Miguel Zenha*

Se quisermos escolher o motivo de Lúcialima, «empatia» será uma opção adequada. Ou então, como versões daquele sentimento, dedicação e perseverança. Ora, empatia opera em Lúcialima de maneira particular: não se deixando confundir com paternalismo, dá-se a conhecer como atenção a experiências, hábitos e convicções. Mostra-se desajustado pensar em vilões ou heróis em Lúcialima, o que não significa que as personagens sejam uniformes, planas ou sucedâneas umas das outras. Significa, pelo contrário, que este livro não oferece juízos morais peremptórios, uma vez que não se rege por um ânimo doutrinário demarcado. Lúcialima configura diferenças entre pessoas e contextos — entre experiências ou vivências — se bem que convergindo num traço especialmente saliente: o romance é atravessado por uma certa solidão. No fim de contas, empatia é um modo de lidar com a perda — com o falhanço de algumas crenças fruto do peso exercido pelo passado — sem, contudo, lançar mão de expedientes existencialistas, comiseração ou gáudio boçal. É, por isso, a recusa da mera melancolia, bem como de uma tendência desapiedada e fatalista de olhar para a realidade.

Publicado pela primeira vez em 1983 — e reeditado este ano pela Assírio & Alvim — o romance descreve, por esta ordem e em sequências que se vão repetindo, episódios concretos da vida de Ramos, Mariana Amélia, Eugénia, Lima e Lúcia. No entanto, nenhum deles se conhecerá: vivem no Portugal do antigo regime, se bem que em períodos raramente coincidentes. A narração não é cronológica, uma vez que se é verdade que o livro abre com «Madrugada», situável no 25 de Abril de 1974, vão se acumulando referências misturadas a episódios históricos — e.g., a deposição de Salvador Allende, o assassinato de Humberto Delgado — que indiciam a renúncia da cronologia como organizador narrativo.

Essa primeira parte — o livro conta com mais cinco, «Manhã», «Meio-dia», «Três da Tarde», «Crepúsculo» e «Noite» — contém a apresentação algo sumária das personagens. Mas comece-se por olhar para o primeiro parágrafo de Lúcialima cuja torrencialidade se pode dizer ao mesmo tempo sóbria, porque é eloquente sem ser dogmática, e profusa sem ser redundante — em Maria Velho da Costa sobretudo as descrições de lugares demonstram um admirável registo expressivo, assimilável a uma intimação:

 

A noite vai alta e escura. A terra por debaixo da cidade emana um hausto fresco, os parques e os jardins abertos ao ar, húmidos como as narinas de um gato. Tudo está quieto, espesso sob a pelagem da noite sem estrelas, mas tão-pouco velada. Ou velada lá tão alto que o que resulta é esta quietação da cidade numa treva, um escrínio. Não está frio. Pelas quatro da manhã fez um jorro de vento, um único. Uma pancada de ar marítimo que avançou sobre as ruas baixas e os espaços abertos, cidade acima. A roupa meio seca estalou nas cordas, enfunando corpos, as copas das árvores moveram-se. A maré ia vaza. Empurrados pelo golpe de aragem os detritos estremeceram sobre a babugem suja e brilhante das orlas de cimento e areia parda. (p. 11)

 

Ramos começa por ser caracterizado pelo «desespero», nuance de uma vida que passa ao lado, i.e., sintoma de uma insatisfação que não diz apenas respeito ao que escreve — poemas que servem de fuga ingénua à realidade, vítimas de um confessionalismo confrangedor — mas que é generalizada. A intuição de que algo fundamental falhou e que a sua vida é inconsequente indicam, não propriamente mediocridade, mas uma forma compacta de decepção. A primeira referência a Mariana Amélia dá conta do seu internamento, provavelmente psiquiátrico, e da sua decadência. Marcada por uma educação e um meio castradores — a religião católica é, em Lúcialima, bastante cruel para as mulheres, como de resto Eugénia comprova emblematicamente — a Mariana Amélia não deixa de se fazer justiça ao longo do livro. Ela não foi, ou é, alguém completamente à margem da sociedade. Pelo contrário, Mariana Amélia é dotada de uma capacidade invulgar de examinar o que a rodeia, ou melhor, de pôr em causa o convencionalismo que atrofia e amestra. Como se disse, a religião católica, sobretudo na sua vertente de moral sexual, oprime nomeadamente Eugénia, educada num colégio católico. Mas Eugénia não é redutível a um trauma — sem que com isso se queira ignorar a crítica social e política em Lúcialima — na medida em que é capaz de debelar essa influência daninha precoce. Trata-se então de uma personagem que lida principalmente com a recordação de uma relação amorosa que correu mal, recordação que, no entanto, impulsiona um invulgar espírito de divagação. Quanto a Lima, ele começa por ser notado pela experiência da guerra colonial, que é aqui mais memória do que geografia. Mas Lima é sobretudo influenciado por Laura. A recordação mais viva que Lima tem da guerra é trazida pela relação que teve com Laura, presença que monopoliza toda a experiência da guerra porque é ela que vivifica o passado. Saliente-se que Laura aparece frequentemente em sonhos — o sonho assinala em Maria Velho da Costa uma dimensão especialmente fiável da percepção. Finalmente, Lúcia é uma criança cega, pelo que as primeiras referências que lhe são feitas salientam tacto e olfacto como comparência no mundo dos adultos, no ambiente dos que conseguem ver. Mas Lúcia é, acima de tudo, alguém que usa a memória e a imaginação para reconfigurar a realidade, dando forma a uma curiosidade vigorosa. Para Lúcia, memória e imaginação são maneiras eficazes de conhecer.

Numa primeira análise, as personagens em Lúcialima vivem sobretudo num mundo privado e que se poderia dizer inclinado para o inacessível: encontramo-las frequentemente num ambiente solitário que parece resistir à partipação activa dos outros. Poder-se-ia então ler Lúcialima como elogio, mais do que da solidão, de uma espécie cerrada de isolamento.

No entanto, o exílio emocional, apesar de crucial, é provisório e imperfeito. As personagens forjam uma espécie de recinto de consciência cujo propósito é testar comportamentos próprios e alheios, i.e., constroem uma dimensão mental que ajuíza uma instância considerada problemática: conhecermo-nos ao mesmo tempo que conhecemos os outros. Por outras palavras, Lúcialima invoca algo simultaneamente crucial e ambivalente: como é que uma determinada pessoa se conhece a si mesma e aos outros, ou seja, de que é que precisamos para que possamos falar em algo a que, sem grande precisão, poderemos chamar «intersubjectividade». Articula-se uma duplicação importante que se prende com a relação entre uma perspectiva, se se quiser, auto-consciente e uma perspectiva exteriorizada ou genérica. A questão põe-se porque as duas perspectivas são indissociáveis; ou melhor, tal indissociabilidade é vista como complexa. Quando Eugénia confessa «A minha vida foi sempre pontuada por uma deliciosa relação com as pausas, o interior do silêncio dos interiores e das paisagens, a pulsação que as coisas tomam na ausência de outros, dos outros» (p. 271), observamos a oscilação entre eu e os outros. Procurar momentos a sós não implica a inexistência integral «dos outros». Lúcialima distingue cirurgicamente «individualidade» de «individualismo». Faz então pouco sentido pensar em algo como auto-consciência — ou seria melhor dizermos consciência de si? — sem os outros. Além disso, será precipitado concluir que existe precedência da experiência interior perante a experiência exterior.

Fica, todavia, no ar a dúvida se não será, no fim de contas, o particular a conduzir o colectivo. Ainda assim, o que se verifica é que as perspectivas da primeira e terceira pessoas se implicam mutuamente de maneira indecidível. Na verdade, Lúcialima problematiza sobretudo o teor lento e inconstante da coexistência de ambas dimensões. O mesmo é dizer que não é preservada qualquer dimensão emocional pura. O sujeito não é diluído em categorias mas desdobrado: indivíduo e colectivo coexistem de modo por vezes intricado.

O ponto percebe-se melhor se considerarmos a perda, experiência tida por decisiva. A título ilustrativo, encontramos o momento em que Lima toma conhecimento da morte da mãe: «A outra mão do Velho segura-lhe a cabeça como se quisesse enterrar-lhe outra dor, a da carne em que todas estão, todas as perdas.» (pp. 151-2). Todas as personagens do livro — todos nós — experimentam a perda, que não diz apenas respeito à morte ou ao fim, podendo também ser reconduzida ao fracasso de expectativas, a ilusões perdidas. A perda qualifica a ideia de memória, que é fundamental. É o modo como lidamos com a perda que neste romance ajuda a que a memória densifique a experiência. É na verdade a memória que move a solidão e a individualidade ao particularizar a experiência. Mas memória não se confunde com saudosismo, sendo também um sentimento mais robusto do que a lembrança: como é manifestado por Lúcia, a memória pode servir para reinventar a realidade, para olhar simultaneamente em frente e para fora. Graças a um acontecimento drástico como a perda, a memória está especialmente apta a constituir uma tomada de consciência: apercebemo-nos, e sensibilizamo-nos, da nossa condição, das contingências e factos que compõem a realidade, i.e., despertamos para uma experiência original. Não sem alguma fricção, a memória criada pela perda significa que pertencemos uns aos outros e ao mundo.

Assumir a perda implica não ignorar o lado sombrio das coisas, ou seja, implica valorizá-lo sem que isso signifique resignação —reconsidera-se o passado. Persiste, contudo, a consciência da dificuldade em aliar o sentimento de perda à recusa de resignação, como é exemplificado quando Cândida, que não chega a ser para Ramos mais do que um simulacro de amante, lhe diz «é que é uma emoção tão difícil, a alegria» (p. 252). É esse o desafio que Lúcialima cumpre com distinção: articular uma atenção profunda a nós mesmos, aos outros e ao mundo que não seja nem conformada nem imatura. Reconsiderar o passado tendo ainda para mais em vista um sentimento como a «alegria» não se confunde com um regresso: em causa está a tomada de consciência de que somos mediados e mediadores. Ou seja, pertencemos ao mundo de modo efectivo se descrevermos o passado: em vez de o restituir, importa acrescentar-lhe pontos de vista, novas contextualizações, inseri-lo em histórias que nos interessem. Preservar o passado, como faz Ramos, é infrutífero porque nega a experiência enquanto processo. Daí o papel da memória, que tem a capacidade de transformar o passado, i.e., de pensar a experiência como algo em aberto.

Lúcialima entende a vulnerabilidade humana como modo de compreensão. Como referido, nenhuma das personagens se conhece, pelo que começamos por ter vidas paralelas. Porém, as personagens cruzam-se ao partilharem uma curiosidade impulsionada por um ânimo gregário acentuado. E daí chegamos à empatia enquanto aproximação, i.e., é uma maneira dedicada de dar corpo à distância e à perda sem falarmos em consolo. Numa palavra, empatia consiste numa manifestação precisa de interdependência. O modo com que as personagens inquirem a realidade sustenta uma ideia de contemplação; mas de «contemplação» não decorre nem omissão nem reclusão, mas experimentação. Cria-se uma instância íntima que serve de impulso a um tipo dedicado de sensibilidade.

Nenhuma das personagens tem o que se pode chamar «um final feliz». À excepção de Lúcia, nenhum deles é especialmente bem-sucedido — e mesmo Lúcia assiste à morte do pai num desastre de viação, além de que no seu caso tentar traçar uma linha temporal é ainda mais inútil, já que ela é sempre descrita enquanto criança. Mas na verdade a ideia de «final» é inconveniente. O livro não é um manual de sobrevivência. E também não é conclusivo — não sabemos, por exemplo, exactamente o que acontece a Lima, agora pai e casado, nem a Lúcia enquanto adulta. Mas Lúcialima trata de debilitar questões como essas. Não interessa saber como acaba Ramos, como morre Eugénia. São questões desadequadas porque Lúcialima prescinde de uma discursividade regulada e resolutiva: o ponto não é classificar o que as personagens fizeram — não interessa concordar com — mas acompanhar, ou não, os seus motivos. Interessa permitir-lhes atitudes e intenções. Daí a importância de Lúcia, uma vez que é a que melhor assinala o que é idiomático em Maria Velho da Costa: a solidão enquanto dimensão pessoal, mas não isolado, enquanto dimensão onde se reformulam convicções e emoções, onde a solidão começa por ser a empatia em acção. Solidão em Lúcialima não é manifestação de auto-domínio, mas a esperança que memória e imaginação se aliem para criar oportunidades de aproximação. Lúcia acentua a inadequação de tentativas de adivinhação porque, sublinhe-se, é a única que se mantém criança, algo não confundível com estagnação, mas com hipóteses de alusão, com uma recomposição da leitura.

Assim, apesar de não haver «finais felizes» — na verdade não há «finais» — a sensação que fica de Lúcialima não é a de desmoronamento ou desânimo. Sem ser, por outro lado, a celebração do fracasso, Lúcialima sugere modos expressivos particulares de nos apropriarmos do passado, de o experimentarmos, i.e., de nos recusarmos a encará-lo como intocável e tirânico. «Lucinha abre os braços como o menino e voam agora ambos rasos ao lume de águas negras, mansas, que cintilam até perder de vista» (p. 351). Dificilmente um livro poderia ter uma última frase que fosse tão pouco conclusiva: o que especialmente Lúcia testemunha é a imaginação como faculdade vital e dinâmica. Empatia e memória são, então, aqui uma formulação intensa e reconfiguradora dos sentidos, dos modos de fazer e interpretar literatura, i.e., dos modos de descrever pessoas.


*Doutorando financiado pela FCT (SFRH/BD/143281/2019). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: miguel17@edu.ulisboa.pt.

REFERÊNCIA:

Costa, Maria Velho da. Lúcialima. Lisboa: O Jornal, 1983.