Tiago Ramos*
Em 1543, Andreas Vesalius publicou De Humani Corporis Fabrica, um atlas anatómico que contribuiu para o avanço da medicina e para a institucionalização da prática da dissecação, na época um exercício proibido pelas ordens religiosas europeias. O compêndio está dividido em sete livros, cada um dedicado a uma parte do corpo humano, como sejam o sistema digestivo ou circulatório. O texto é acompanhado de xilogravuras que representam a parte do corpo alvo de investigação. No entanto, embora as gravuras tenham o desígnio científico de retratar o interior do corpo humano tal como este nunca tinha sido retratado, as ilustrações de Vesalius também têm uma preocupação artística. As representações são adornadas de elementos paisagísticos e os corpos são ilustrados em poses simbólicas. Esses traços não possuem qualquer utilidade científica, antes apontam para uma preocupação estética. Então, conclui-se que existe uma união entre o engenho artístico e científico. Sem a conciliação desses desígnios aparentemente opostos a obra de Vesalius não existiria com os contornos que tem, dado que foram os progressos verificados durante o Renascimento, no que à representação pictórica diz respeito, que lhe permitiram retratar o corpo humano com precisão científica.
Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, a dupla que é mais conhecida por ter realizado Leviathan (2012), que ganhou o Grande Prémio Cidade Lisboa na 10.ª edição do IndieLisboa, seguem as pisadas de Vesalius, que citam directamente no seu mais recente documentário, De Humani Corporis Fabrica (2022). A dupla propõe-se a algo semelhante ao empreendimento do famigerado anatomista ao realizar a autópsia de um conjunto de hospitais públicos de Paris. À semelhança do compêndio, o documentário encontra-se dividido em secções, cada uma dedicada a uma especialidade, tal como a cardiologia ou a gastrenterologia. O bloco operatório de cada uma dessas especialidades é o espaço predilecto do corpo dos hospitais documentados pela dupla de realizadores.
Cérebros, olhos, próstatas, pénis, intestinos grossos e colunas são apenas algumas das partes do corpo humano cujas intervenções cirúrgicas são filmadas. Certas imagens foram filmadas pelo equipamento da produção do documentário, ao passo que outra parte do material foi captado pelas câmaras acopladas aos próprios aparatos cirúrgicos. Castaing-Taylor e Paravel, que também são creditados como cinematógrafos, registaram as operações em que as partes do corpo intervencionadas estão expostas. Os operadores de câmara estão tão perto dos pacientes quanto os profissionais de saúde que estão a realizar as cirurgias. Os realizadores não têm pejo de se aproximarem das incisões e dos rostos dos pacientes que jazem anestesiados. A proximidade aos corpos e, em particular, aos rostos das pessoas, muitas das quais em estado comatoso e, portanto, vulneráveis, pode ser considerada inapropriada ou, em última instância, explorativa.
Porém, os movimentos de câmara não são necessariamente motivados pelo desejo sensacionalista de retratar, em grande-plano, o sofrimento dos pacientes. O fascínio dos realizadores reside na matéria, nas suas componentes texturais. Assim, existem tanto planos aproximados de rostos quanto de outras partes do corpo, como acontece quando a câmara fareja uma placenta, tacteia as suas nervuras, viscosidades, procura sentir aquela massa, agora morta, que desempenhou um papel fundamental para gerar vida. Noutras sequências, a câmara dos realizadores reage às situações à medida que estas se desenvolvem, conforme acontece quando a dupla segue, pacientemente, a uma distância quase epidérmica, os doentes com demência que deambulam por uma das alas do hospital.
Quanto às imagens das cirurgias mais invasivas, estas foram registadas pelos próprios médicos, que precisam de câmaras para se guiarem dentro do corpo humano. Desta forma, o laço entre as obras de Vesalius e de Castaing-Taylor e Paravel estreita-se, na medida em que ambas problematizam o estatuto científico-artístico da representação. Estarão os cirurgiões a tratar os seus pacientes e a fazer cinema? Se assim for, para além de espectadores, os cirurgiões são também realizadores. Um dos planos do filme enquadra dois médicos, diante um televisor, a ver as imagens que estão a produzir em tempo real. Nesse sentido, os cirurgiões partilham, em parte, a condição de espectador com aqueles que vêem o documentário. Contudo, existem, logicamente, diferenças entre ambas as experiências de se ser espectador. Ao contrário de nós, os cirurgiões são espectadores que participam na realidade representada pelas imagens que estão simultaneamente a ver e a realizar. De outro modo, não lhes seria possível executar as intervenções cirúrgicas.
Os planos mais impressionantes do documentário são precisamente aqueles filmados no interior do corpo humano e, ainda assim, os médicos não são creditados enquanto cinematógrafos. Devê-lo-iam ser? Ao transporem estas imagens do bloco operatório para o cinema, a dupla de realizadores questiona o potencial artístico de imagens que são produzidas sem um fim artístico. Castaing-Taylor e Paravel estão particularmente interessados em explorar a plasticidade imagética das entranhas do corpo humano. Certos planos filmados dentro do corpo são de tal modo abstractos que existe um efeito de perda do referente. Paradoxalmente, a sensação é que o corpo é subtraído – tudo o que resta é movimento, textura e cor. Numa dada sequência, uma médica observa as análises de uma mulher que foi objecto de uma mastectomia. As imagens ao microscópio do plasma da mulher, que são projectadas em grande escala numa tela, mostram a quantidade de células tumorais remanescentes. Essas imagens com padrões erráticos, cores espantosas, roxos, vermelhos, rosas, laranjas, essas imagens, aparentemente abstractas, ditam a sobrevivência ou a morte de alguém. Logo, a morte, um mistério desde sempre sondado pela humanidade, e que já foi retratado de um sem-número de maneiras diferentes, pode ser, inesperadamente, representada na forma de belos matizes sem ordem visível.
Noutros casos, a dimensão referencial da imagem é enaltecida, pelo que sabemos exactamente o que está a ser operado, como acontece quando o espectador é confrontado, através de um plano-detalhe, com um olho a ser intervencionado. A retórica de ataque ao olhar do espectador é explicitada nessa e noutras sequências em que somos assaltados pela violência de ver corpos serem retraçados. As imagens filmadas nos diferentes blocos operatórios são entrecortadas com sequências que representam outras secções dos hospitais. Os corredores subterrâneos, que correspondem às entranhas do corpo do hospital, são exibidos várias vezes, por exemplo. A divisão de obstetrícia, bem como as salas de recobro e a morgue, também são filmadas pela dupla de realizadores, o que reforça a união inquebrantável entre a vida e a morte em contexto hospitalar.
Subjacente às sequências que representam os blocos operatórios e os outros departamentos dos hospitais está um discurso que exalta o empenho dos diferentes profissionais de saúde. Existem várias sequências em que ouvimos médicos e enfermeiros, que por vezes se encontram fora do enquadramento, queixarem-se das cargas extenuantes de trabalho e dos sucessivos cortes nos orçamentos dos hospitais públicos. Para além de sugerir solidariedade pela causa dos profissionais de saúde, a inclusão de comentários dessa natureza enraíza este documentário, que de um ponto de vista imagético envereda com frequência pela abstracção, na realidade social pós-pandémica no que ao serviço nacional de saúde francês diz respeito. Assim, embora a reflexão desenvolvida incida, acima de tudo, sobre o laço entre a ciência e o cinema, a dupla de realizadores não ignora totalmente o factor humano e sociopolítico – simplesmente se dá o facto das observações desse pendor serem feitas nas margens.
* ICNOVA
REFERÊNCIA:
Castaing-Taylor, Lucien e Véréna Paravel, realizadores. De Humani Corporis Fabrica. Norte Productions, CG Cinema, Rita Productions - S.E.L, 2022. 1 hr, 58 min.