Tiago Ramos*

No prólogo de Letter from an Unknown Woman (Max Ophüls, 1948), Stefan Brand é desafiado para um duelo no qual não tem a intenção de participar. O seu plano é fugir da contenda. Porém, o seu mordomo, John, entrega-lhe uma carta por assinar que o fará encarar as suas responsabilidades. Stefan abre o envelope, retira a carta e antes de a começar a ler lava o seu rosto. Há uma ênfase no gesto de limpar a vista. De seguida, a personagem aproxima-se da secretária e ilumina a divisão em que se encontra, adensando, deste modo, a sequência de acções que figuram a ideia de que Stefan está a preparar-se para vislumbrar o seu passado com clareza. A leitura da carta por parte de Stefan convoca a voz de quem a escreveu. Esta é uma convenção no cinema, a de que a leitura de um documento desponta na mente do leitor a voz de quem o escreveu. A questão é que Stefan desconhece, naquele instante, a identidade da remetente, porquanto a carta não está assinada, o que desestabiliza esta convenção narrativa e confere à voz feminina que enuncia o texto uma qualidade misteriosa. Lisa, a mulher que redigiu a carta e se dirige a Stefan, manifesta-se primeiro enquanto uma voz sem corpo. A sensação é de que as palavras de Lisa, às quais temos acesso por meio da voz-sobreposta, são o murmúrio de um fantasma. As palavras que escreveu confirmam a sua condição fantasmática: «Quando leres esta carta, talvez já esteja morta... Se isto chegar até ti, saberás como me tornei tua quando não sabias sequer quem eu era ou sequer que existia.»[1]

Conforme essa frase deixa entrever, Lisa tem como objectivo dar a conhecer a Stefan a maneira como os seus destinos se cruzaram. Lisa, que nunca foi reconhecida em vida pelo seu amado, reivindica através da carta um estatuto ontológico efectivo na vida dele. Stefan, por sua vez, tenta reconhecer a mulher que o acompanhou, e com quem teve um filho, a partir do momento em que deixou de ter a oportunidade de estar com ela.

A narração de Lisa encerra o prólogo e activa a analepse que constitui a porção maioritária da acção. Como tal, a carta é um objecto dúplice, na medida em que existe enquanto peça que faz parte do cenário e condiciona o comportamento das personagens, mas também enquanto veículo diegético que desponta as imagens que o espectador vê. Portanto, há uma relação de causa-efeito entre as palavras escritas (e narradas) por Lisa e as imagens que representam a forma como o seu percurso e o de Stefan se entrelaçaram. Conforme Stanley Cavell aponta na sua análise, este dispositivo sugere que a parcela correspondente à analepse é enunciada por Lisa e não por um narrador exterior (Contesting Tears, 109).

A carta remete Stefan para o dia em que se mudou para o prédio onde Lisa, que na época contava quinze anos de idade, morava com a sua mãe. A protagonista descreve essa tarde de Primavera como o dia do seu segundo nascimento. No seu entender, as pessoas têm dois nascimentos: o dia em que nascem e o dia em que ganham consciência. O dia em que Lisa ganhou consciência coincide com o dia em que soube da existência de Stefan, um pianista prodigioso que atraía a atenção da cidade de Viena no início do séc. XX. Porém, o dia em que Lisa foi informada de que Stefan se havia mudado para o apartamento vizinho não foi o dia em que a protagonista o viu. Lisa apaixona-se em primeiro lugar pelos arpejos de Stefan ao piano. À semelhança do que acontece no prólogo quando Lisa chega a Stefan de forma mediada, através das palavras escritas na carta, o pianista entra em contacto com Lisa por via dos acordes do piano. Como tal, Stefan também tem uma natureza incorpórea e fantasmática. Enlevada pela música do vizinho, Lisa começa a preparar-se para se unir a ele. Informa-se sobre a história da música clássica e aprende a dançar a valsa. A cena em que Lisa dança sozinha como se estivesse de mãos dadas com Stefan ilustra como para ela o pianista é um fantasma.

Entretanto, o casamento da mãe de Lisa com um cavalheiro de Linz separa a protagonista do seu objecto de desejo. No entanto, ainda antes de partir, Lisa tenta finalmente confrontar o vizinho e declarar-se, mas ao fazê-lo encontra-o com uma outra mulher, algo que não constitui surpresa alguma, dado que Stefan tinha a reputação de ser um mulherengo, um artista debochado mais interessado nos prazeres da carne do que na música. A famosa cena em que Lisa vê Stefan chegar a casa com uma mulher desconhecida mostra que existe, em certos momentos, uma correlação entre o enunciado escrito e imagético. Filmado a partir do topo da escadaria do prédio onde os protagonistas vivem, um plano picado assume uma perspectiva semelhante à de Lisa, sendo que as apreciações que esta faz através da voz-sobreposta nesse instante são corroboradas pelo enunciado imagético. Contudo, nem sempre existe uma congruência entre a realidade representada na carta e a retratada no filme. Por exemplo, depois de a protagonista voltar para Viena aos dezoito anos de idade e começar a trabalhar enquanto modelo numa loja, Madame Spitzer, a proprietária, comenta que Lisa nunca sai à noite depois do trabalho. Lisa confirma na carta que a observação de Madame Spitzer está correcta. A incongruência está no facto do comentário ter sido feito à revelia de Lisa, pelo que é impossível que pudesse estar a par das palavras da patroa. Outros episódios desta natureza podiam ser referidos. Assim, a relação entre o enunciado da carta e o enunciado imagético não é linear. Existem aspectos apresentados no filme que são alheios ao ponto de vista e sensibilidade de Lisa.

Na sequência do regresso a Viena, Lisa e Stefan conhecem-se formalmente pela primeira vez numa noite de Inverno. Conquanto seja o pianista a abordá-la, é Lisa quem procura ir ao encontro de Stefan ao esperar à porta do seu prédio todas as noites. Lisa tem a noite com que sonhara desde o seu segundo nascimento. Stefan e Lisa jantam juntos, vão a um parque de diversões onde viajam pelo mundo fora, ele oferece-lhe uma rosa, e, finalmente, ela sobe ao apartamento do músico, da mesma maneira que tantas outras mulheres. O traço que une as personagens torna-se evidente essa noite. Em primeiro lugar, quando andam num comboio no parque de diversões e imaginam as viagens que podiam fazer. Num segundo momento, ao caminharem por um jardim e idealizarem como este será quando a Primavera chegar. Ambos estão dispostos a trocar a paisagem real pela sonhada.

Em Letter from an Unknown Woman existe uma porosidade entre fantasia e fantasma[2]. Lisa está obcecada pelo pianista desde que era adolescente, sendo que a sua paixão precede o momento em que o viu pela primeira vez. A fixação de Lisa por Stefan pulveriza-o. Para Lisa, Stefan não é um Outro, alguém que tem alteridade, mas sim o reflexo das suas fantasias, um símbolo no qual deposita os seus desejos e sonhos. Nesse sentido, os protagonistas são figuras gémeas, visto que ambos são subjugados pelas suas próprias fantasias. Lisa faz de Stefan uma idealização que reverencia e Stefan procura um ideal feminino inalcançável. As mulheres na sua vida vão-se sucedendo de maneira mais ou menos anónima porque para Stefan nenhuma delas é aquela com quem sonha.

Poucos dias depois da noite que passaram juntos, Lisa e Stefan separam-se porque uns compromissos de trabalho levam o pianista a tocar fora de Viena. Nos meses que se seguem, Lisa descobre que está grávida e dá à luz um menino a quem dá o nome de Stefan. Os anos continuam a correr e, entretanto, a protagonista casa-se com o General Johann Stauffer, que a acolheu apesar de Lisa ter tido um filho fora do casamento.

Lisa volta a cruzar-se com Stefan na ópera, volvidos já quase dez anos desde o seu último encontro. Stefan não consegue identificar a mãe do seu filho, mas conforme as suas palavras explicitam, o pianista reconhece vagamente o rosto de Lisa:

Já te vi em algum lado, eu sei (...) Alguma vez baralhaste rostos como cartas, na esperança de encontrar aquele que está algures no limite da tua memória? Aquele de que estavas à espera? Mas esta noite, quando te vi pela primeira vez, e depois quando te observei na escuridão, foi como se tivesse encontrado esse rosto entre outros.[3]

Poucas noites depois, Lisa volta ao apartamento onde outrora se uniu a Stefan. A visita nocturna é feita à revelia do marido que a observa à distância. O que motiva a ida de Lisa a casa de Stefan é a esperança de que ele a reconheça, o que não acontece. Stefan trata-a como mais uma das mulheres anónimas com quem tem casos amorosos. O pianista menciona, inclusivamente, neste seu último encontro com Lisa, que a sua relação com as mulheres é definida pelo não-reconhecimento: «os gregos construíram uma estátua a um Deus que desconheciam, mas que esperavam que um dia viesse ter com eles. Mas a minha é uma Deusa.»[4] Subentendida está a ideia de que Stefan procura, sem sucesso, a encarnação do seu ideal. Todavia, esta afirmação ecoa a anterior na qual Stefan diz que o semblante de Lisa é o tal. Lisa vive em função de Stefan e presta-lhe culto sem nunca ser reconhecida por ele e o pianista não reconhece que já encontrou a Deusa pela qual procurava. A tragédia no cerne deste melodrama é a incapacidade de reconhecimento.

A carta é o agente que permitirá o reconhecimento. Incapaz de identificar o nome da mulher que lhe escreveu, é o mordomo de Stefan que assina a carta em nome de Lisa. O mordomo, que sofre de uma forma de mutismo, é aquele que tem acesso à palavra e que permite a Stefan reconhecer Lisa. Sem a assinatura da carta, que ficou incompleta porque a protagonista morreu durante a sua redacção, Lisa permaneceria anónima. Durante a leitura da carta, no trecho em que Lisa descreve o parto, o pianista encontra uma fotografia da protagonista e do pequeno Stefan, o filho de ambos. Nesse instante, nada indica que a fotografia de Lisa gera o reconhecimento que procurava. Será apenas o seu nome, a palavra «Lisa», um signo linguístico que a representava, que lhe dará realidade aos olhos de Stefan. Paradoxalmente, é depois da sua morte que Lisa deixa de pertencer ao domínio do fantasma e passa a inscrever-se num plano de existência real na vida de Stefan.

Contudo, além de reconhecer Lisa, Stefan toma consciência de que a história de vida desta é inextrincável da sua: «Quando ele passa a acreditar na narrativa de Lisa, esta serve para reforçar o sentido da sua própria história e, assim, desenvolve a capacidade de se ver a si e a Lisa como sujeitos separados e interligados» (Kinnan, 267)[5]. Daí o pianista responder à carta, que havia sido selada prematuramente pela morte de Lisa, com a sua própria morte, uma vez que comparecer ao duelo significa morrer. Assim, Lisa não só consegue afirmar o seu valor ontológico a partir do além-túmulo, como consegue apropriar-se da narrativa de vida de Stefan, que passa a ler o seu percurso à luz do testemunho prestado por uma mulher que apenas reconheceu depois de morta.

Mencionei que Lisa escreve que toda a gente tem dois aniversários. As palavras que Stefan diz aquando do seu último encontro com Lisa são reminiscentes dessa ideia. O pianista diz-lhe que caso um dia encontre a Deusa desconhecida, a sua vida começará verdadeiramente. Lisa é essa mulher que Stefan havia idealizado, o que significa que a sua vida consciente só começou quando este finalmente a reconheceu. Deste modo, é natural que Lisa tenha agência especial sobre a forma como Stefan encara a sua história, uma vez que é ela a responsável pelo nascimento da consciência que este tem de si. Letter from an Unknown Woman relata a reivindicação de uma mulher morta em ser reconhecida ontologicamente pelo seu amado, tal como retrata a maneira como uma falecida possui um vivo, altera a sua percepção de si próprio, e condu-lo à morte. Ao alterar o curso de vida de Stefan, fazendo-o morrer em nome dela, Lisa consegue escrever o fim melodramático ideal para o seu romance obsessivo.

[1] «By the time you read this letter, I may be dead…. If this reaches you, you will know how I became yours when you didn’t know who I was or even that I existed.»

[2] As palavras têm, inclusivamente, a mesma raiz etimológica. Tanto uma quanto outra advém do termo grego «φαίνω», cuja transliteração para o alfabeto latino é phaínō.

[3]«I’ve seen you somewhere I know (…) Have you ever shuffled faces like cards, hoping to find the one that lies somewhere at the edge of your memory? The one you’ve been waiting for? But tonight, when I first saw you, and later when I watched you in the darkness, it was as if I’d found that one face amongst others.»

[4]«the Greeks built a statue to a God they didn’t know but hoped someday would come to them. But mine happens to be a Goddess.»

[5]When he comes to believe in Lisa’s narrative, it serves to enhance his sense of his own story, and thus he develops the ability to see himself and Lisa as both separate and intertwined subjects.»

* Doutorando financiado pela FCT (2023.04643.BD). Programa em Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Email: a2021145802@campus.fcsh.unl.pt.

Bibliografia:

Cavell, Stanley. Contesting Tears: The Hollywood Drama of the Unknown Woman. Chicago: University Press of Chicago, 1996.

Kinnan, Glynis. “His Story Next to Hers: Masochism and (Inter)Subjectivity in Letter from an Unknown Woman.”, Style, 2001: 258-269.