Guilherme Berjano Valente

O Pior É Que Fica (2023), de José Maria Vieira Mendes, é um livro que tem um prefácio e sete capítulos (cada um é uma peça teatral). Estes, que numa primeira leitura parecem estar ligados, apenas, tematicamente – questões de finitude, de materialidade, etc. –, quando relidos de acordo com a forma apresentada na contracapa – «o livro inclina a literatura dramática para a leitura em voz baixa» –, levam-nos a considerar a obra como um romance, começado com o nascimento de uma frase, prolongado através da sua luta em relação à sua finitude, e terminado num suspiro que a esvazia de dores e complicações.

A frase é-nos apresentada, no prefácio – «Coreografia da frase» (pp. 9-12) –, como uma figura material, com membros que dançam desde o seu nascimento (as palavras). Facilmente percebemos que ela se aparenta com uma pessoa, esticando-se num sofá ou num banco. Ela começa euforicamente em busca do novo, com grandes ambições, crendo na sua infinitude. Contudo, acaba por se aperceber de que depende de algo que lhe é externo: dos olhos de um leitor, da boca de um orador, ou dos ouvidos de um ouvinte. Aqui, ela entende a sua mortalidade, pois quando os órgãos sensoriais dos outros não lhe prestam atenção, ela morre.

O livro é, então, a tentativa da frase se reconciliar com a sua mortalidade ou, como o narrador do prefácio afirma, «a frase não nos ouve terá de fazer o seu luto para aceitar as fraturas […] e fica mais próxima de um relaxamento que lhe pode devolver os dias mesmo sabendo que não será para sempre» (p. 12). As sete peças são um processo de luto antecipado. Nelas, verificamos que existe uma crescente aprendizagem por parte da frase, começando por descrever os seres humanos como pessoas que dependem umas das outras, assim como ela, frase, depende dos olhos de outras pessoas. No princípio, as suas personagens limitam-se a ser batizadas com letras do alfabeto – A, B, C, D –, para depois, no segundo capítulo, serem batizadas com nomes – Chico, Sara, Alberto, Vasco. Depois de batizar figuras fictícias, batiza-se, então, a si mesma, com o nome de Max, várias vezes repetido ao longo da peça. Max acaba por ser, nas histórias em que aparece, uma sobreposição sua, mesmo que o enredo não o dê assim a entender. Segue-se uma narrativa familiar, no quarto capítulo, em que a frase sobrepõe a peça ao seu coração, como se dali saísse o sangue que lhe dá vida. Conclui-se o livro com três capítulos que bombam o sangue que é definido no quarto capítulo, i.e., os valores que o coração apresenta são explorados até que se chegue a um fim.

O luto da frase, ao contrário daquele que se faz dos mortos, não é sobre os outros, mas sobre si mesma. Por isso, a solução que encontra é desdobrar-se em personagens e contar histórias que a auxiliem neste luto, parecendo que as histórias, de alguma forma, nos ajudam a fazer sentido da nossa futura morte. Isto aproxima-a do ser humano, sendo que nós mesmos temos uma tendência para contar histórias dos mortos, de forma a fazer luto. No primeiro capítulo, uma das quatro personagens considera que o pior que há é o ser humano, descrevendo os humanos como «nomes todos cheios de gostos e de responsabilidades e de esperança. / Esta gente que cospe, que passa a vida a cuspir e a fazer merda e a transmitir» (p. 28), que temem a sua mortalidade e que tentam fazer coisas para que as pessoas não se esqueçam delas, ou seja, «lutar para não morrer nunca, para ninguém se esquecer da gente» (p. 29). Esta atividade é já uma espécie de luto do ser humano, uma tentativa de marcar pessoas. Interessante é, também, o facto de que aquilo que fica ter de ser o pior, pois assim o título do capítulo o ordena. O que nós temos da frase, quando a lemos, é, então, o seu pior.

Este luto torna-se necessário, também, devido à inquietação que todos sentimos quando somos crianças e descobrimos que um dia vamos morrer. A criança tem, ao contrário da frase, a vida toda para tentar conciliar o facto de estar viva com o facto de que vai morrer. A frase, por sua vez, tem de arranjar formas para que o leitor não afaste os olhos da folha. Parece haver dois gestos por parte da frase: o primeiro é a sua conciliação, a busca de um conforto dentro da mortalidade, e o outro é a tentativa de chamar a atenção para si – como uma criança chama a atenção da mãe –, de forma a poder continuar o seu luto.

O luto pode ainda ser visto como a continuação da coreografia inicial. Ao lermos o segundo capítulo, «T1» (pp. 31-78), num enredo que tem reminiscências de Scenes from a Marriage (2021), de Hagai Levi,[i] uma das quatro personagens, Alberto, está doente. O seu corpo está cansado por ouvir os ecos das coisas à sua volta, reverberando dentro de si mesmo. Segundo ele, se não falar, «Fica tudo cá dentro, a saber mal.» (p. 76) O mesmo se aplica à frase: ela tem de continuar para não ter uma vida que saiba mal. Ela precisa de se coreografar de forma que as coisas não lhe saibam mal.

No terceiro capítulo, a frase apresenta-se como Max. Várias pessoas criticam uma peça produzida pela frase. Segue-se que Max desaparece, dando espaço para o capítulo quarto, o epicentro do livro: «Padam, Padam» (pp. 105-141).

Sendo uma clara referência à música de Edith Piaf, o capítulo «Padam, Padam» propõe-se a destruir algumas das convicções da frase, sendo que estas podem ser descritas pelos seguintes versos de Piaf:

 

Este ar que me assombra dia e noite,
Esta música não nasceu hoje.
Ela vem de tão longe donde venho,
Tocada por cem mil músicos.[ii]

 

Este ar aqui referido é, no contexto da obra, um tipo de bater do coração que remonta há imenso tempo, podendo identificar-se nele os seguintes propósitos: a busca da infinitude e da imortalidade. O capítulo quarto é, desta forma, tanto o local onde o coração da frase bate, como é o espaço onde vai ser necessário destruir os propósitos anteriores. A destruição é, no entanto, uma nova forma de o fazer bater, com novas vontades.

Assim, com quatro personagens centrais e uma secundária (Pai, Mãe, Filho, Filha e um Professor), a frase conta uma história sobre as origens de um novo mundo. Nesta, cada uma das personagens desempenha uma função: Pai e Mãe serão os alicerces deste novo mundo, virando-se para o quotidiano e para as coisas pequenas de forma a reconstruir a sociedade; o Filho servirá de antagonista, que se aliará ao Professor; ele procurará a destruição, mas, por algum motivo, a sua inércia é tanta que nunca chega a entrar em confronto com nada; a Filha é, de todas as personagens, a que mais nos emociona, pois é a menos plástica e a que mais parece procurar um mundo novo, ou, como ela diz,

 

Sigo atrás das frases sem passado e das histórias sem memória. Trago um mapa no bolso à espera de que eu o desenhe. Despeço-me da normalidade, desejo-vos o que quiserem e dou os primeiros passos. Deixei de ter medo, perdi a ansiedade porque eliminei as perguntas erradas. (p. 139)


A frase, de forma a continuar o seu luto, troca a ambição inicial de contínua expansão por uma escuta atenta das coisas mais fundas do que, talvez, o próprio coração.

Os últimos três capítulos serão a concretização desta alteração no coração. No primeiro, «A Morte de Max» (pp. 143-162), um Conde imortal decide ser mortal. A uma velocidade enorme, vive a sua vida, concluindo que não passa de uma réplica do seu pai, e de que todas as vidas são imitações de algo anterior. Isto causaria um certo desconforto, no entanto, ao ouvir-se o conselho de uma das novas personagens introduzidas – «Procura a imortalidade na mortalidade, o impossível no possível, e acharás um conforto.» (p. 155) –, parece que se encontra um caminho para um bem-estar: atuamos dentro dos limites que nos são impostos e só nestes concretizamos o que imaginamos como impossível. Ao princípio, o Conde não concorda com este conselho, mas, ao morrer, parece encontrar nele algum conforto: «Conde: […] Fui a representação da vida num dia, em minutos. Sou a morte dessa vida que não quis. E portanto aquilo que não pode ser escrito porque não tem ideias, só ações. Ninguém me lê. Não há palavras.» (p. 162) Nesta revelação, o Conde parece não acreditar que ainda há pessoas que o leiam, no entanto, ao terminar o diálogo, ele revela o seguinte: «Conde: Max, o meu nome foi Max. Fim.» (ibid.). O Conde, assim como a frase, depende de alguém que diga, ou leia, o seu nome, para que exista e viva. Ao afirmar «Fim», não só constata que o capítulo termina como ordena o fim da leitura, perecendo. É de notar que esta é uma frase similar a uma afirmação de Max em Mad Max: Fury Road (2015), de George Miller – «Max. My name is Max.» –,quando Imperator Furiosa está quase a morrer nos seus braços. Tal como o Max de George Miller diz o seu nome a Furiosa de forma que ela o leve e se lembre dele quando morrer, também o Conde nos diz o seu nome para não o esquecermos: o nome serve de marca para que, salvificamente, os mortos sejam lembrados, e, através da lembrança, permaneçam. O nome do Conde sobrepõe-se ao da frase, parecendo que dentro do seu luto ela arranjou uma forma de se manter presente na mente do leitor: através da recordação que ele fará de Max.

Por outro lado, depois de se ter unificado o nome da frase numa só narrativa, seria necessário compreender de que forma é que ela se poderia ter expandido em várias personagens, como o fez, e depois unir-se sem qualquer tipo de constrangimentos. O capítulo sexto, assim sendo, vem resolver este problema. Em «A Vida de Max (história de um monólogo e de um cão)» (pp. 163-186), Max vai para uma floresta e desdobra-se em si mesma várias vezes. Este desdobramento parece tentar compreender as várias contradições que existem dentro de si, as suas fraturas, possivelmente causadas pelo processo de luto e, também, pelo quotidiano. Procurando solucionar esta questão, Max acaba, neste espaço isolado da sociedade, por concluir que viver é ser-se fraturado, ter opiniões contraditórias simultaneamente, segurando-se ao seu contexto: «Max: Obrigado por me darem contexto e existência. Sem vós eu não seríamos o mesma.» (p. 186)

É depois de tudo isto que a frase caminha para o «Suspiro» final (pp. 187-207). Suspirar implica uma libertação de ar, associando-se, por norma, o suspiro a um sopro depois de uma tarefa árdua. Simultaneamente, este suspiro é nosso, pois demos a atenção requerida à frase, e é da frase, que consegue agora encontrar o seu conforto. Este conforto implica um esvaziamento de ar, um deixar para trás aquilo que ela fez e aquilo que nós vimos e, talvez, ambos os suspiros, o do leitor e o da frase, se encontrem na última palavra do livro: «I: Fim» (p. 207).

Parece, então, que José Maria Vieira Mendes nos diz que talvez seja isto morrer, uma última libertação de ar, tanto por parte das frases, quando chegamos ao ponto final, como da nossa parte, quando expiramos e libertamos o ar dos pulmões uma última vez.



[i] Remake da série original: Scenes from a Marriage, de Ingmar Bergman.

[ii] «Cet air qui m'obsède jour et nuit, / Cet air n'est pas né d'aujourd'hui. / Il vient d'aussi loin que je viens, /Traîné par cent mille musiciens.»

REFERÊNCIA:

Mendes, José Maria Vieira. O Pior É Que Fica. Lisboa: Tinta-da-China, 2023.