COMO CITAR:
Uribe, Jorge. «Elena Ferrante, Escombros». Forma de Vida, 2018. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2018.0086 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2018.0086
Jorge Uribe
Quando La frantumaglia, traduzido em Portugal pela Relógio D’Água com o título Escombros, foi publicado pela primeira vez, Elena Ferrante era um nome de escritora conhecido sobretudo em Itália. Corria o ano de 2003 e tinha dois romances publicados, ambos acerca de mulheres nascidas em Nápoles que enfrentavam experiências traumáticas — o suicídio da mãe e o divórcio, em cada caso. Essas experiências desafiam a autoperceção destas mulheres e submetem-nas a laboriosas viagens de reconhecimento e reconstrução. O estilo de Ferrante é inconfundível: ligeiro e rápido no fluxo narrativo; incisivo e autocomplacente no aprofundamento de emoções e imagens perturbadoras. Trata-se de uma mistura incomum de objetivismo irónico e intrusão melodramática, que tem cativado leitores no mundo inteiro.
Após a publicação de L’amore molesto (1991), primeiro romance prontamente levado ao cinema por Mario Martone, a autora declarou a intenção férrea de conservar a sua pessoa longe das câmaras e dos eventos sociais. Porém, imediatamente ficou claro que essa vontade não seria transferida à sua escrita. Desde o começo, o gesto de rejeição da publicidade tem sido amplamente publicitado. A L’amore molesto seguiu-se I giorni dell’abbandono (2002), também levado ao cinema, desta vez por Roberto Faenza. Ferrante fez esperar os leitores mais de dez anos por um segundo livro, e ambos os romances foram êxitos de vendas. Perante os reconhecimentos, a resposta de Ferrante, até agora, tem sido sempre a mesma: de recusa e por escrito. Em 2006 foi publicado La figlia oscura, seguido da estranha fábula infantil La spiaggia di notte (2007), ambos formando um díptico temático. Entre 2011 e 2014 surgiram, de maneira serial e ao impressionante ritmo de um por ano, os quatro grossos volumes de L’amica geniale, também conhecida por «tetralogia napolitana», que conta como Elena Greco redige a biografia da sua amiga desaparecida, Raffaella Cerullo, intricando os fios de ambas as vidas para tecer a sua própria autobiografia. Esta obra consolidou a reputação de Ferrante como fenómeno de grande impacto internacional, e espera-se, ainda em 2018, uma série televisiva da responsabilidade da HBO baseada na estória das duas amigas. Ferrante também assumiu, no presente ano, uma colaboração com o jornal The Guardian, e tem já publicadas mais de uma dezena de colunas sobre vários assuntos.
Este resumo serve para ilustrar o caráter paradoxal da repugnância de Ferrante pelo olho do furação mediático. O jogo de exibição/ocultamento torna-se evidente e provocador. Se bem que a autora rejeita converter-se em figura pública, o trabalho de posicionamento do seu nome e da sua obra no plano comercial internacional tem sido veemente, ambicioso e surpreendentemente bem-sucedido. Nessa linha, Ferrante tem concedido numerosas entrevistas, nas quais reflete sobre aspetos relacionados com o seu modo de escrever e de entender a literatura. Disso depreende-se que, embora Ferrante insista que «os livros não precisam dos seus autores para nada, depois de escritos» (p. 12), o objetivo confunde-se com uma cuidadosa filtragem daquilo que é comunicado ao público: uma composição seletiva da voz autoral, que ao invés de se refugiar no silêncio se esforça por surgir nos seus próprios termos, cuidadosamente urdidos.
La frantumaglia é, nesse sentido, um livro sobre autoria, que coloca num primeiro plano precisamente aquilo que é suposto os outros livros descartarem. Trata-se de um gesto de posicionamento do autor ao lado da sua escrita: um ato de demarcação, no qual Ferrante reconhece que todos os seus livros são intimamente semelhantes e quase repetitivos, como variações à volta de uns poucos temas — a mãe, o desaparecimento, Nápoles, o suicídio, as bonecas, os vestidos, a escrita. O livro foi republicado em Itália em 2016 e passou de aproximadamente 200 páginas para quase 400, juntando materiais desenvolvidos entre as duas publicações que se debruçam sobre os livros publicados nesse intermezzo — é esta última versão que a tradução portuguesa segue. Nele dão-se a conhecer as várias respostas de Ferrante a entrevistas de meios de comunicação italianos e internacionais; a correspondência com os realizadores que adaptaram os seus romances; as cartas com os seus editores; as respostas a leitores; e pequenos esboços de artigos e ensaios com temas que vão desde uma profética visão da vitória de Donald Trump a partir da figura de Silvio Berlusconi, até à identidade de género de Madame Bovary, personagem vista como ventriloquismo masculino duma voz feminina.
Não surpreende que muitas das perguntas que os leitores dirigem a Ferrante estejam relacionadas com a sua decisão de «não dar a cara», ou de não o fazer do modo que eles o esperam. A essas reclamações a autora responde, sempre de modo cortês, ainda que muitas vezes zombeteiramente, que a identidade de um autor vale pelo que os seus livros fazem dela. Visto de qualquer ângulo, em La frantumaglia Ferrante fala de si, com um compromisso explícito não assumido em nenhuma outra das suas obras. Por isso, a pergunta apresenta-se inevitável: esta escrita constitui um «fora da obra», uma espécie de intervalo da construção da identidade que a própria autora declara acontecer na ficção? Os leitores cativados pelo sortilégio questionam a autora nas suas cartas, uma e outra vez, a respeito de um aspeto que lhes tira o sono: a possibilidade, há anos contemplada, de que por trás de Ferrante esteja na realidade um homem ou mais de uma pessoa. O conteúdo polémico desta possibilidade incide, principalmente, sobre a autenticidade de La frantumaglia, o único livro que se apresenta como tendo uma participação da nossa realidade, mas estende-se, projetivamente, a toda a ficção da autora. Isto leva-nos a intuir, como o fez Rebecca Falkoff, que muitos leitores sentir-se-iam traídos se Ferrante fosse na verdade um homem, o que sublinha a importância de uma suposição autoral que a figura de Ferrante aparentemente rejeita, mas que afinal revivifica dramaticamente. Parte do fascínio causado pela sua escrita parece depender da suposição de uma autêntica voz feminina, que não só habite a sua obra, mas que é também exigido que a anteceda.
A hipótese do engano, da menzogna, ameaça os leitores e empurra os críticos a especular acerca da honestidade e coerência espectáveis num autor que se diz barthesianamente suicida. À pergunta sobre o seu sexo, Ferrante responde com frases evasivas:
Obviamente, a diferença entre os sexos é decisiva, eu sei que os meus livros não podem ser senão femininos. Mas também sei que não é concebível um absoluto feminino (ou masculino). Somos ciclones que arrastam fragmentos das mais diversas proveniências históricas e biológicas. Isso faz de nós – e ainda bem – aglomerados em movimento num equilíbrio sempre precário, incoerentes, complexos, impossíveis de reduzir a um esquema sem que muito, muitíssimo, fique de fora. (p. 204)
Em contraste, é notável a maneira cortante e decisiva com que a autora rejeita as insinuações acerca da possibilidade de os seus livros serem escritos por pessoas diferentes: «Eu, para satisfazer a sua curiosidade só posso garantir-lhe uma coisa: julgue os meus três livros como quiser, mas, para o bem ou para o mal, todos eles são obra minha» (p. 198); ou, confrontada com a questão do anonimato: «Os meus livros não são anónimos, todos têm na capa o nome do autor e nunca precisaram do anonimato. Aconteceu simplesmente que os escrevi e depois, fugindo à prática editorial comum, os pus à prova sem qualquer patrocínio. Se houve algum vencedor, foram eles. É uma vitória que confirma a sua autonomia» (p. 229). Segundo isso, «Elena Ferrante» corresponderia, garante-nos a mesma voz advogando em causa própria, a uma entidade única e autêntica, responsável pela escrita de toda a sua obra. Eis aqui uma justificação da existência de La frantumaglia, o livro que amarra todos os outros, mas que, porém, não consegue ou não quer dissolver a suspeita de um possível engano ou, pelo menos, de uma condescendência anómala no que diz respeito à mentira.
Este último ponto constitui um segundo eixo temático das respostas de Ferrante, que poderão resultar sugestivas para alguns leitores: «Na ficção literária é preciso sermos sinceros até ao insuportável, senão o resultado são páginas ocas» (p. 75); «O ideal para mim seria conseguir obter, com respostas breves, o mesmo efeito da literatura, isto é, orquestrar mentiras que dizem sempre, rigorosamente, a verdade» (p. 69); «Quanto à mentira, bem, tecnicamente a literatura é isso, é um produto extraordinário da mente, um mundo autónomo feito de palavras, todas elas empenhadas em dizer a verdade de quem escreve» (p. 231). Para Ferrante, a verdade da escrita também está fortemente associada ao efeito e ao resultado de um comércio particular entre o autor e os seus leitores, que em sentido analógico reconfigura a origem daquilo que é dito. Como já apontou Marcello Sacco, falando da proximidade entre a obra de Fernando Pessoa e a de Ferrante, ante elas temos a impressão de presenciar um trabalho expositivo com um destino claro no leitor, mesmo quando se apresentam como confessionais e intimistas.
O sentido profundo do termo frantumaglia, palavra alheia ao italiano standard e que talvez por isso seria melhor não traduzir, está relacionado com a transmissão da interioridade ao público:
A minha mãe deixou-me um vocábulo do seu dialeto, que usava para dizer como se sentia quando era puxada para cá e para lá por impressões contraditórias que a laceravam. Dizia que tinha escombros dentro dela.[1] Os escombros deprimiam-na. (...) Era o termo para um mal-estar que não sabia definir de outra forma, fazia lembrar uma caterva de coisas heterogéneas na cabeça, detritos numa água lamacenta do cérebro. (...) Os escombros são uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços até ao infinito que se apresenta ao eu, brutalmente, como a sua verdadeira interioridade. (...) Os escombros é perceber, com dolorosa angústia, de que chusma de coisas heterogéneas erguemos a nossa voz enquanto vivemos, e em que chusma de coisas heterogéneas ela está destinada a perder-se. (pp. 94-95)
La frantumaglia apresenta-se como encenação do diálogo entre o autor e o leitor, implícito na ficção, mas também é a mise en abyme das fronteiras que os separam. Nela, o leitor é literalmente inserido na trama. É por meio deste livro que a obra de Ferrante se revela participante do jogo-sério da literatura, malabarismo virtuosístico de identidades. Este estranho volume, parte confissão, parte arquivo cheio de material «inédito», é um «olhar fendido»[2] para um ateliê da escrita onde o mundo se dissolve e torna a surgir literatura.
[1] Em italiano, o substantivo singular la frantumaglia, enfatiza o sentido indefinido — unidade precária do múltiplo — que a palavra implica e que justifica a detalhada caracterização aqui citada. La frantumaglia oscila entre uma coisa líquida e aérea, reunião de matéria heterogénea que a palavra «escombros» solidifica. Na obra de Ferrante também aparecem espalhadas, em momentos decisivos das narrações, as palavras «frantumare» e «frantumi», o qual constitui um desafio talvez irresolúvel para os tradutores em qualquer língua. (Nota minha.)
[2] Cf. Abel Barros Baptista. 2010. «De espécie complicada», em De espécie complicada. Ensaios de crítica literária. Coimbra: Angelus Novus.
REFERÊNCIA:
Ferrante, Elena. Escombros. Trad. Margarida Periquito. Lisboa: Relógio D'Água, 2016.