeira vez, de forma não oficial, no Festival de Cannes nesse mesmo ano (onde estava também em competição Despair), numa estreia anterior à do Festival de Berlim, em Fevereiro de 1979. Maria Braun tornou-se no filme mais triunfante de Fassbinder, tanto crítica como comercialmente. Contabilizou milhões de Deutschmarks na bilheteira alemã, valores bastante altos nos Estados Unidos, e esteve durante um ano em exibição num cinema prestigiado em Paris. Além de tornar Fassbinder numa estrela internacional, Maria Braun tornou-se um dos filmes chave do Novo Cinema Alemão, no centro do círculo que se preocupava em dominar o passado nazi, para onde contribuíam, entre muitos outros, Margarethe Von Trotta, Jutta Brückner, Helma Sanders-Brahms, Volker Schlöndorff, Hans-Jürgen Syberberg e Wim Wenders. 

Contudo, a criação de Maria Braun foi uma das experiências menos felizes na vida de Fassbinder. Peter Berling refere-se à mesma como «um dos episódios decisivos na vida autodestrutiva de Rainer».[1] Este foi um processo envolto em ironias, onde a sugestão de que todo o argumento teria sido escrito como uma alegoria à vida e ao trabalho do realizador apenas é colocada de parte pelo distanciamento e pela perspectiva histórica. No final da produção, demasiado preocupado com as preparações para Berlin Alexanderplatz, a vontade de filmar de Fassbinder já não existia.

A importância de Hanna Schygulla para o sucesso do filme é inegável: sem Schygulla como figura central, a concepção da obra seria impensável. Com Maria Braun, a actriz tornou-se um ícone e um emblema muito maior do que o seu papel ficcional, superando todas as outras vezes que apareceu nos ecrãs. É justamente isso que faz de Hanna Schygulla uma estrela e a coloca na posição de líder feminina de Fassbinder, deixando para trás as falhas e rupturas na relação profissional entre ambos. Quando o jornal alemão Westfälisches Volksblatt encabeçou Maria Braun como o filme que «trouxe as pessoas de volta às salas de cinema» (10 de Outubro de 1979), deixou Fassbinder mais perto do seu sonho de fazer um filme de Hollywood alemão. Apesar da sua popularidade, o júri de Berlim decidiu que não lhe atribuiria o Urso de Ouro em 1979. Lançado nos Estados Unidos no mesmo ano de Die Blechtrommel, de Volker Schlondorff (premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro), estes dois filmes estabeleceram o Novo Cinema Alemão como uma marca internacional, assegurando que este fosse lembrado como um período histórico que analisa de forma crítica o legado fascista do período do pós-guerra.

A forma mais simples, mas não menos exaustiva, de explicar o sucesso comercial de Maria Braun prende-se com a presença de uma estrela e de uma história, contrariando a maioria dos filmes do Novo Cinema Alemão. É uma história contada de forma coerente e consecutiva. O espaço cronológico é claro e os contextos histórico e económico são explicitamente indicados. É o ano de 1945 e Maria Braun, casada em 1943 com Hermann Braun, espera que o marido regresse da guerra. Quando um amigo libertado de um campo de prisioneiros de guerra reporta a morte de Hermann, Maria inicia uma relação com um soldado negro americano, que se encarregaria financeiramente de si e da sua família. Numa noite em que os dois tinham relações, Hermann reaparece e Maria, após uma luta entre ambos e numa tentativa de ajudar Hermann, mata intencionalmente o soldado negro com uma garrafa de vidro. Hermann dá-se como culpado do homicídio e é sentenciado a cumprir pena de prisão. Maria mantém uma amizade com um homem envolvido na indústria, Oswald, progredindo numa carreira como sua assistente pessoal e eventual amante, nunca negando a sua lealdade para com Hermann. Após cumprida a pena, Hermann, demasiado orgulhoso para regressar para Maria, parte para o Canadá. Maria, agora parceira de Oswald na empresa e no auge do seu sucesso profissional, sofre uma depressão e procura refúgio no álcool. Pouco tempo após a morte de Oswald, Hermann regressa de vez. Confusa mas simultaneamente radiante, quando se prepara para finalmente dar início ao casamento que tinha vindo a imaginar há mais de uma década, Maria é interrompida pela secretária de Oswald, que lhe pede que leia o seu testamento. Para desconhecimento de Maria, os dois homens tinham feito um pacto em que Oswald poderia disfrutar da companhia de Maria até à sua morte na condição de Hermann se manter à distância. Em contrapartida, Hermann e Maria seriam os seus herdeiros. Ainda a inteirar-se de todas estas notícias, Maria dirige-se à cozinha para acender um cigarro; tendo-se esquecido de desligar o gás, causa uma explosão que destrói a casa e mata ambos. Simultaneamente, ouve-se uma emissão de rádio em que se proclama a vitória da Alemanha Ocidental no Mundial de futebol de 1954 frente à Hungria.

Maria Braun é, então, o filme mais «clássico» de Fassbinder: existe um foco dramático, uma heroína e um caminho assumidamente reconhecido de altos e baixos, bem como uma narrativa que progride através de uma série elegante de repetições e simetrias. De forma genérica, podemos falar num melodrama, mas a sua estrutura permite acrescentar-lhe um carácter moral. Maria Braun oferece ao público a familiaridade que encoraja a identificação com as ambições, objectivos e desilusões da heroína. Ao mesmo tempo, existe um mistério que rodeia o final ambíguo de Maria. A retrospectiva recai sobre as intenções de Maria: se a explosão foi um acto intencional da sua parte ou um mero acidente, se sempre suspeitou do acordo entre Oswald e Hermann, se necessitou que Hermann se ausentasse de forma a manter o seu amor por Oswald «verdadeiro». Estas ambiguidades conduzem a audiência a especular sobre o significado mais profundo da história sem a deixar num estado confuso, provando que a ambiguidade com motivações estruturais pode tornar um filme produtivo na mente do espectador.

O estilo e a narrativa de Maria Braun não restringem a obra a uma leitura realista e convencional, mas também não a exigem. Tomar o filme na sua literalidade melodramática como a história de uma mulher que tem vários relacionamentos e, quando finalmente consegue aquele que sempre quis, tudo acaba, é uma leitura possível e aceitável. Outra forma de compreender a narrativa prende-se com o seu carácter metafórico: Maria Braun representa a Alemanha e toda uma geração do pós-guerra. O envolvimento com um soldado negro e americano é a ruptura total com o passado do nacional socialismo, e a explosão compreende um significado alegórico, levando a questionar se este seria o destino de toda a Alemanha e não apenas o desta mulher. A simetria e a repetição funcionam como símbolo da história da Alemanha do pós-guerra, com as mudanças aparentes de um regime para outro, de um chanceler (Hitler) para os chancelers da Alemanha Federal como Adenauer, Erhard, Kiesinger e Schmidt, a provocar um encolher de ombros nos alemães. Resumindo Maria Braun, Wilhelm Roth escreve: «Os pequenos burgueses alemães de 1930, 1955 ou 1975 são idênticos. A Alemanha é um país no qual nada muda, no qual a oportunidade de 1945 foi desperdiçada.»[2]

As indicações que sugerem que a Alemanha é mais do que um segundo plano ou um cenário são claras: o país torna-se central no momento em que o retrato de Hitler se desfaz. Neste momento, e à semelhança de outros símbolos narrativos como a bandeira americana, um chocolate da marca Hershey ou um maço de cigarros americanos, a atenção é sempre direccionada para a função simbólica dos objectos. Quando Maria se refere a si própria como «a Mata-Hari do milagre económico», não está apenas a referir-se directamente à sua posição no filme, estando também a aludir à natureza metafórica do seu papel. Estes factores ajudam a realçar um ponto óbvio neste filme: a centralidade desta personagem feminina em 1978 como um sinal do Zeitgeist, e não apenas na Alemanha. A mistura de feminilidade e independência representadas por Hanna Schygulla tornam-na uma heroína activa e que quer estar no controlo; o foco emocional no sofrimento como vítima da História e das consequências da guerra servem como factor de credibilidade, encarnando o romantismo numa história de amantes ausentes, de saudade e de esperança.   

Maria Braun é a inspiração das mulheres jovens dos anos 70 de qualquer parte do mundo; é a recordação da perda da juventude e da independência para uma geração mais velha de mulheres alemãs, a queda e o enterro de um passado traumático que teima em desaparecer. Maria Braun é, possivelmente, a pessoa mais importante para a geração alemã do pós-guerra.

 

[1] Em entrevista, Michael Ballhaus diz que Michael Fengler teve de chantagear Fassbinder para que filmasse Maria Braun (in Juliane Lorenz, 1995, Das ganz normale Chaos, Berlim: Henschel, 139-142 e 203-206). Na versão de Peter Berling, Fassbinder filmou Maria Braun à pressa, de modo a preencher um espaço de seis meses antes de iniciar as filmagens de Berlin Alexanderplatz (Robert Katz, 1987, Love is Colder than Death: The Life and Times of Rainer Werner Fassbinder, Nova Iorque: Random House, 132-134.

[2] Em «Kommentierte Filmographie», in Peter Jansen, Wolfram Schütte, 1992, Rainer Werner Fassbinder, Frankfurt: Fischer Taschenbuch, 216.

REFERÊNCIA:

Fassbinder, R. W., realizador. Die Ehe Der Maria Braun. United Artists, 1979. 2 hr.