Maria Brás Ferreira*
Mais do que um ensaio sobre a relação — de contornos e ambição evolucionistas — entre o Humano e a Natureza, como num instante preliminar se poderia supor, Ensinar uma Pedra a Falar, de Annie Dillard, recém-editado pela Antígona, numa tradução de Inês Dias, constitui um texto sismógrafo acerca da experiência assombrosa que distancia, mas igualmente coloca numa tensão afectiva-criativa, os dois planos existenciais — entenda-se, plano cultural e natural —, intervalados a partir de um princípio ficcional, por oposição a um princípio metódico-científico. Seria, porventura, algo cínico procurar definir uma totalidade natural com base na experiência que o ser humano da mesma natureza retira, ainda que à primeira reconhecendo o estatuto da primordialidade. E, todavia, parece haver uma pulsão, essa, já referida, propriamente narrativa e ficcional, que impele o sujeito pensante a conceber o meio envolvente como uma dádiva para as suas projecções inventivas, criações imaginárias, ciente dessa invenção posterior, e não apenas como universo secundarizado, conforme a um ponto de vista solipsista, viciado e limitador. São as palavras — e neste livro quase tudo, ou pelo menos o melhor, pertence à ordem texturada da dicção — exemplos pontuais de uma relação imaginativa e, dessa feita, à partida desvirtuada, isto é, sem praticabilidade alguma que não constitua o seu próprio desvio, não obstante por isso mesmo se trate de uma relação vital. Ou para cujo reconhecimento não importa tanto a asserção de uma verdade, mas sobretudo o consolidar, a rimar com essa espécie de liberdade conquistada, da experiência, e desta traduzida em palavras, como memória futurante.
Cientes de que o exercício de ler assinala, antes de mais, o gesto de nos colocarmos à mercê do curso intempestivo de ciclos naturais, incalculáveis e imprevisíveis, poderíamos, com efeito, ler, cindindo-os um por um, estes catorze ensaios segundo dois critérios interpretativos: por um lado, a prática do mundo como um lugar de escrita; por outro, a prática da escrita como parte integrante de um mundo por demais misterioso, aparentemente impermeável a uma colaboração igualitária e/ou a uma verdadeira intervenção no espaço e no tempo por parte da humanidade. Entre um e outro critério — um e outro corredores, apesar de tudo, sensíveis aos que os atravessam — medeia a experiência empírica de um sujeito observador que se dispõe a dizer o que vê, o que o move, fazendo da sua existência um dado anónimo lançado num terreno bastardo, mas nem por isso devoluto e prestável à superficialidade de uma qualquer ânsia autoral, fundamentalmente narcísica.
Não, o lugar é de facto exigente, apela ao rigor de uma passagem, à exactidão dos passos e à recusa da memória como um retorno diligentemente geográfico. Há, neste sentido, um âmago das coisas que sempre escapa e que bem se materializa no nada inicial a que aquela que caminha e escreve deseja regressar; esse «nada, a não ser variações aleatórias de luz na retina» (66), ou a plenitude paisagística tangencial a uma jura de infinito: «Já parti de novo, digo eu. Os dias estão repletos de sentido. Todos os reencontros transbordam de poesia; uma infinidade de sistemas vazios cobre o gelo» (70). A memória, e a escrita, terão de ser mais do que isso. Deve, aliás, desprender-se de qualquer objecto, desfazer-se de todas as delimitações geográficas, as imagens servirão de elogio a esse silêncio cobrado ao excesso redundante (e, note-se, deficiente) da linguagem: «Caminhamos, e um dia entramos no vasto coração do silêncio, onde as terras se dissolvem, os mares se transformam em vapor e os gelos se sublimam sob estrelas desconhecidas. É o fim da Via Negativa, o extremo sombrio onde as encostas do conhecimento cedem e o amor por si só, sem objecto, começa» (72). O começo do amor prende-se com uma ausência de objecto, bem como com a demolição do conhecimento como barreira, e assim sendo a linguagem poderá, quiçá, apontar para a distância de outro caminho a percorrer, ao invés de delinear o mapa de estradas percorridas, potencializando, pois, outras formas de vida, desgarrando-se da configuração estritamente memorialista que a encerra como reprodução de eventos passados. E, com efeito, voltamos ao problema, e sua consciencialização assaz verbalizada por Dillard, da impotência da linguagem, aqui enunciada a partir da velocidade da deslocação da «onda de sombra» da lua, encobrindo o sol: «A linguagem não é capaz de nos dar uma noção desta velocidade - três mil quilómetros por hora. Tinha mais de trezentos quilómetros de largura. Não lhe víamos o fim — apenas as extremidades.» (34)
São, na verdade, bifocais os termos em que a mulher que viaja vai dando nota do que vê, na medida em que a viagem é já o concreto da dúvida catalisadora acerca do destino: para onde se vai, o que vale estar aqui, agora ou, mesmo, onde fica aqui-agora? E, portanto, viajar, testemunhar, implica perder-se, assim, geográfica e acidentalmente avançando:
Perdi-me. Os juncos à minha frente, balouçando-se e desfocando-se no campo circular dos binóculos, estavam translúcidos. Os juncos eram fios de cor que deixavam passar a luz, como células na água. Eram os filamentos amarelos, verdes e castanhos das algas do lago que durante tanto tempo observara num campo ensopado de luz. Os olhos ardiam-me; observava algas que ondulavam numa gota cada vez mais pequena (119).
A dificuldade de fixar a paisagem, de a descrever, e a sua difícil localização — o sujeito da escrita — que está em permanente movimento, não instalam, todavia, a crise, daí resultando um texto avolumado pelo suspense que a pura descrição encerra: seja a descrição de um ser vivo, seja da deslocação dos astros, seja ainda do horizonte, cuja visão possível é a de múltiplas faixas, «ao sabor do acaso» (66), todas elas necessariamente ilusórias, «onde a atmosfera se misturava com a distância» (idem). Caminhando, observando um lago, um ser vivo ao microscópio, ou ainda pela projecção imaginativa, próxima do cinematográfico («vemos o rosto do nosso marido como num filme antigo a preto-e-branco» (29)), de um cenário apocalíptico a atribuir sentido ao eclipse lunar, aquela que viaja dispõe-se inocentemente nos lugares, denunciando — ou procurando reavê-lo artificialmente, pela crença do efeito performativo das palavras, o que inscreve em relação à referida inocência uma posição dilemática incontornável — o desejo de apreender simplesmente o que acontece, tomando o mais pequeno fenómeno, a mais pormenorizada visão, como a eclosão de um corpo renovado, imenso na ordem com que surge no mundo: «Observava a paisagem inocentemente, como uma tonta, como uma mergulhadora pelas profundezas, a brincar no fundo do mar enquanto o ar se esgota» (19).
Numa primeira parte do livro é inviabilizada a hipótese de uma postura passiva do sujeito no meio - um segundo momento do texto afasta-se do exercício deambulatório-observacional para dar lugar a um registo literário mais próximo do diário íntimo, e que amortece o ritmo da leitura com a imprecisa sugestão de uma intenção explicativa sobre o texto precedente —, visto revelar-se o sujeito por um discurso que se afigura natural, imperturbado, parecendo aceitar positivamente o «doce absurdo humano», aliás, reconhecendo-o como um dos ingredientes para os «compromissos entre a sublimidade das nossas ideias e o nosso próprio absurdo» (52). Ora, a aceitação do absurdo não se antagoniza, como apatia, com a participação no meio. É já, e de uma só vez, a versão aperfeiçoada dessa mesma participação, dessa integração mais ou menos harmoniosa, entre o estrangeiro e o peregrino, o caminhante que tem na viagem a forma mais estreita de intimidade, e por isso se trata de uma presença humilde: «Somos estrangeiros e peregrinos, pontos macios nas rochas» (126). A versão aperfeiçoada, tal como anunciámos, da participação do sujeito na tira de espaço-tempo que o compreende e o enforma, é-o enquanto exemplar testemunha da testemunha, saudação do que julgámos tão-só passível de ser saudado. A demanda, de contornos éticos, que Dillard assina por baixo é a de sermos, na cadeia complexa e rica da diversidade característica do universo, os receptores mais elementares, os mais completos, os mais humildes: «Vão e sejam saudados pelos leões-marinhos» (idem).
O absurdo, apanágio do ser humano que está no mundo tão-só de passagem, não se encontra apartado, todavia, de uma presumível harmonia da natureza, que a opusesse ao humano — não obstante, Dillard refere «todo este universo inumano», mas inumano precisamente na medida em que a fenda do entendimento se abre para acolher ou não hipóteses de sentido, para as quais o sujeito pensante se encontra limitado de entre os extremos do território da sua espécie e, ademais, do seu próprio espaço psíquico. De facto, o absurdo é já o resultado do confronto entre o ser humano e todo um dispositivo natural. A natureza detém, sob o olhar do humano, como possível efeito em si inscrito, o absurdo, que passa por compreender a representação de tudo o que não sou eu, ao jeito emersoniano, fazendo da natureza o espelho astuto, na complexidade texturada que em si desvela, da Humanidade. Faça-se, todavia, a ressalva: ser a representação de tudo o que não sou eu não contradiz a hipótese do espelho, porquanto o humano, em todo o caso, parte de uma suposição reflexiva, em negativo é certo, para descodificar o mundo natural. Escreve Ralph Waldo Emerson em «Nature»:
A natureza veste sempre as cores do espírito. Para um homem que trabalha sob o desastre, o calor do seu próprio fogo carrega tristeza. Para mais, há uma espécie de desprezo da paisagem sentido por aquele que acaba de perder para a morte um amigo querido. O céu é menos grandioso à medida que se fecha sobre valor menor para a população. (Emerson, 7)[1]
A correspondência - sem garante de sintonia - entre a natureza e as pessoas não se realiza segundo qualquer pressuposto evolucionista, de projecção positivista, nem tampouco narrativa — porventura, sim, ensaísta —, mas antes na asserção de uma presença ao aberto, justamente a presença da testemunha, tornando-se esta num actor de si mesmo:
Podemos encenar a nossa própria actuação sobre o planeta — construir as nossas cidades nas suas planícies, represar os seus rios, cultivar o seu húmus —, mas a nossa actividade significativa mal cobre o terreno. Não usamos os cantos das aves, por exemplo. Não comemos muitas delas; não podemos travar amizade com elas; não podemos convencê-las a comer mais mosquitos, nem plantar menos sementes de ervas daninhas. Só podemos testemunhá-las - sejam quais forem. (104-105)
Todavia, o exercício de testemunhar, alicerçado numa influência dramático-ficcional, não se encontra linearmente radicado no plano humano. É, antes, uma disposição para o confronto com o estranho, e o estrangeiro, que faz de um e outro planos, territórios eminentemente votados à fantasia e à imaginação. A proposta mais interessante de Ensinar uma Pedra a Falar é aquela, com proporções anti-aristotélicas, de o canal que relaciona humano e natureza ser o da fantasia, da imaginação, da ficção, o que passará pela revelação permanente dos ciclos ditos naturais a uma luz sempre distinta e, sobretudo, a impossível configuração casualista dos fenómenos como oposta a um discurso da razão, propondo algo como uma razão do acaso, antagonizando-se com qualquer lógica causal:
A geografia é a chave, o acidente crucial do nascimento. Um pedaço de proteína pode tornar-se um caracol, um leão-marinho ou um analista de sistemas, mas teve de começar nalgum lado. Não é ciência; é apenas uma metáfora. E a paisagem em que a proteína começa acaba por dar uma forma ao seu fim, da mesma maneira que as taças dão forma à água. (139)
Se este conjunto de ensaios nos presenteia, num primeiro momento, com textos assentes no corpo urdido da sua dicção (com a referência a inúmeras espécies da fauna e flora, bem como designações da astronomia; termos cuja vocalização desperta a língua como corpo de prazer), existe uma segunda parte que se atém — provocando o empobrecimento do texto no seu dizer concreto, material e, daí, indefinidamente secreto — na transposição, por analogia, desses corpos estranhos, de nomes sinuosos, para um universo dito familiar. Os últimos ensaios votam-se, neste sentido, a um impressionismo, cuja expressividade aponta para a tentação de desfazer a distância, primeiramente assinalada, responsável por uma relação imaginativa e potencialmente íntima com os elementos da natureza, isto é, com tudo aquilo que não sou eu. Assim surge, a arregimentar o texto, um princípio discursivo essencialmente metafórico, por meio do qual nos deparamos com o equacionar de fenómenos ditos naturais a partir de trânsitos humanos, da ordem do civilizacional. Formulações como «Albert Einstein e vários astrónomos com telescópio de reflexão e radiotelescópios derrubaram as restantes paredes e o tecto, deixando-nos ao sol, expostos e à deriva - deixando-nos dobras, embora dobras evolutivas, na curvatura do espaço-tempo» (135), ou ainda, «O silêncio é tudo o que existe. É o alfa e o ómega. É Deus a matutar sobre a superfície das águas; é a noite combinada das dez mil coisas, o gemido das asas. Damos um passo na direcção certa quando rezamos a este silêncio, e até quando dirigimos essa oração ao “Mundo”. As distinções esbatem-se. Saiam das vossas tendas. Rezem sem parar» (108). O que de estranho edificava o texto como um lugar a descobrir — na exacta proporção em que é a inscrição de um acidente geográfico —, o corpo, mais do que esquivo, resistente ao conhecimento como premissa axiomática, passa a servir de plataforma de projecções ditas subjectivistas, na medida em que manifestam uma inescapável tentação da narrativa. Com efeito, à teoria de Einstein elabora-se um paralelo a partir da configuração arquitectónica de uma casa, da mesma forma que ao silêncio se apõe a demanda da reza, como nó proto-narrativo, o que significa o corte do silêncio.
A tentação da narrativa e o abuso da metáfora, incontornáveis a partir do ensaio «Um Campo de Silêncio», e que tornam duvidosa a categorização do texto como ensaio — mais justo seria talvez apor-lhe o género do conto —, compreendem um destaque da voz enunciadora, isto é, da eminência do seu estado psíquico particular, na medida do confessionalizável, muito concretamente pela referência a episódios distintivos da sua, ou de uma, história privada, bem como a explicitação da metáfora enquanto transporte de uma imagem para outra: «É como se o próprio Verão fosse uma miragem» (157) (sublinhados nossos), frase que inscreve, de um modo quase escrupuloso, o termo da «miragem» como semântica fundamental do texto que se lhe segue.
O livro abre e fecha com a imagem sugestiva de um véu, de uma obliteração parcial da visão e de uma mudança de panorama — seja da viagem para ver o eclipse, seja do vento a passar e a escurecer as águas do rio —, e tais sugestões imagéticas não deixam de ceder à analogia, no primeiro caso por referência à morte, no segundo ao gesto de correr as persianas de uma janela: «Tinha sido como morrer, aquela descida pelo desfiladeiro» (17) e «A rajada de vento atravessa o rio e escurece a água por onde passa, como um dedo a fechar as ripas de uma persiana» (194). Resta, todavia, uma dúvida. E eis o território desabrigado de que um livro sobre lugares se vale para continuar com mais ou menos ousadias, com mais ou menos esteios e ensaios: saber se o cansaço (em primeiro lugar, do olhar) que uma política fundamentalista da imagem — da narrativa e da metáfora — procura subverter, ou perversamente curar, por substituição, pela projecção de mais e mais imagens, por um lado deriva do texto, denunciando uma sua fragilidade e/ou exaustão que acaba por contagiar o leitor cansado ou, por outro lado, se se trata precisamente de um efeito que o próprio texto elabora em si, sobre nós, leitores, assinalando a limitação e a pobreza que nos acomete, impedindo-nos de seguir lendo a novidade, impossibilitando-nos de, de entre o diverso, riscar o que menos nos apraz, optando por conservar o que é da nossa preferência. Isto é, vergar-se-á o texto a uma lógica simplificada da analogia, ou ele acaba precisamente, e com engenho, por salientar a distância e o cinismo que ora nos afasta do natural (e o natural é aqui tudo o que nos compele à leitura de um outro) ora nos aproxima de um assombro que não é senão miséria sensível e, ela própria, imagética de um lugar habitado?
Bibliografia:
Emerson, Ralph Waldo (1950). The Complete Essays and Other Writings of Ralph Waldo Emerson. Nova Iorque: The Modern Library New York.
[i] «Nature always wears the colors of the spirit. To a man laboring under calamity, the heat of his own fire hath sadness in it. Then, there is a kind of contempt of the landscape felt by him who has just lost by death a dear friend. The sky is less grand as it shuts down over less worth in the population.» (Tradução minha).
* Doutoranda financiada pela FCT (2023.02316.BD). Estudos Portugueses na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: mariabrasmferreira@gmail.com.
REFERÊNCIA:
Dillard, Annie. Ensinar uma Pedra a Falar. Lisboa: Antígona, 2023.