André Osório
Escrito em 1970, Contra toda a Esperança, de Nadejda Mandelstam, recém-traduzido em 2023 por Ana Matoso e Larissa Shotropa, tem a forma de um documento ficcional ou de um romance ensaístico, de quem, à força de esquecer a sua individualidade em nome de um falso progressismo histórico, excluiu o seu «eu» da arte narrativa, talvez, de um certo modo, para recuperar o próprio presente anulado em medo e perseguições (por oficiais ou pela própria comunidade, moralmente vigiando-se a si mesma), condição primeira para se poder sequer nomear uma individualidade, talvez para prestar testemunho, trazer à memória, sem adornos ou sentimentalidade, a verdade crua e nua que ficou subterrada do regime estalinista por vinte seis anos.
Ao contrário do porventura mais conhecido Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, Contra toda a Esperança relata, fundamentalmente, o aprisionamento e afunilamento mental vivido nesse regime. A questão do «eu», da personalidade, está realmente no centro desta obra, ainda que se dilua no olhar observador que perpassa as suas linhas, ligada ao problema da memória, ou da sua ausência, guiada pela mão de um positivismo extremo que se caracteriza pelo seu carácter sintético, isto é, a sua artificialidade racional, por um lado, e a assimilação do passado num presente que se orienta, não tão ironicamente quanto isso, para um dever produtivista e de vigia que não permite a manifestação humana dentro da função do Estado, pretensiosamente corpo social. É neste contexto que, apesar de ser uma obra imensamente dura, é uma carta de amor que vive no imo da frieza: não só por trazer um exterior a uma geração que cresceu (e outras, que capitularam o direito da sua existência, como Nadejda retrata, incluindo-se) treinada a não olhar para dentro, e castigada se o fizesse (purgada do corpo social), a não olhar a própria realidade que viveu, escondida também em larga medida a olhos internacionais, como por ser um livro de resistência, por via da memória, em relação à morte do seu marido Osip Mandelstam, poeta do grupo acmeísta[1], que foi primeiramente preso por escrever versos contra Estaline, e, depois, retirado da vida literária, exilado, vigiado, sendo, vinte anos depois, morto. A obra do poeta foi por Nadejda Mandelstam integralmente decorada, fora o que foi sem aviso confiscado. É, precisamente, no processo desta lenta morte que a fotografia do meio se firma.
Segundo Nadejda, no seu livro subsequente Hope Abandoned (1974), ainda não traduzido do russo para o português, «a perda do “eu” leva quer a um auto-apagamento (como no meu caso) quer a um individualismo flagrante, com os extremos do egocentrismo e auto-afirmação. Os sinais exteriores podem variar, contudo é a mesma doença: a atrofia de uma personalidade verdadeira»[2]. Subjaz a esta ideia, no texto de Nadejda, assim, aliás, como na poesia de Osip Mandelstam, a memória e a preservação cultural serem equivalidas através de um direccionar-se a um «tu»: recordar a obra de Osip, forma imaterial de se opor ao materialismo extremo (forma de determinismo[3]) de um Estado estalinista, está intimamente ligado à preservação de uma cultura que se ama, de um acto de testemunho[4] (a que este livro se presta), e que, face ao autoritarismo do presente puramente funcional e hobbesiano, representa na sua ideia de passado uma comunidade. Continua Nadejda: «Numa era em que o principal apelo é “Cada homem por si só”, a personalidade está condenada. A personalidade é dependente do mundo em geral, dos nossos vizinhos. Define-se a si mesma em referência aos outros»[5]. Tal seria a solução para a vida dupla descrita pela autora como vigente em toda a população russa. Entre as duas vidas, duas máscaras, o que resta entre ambas é a memória. E assim escreve Nadejda, numa carta onde suspeita, sem possibilidades de certeza, da morte do marido, que fora, ao fim de vários anos de intimação, levado por definitivo para um campo de trabalho forçado em 1938, no tempo da Grande Purga, onde morrerá, após um primeiro encarceramento devido à escrita de um poema satírico sobre Estaline: «Óssia, meu querido, meu amigo distante! Meu amor, / Não encontro palavras para esta carta que, talvez, nunca irás ler. Escrevo para o espaço»[6].
O individualismo exacerbado, que caracteriza o regime Estalinista, onde as massas vivem à sombra de uma mão de individualistas que ditam a Razão a obedecer em nome do Estado e do Progresso, não se afasta de todo, neste aspecto, do que podemos referir como o capitalismo (o seu mito do «self-made man», aliás paralelo moderno da ideia de salvação religiosa, da abstracção monetária sempre crescente e matematização da economia e vida das pessoas) ou do mecanismo de crença empregado pela Igreja antes da revolução.
Contra toda a Esperança, de Nadejda Mandelstam, é um dos principais testemunhos e obras literárias do século XX; ainda assim, o erro de Nadejda, à semelhança de Osip e de outros autores que escreveram obras importantes sobre o tema (lembro-me, por exemplo, de A Mente Aprisionada, de Czeslaw Milosz), ainda que essa posição seja mais clara em Hope Abandoned, publicado quatro anos depois, é o erro de, por um lado, pensar a história da primeira metade do século XX como uma orgia licenciosa que abandonou os valores acumulados da raça humana, sendo uma consequência directa do humanismo privado de uma fundação religiosa[7], e, por outro, que, como escreve Fiódor Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov, se Deus estiver morto tudo é permitido, equivalendo, ainda, a frase «é isto que eu quero» com a frase «tudo é permitido»[8]. O próprio contacto com o passado impede que os acontecimentos do início do século XX sejam totalmente extraterrestres relativamente a este. Existe uma veia irónica nesta comparação entre o querer e a permissão, dada a relação descrita por Nadejda com Osip Mandelstam na sua obra. Uma de supressão de identidade e de obrigação de decorar os seus poemas, por não gostar de qualquer intermediário à sonoridade, fazendo-o ainda antes da sua perseguição. Tal perseguição torna, depois, esse acto de decorar, por parte de Nadejda, o seu contacto pessoal e profundo com o «tu» desaparecido, que faz parte de si.
Acabo esta breve recensão com um excerto que pode ilustrar a largueza e profundidade desta obra:
Quando lia, em criança, sobre a revolução francesa, muitas vezes me perguntava se era possível sobreviver a um reinado de terror. Agora sei com toda a certeza que é impossível. Quem respirou aquele ar ficou condenado, ainda que tenha acidentalmente conservado a vida. Os mortos estão mortos; porém, todos foram vítimas do terror, incluindo os carrascos, os ideólogos, os cúmplices, os bajuladores que fechavam os olhos e lavavam as mãos, e até mesmo aqueles que durante as noites batiam os dentes de medo. Cada estrato da população, dependendo do modo como o golpe lhe havia sido dirigido, foi acometido de uma forma própria daquela terrível doença chamada «terror», e até hoje ainda não recuperou, ainda se encontra doente e incapaz de viver uma vida normal. A doença é hereditária, os filhos pagam pelos pais, e talvez apenas os netos comecem agora a recuperar, ou, melhor, a doença assume neles uma forma diferente.[9]
[1] Grupo literário russo constituído, essencialmente, por Osip Mandelstam e Anna Akhmátova, que conserva elementos classicistas e simbolistas. Com pendor cristão forte.
[2] Nadejda Mandelstam, Hope Abandoned, 6. «the loss of ‘self’ leads either to self-effacement (as in my case) or to the blatant individualism with its extremes of egocentrism and self-assertiveness. The outward signs may differ, but it is the same sickness: the atrophy of true personality”». Tradução minha.
[3] Dado que a crença de uma tese, antítese, e proveniente síntese, leva a que a ideia de história e de memória se evapore nesta relação, em um presente contínuo que se apraz como verdade científica, sujeita a erro, verdade, mas no seu processo excluindo, no caso do estalinismo, toda a característica do humano em função de um Estado que se identifica como Logos, e este com o seu chefe máximo; surge daí que uma ordem dada tenha valor de um destino, tornando a vontade de cada um impessoal e a morte na servitude ou fruto de uma ordem superior algo natural.
[4] Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança, 45-6. «Os órgãos de repressão agiam com exactidão, ponderação e confiança. Tinham muitas metas: erradicar as testemunhas que pudessem lembrar-se de determinadas coisas; estabelecer uma mentalidade única; preparar a vinda do reino milenar; e por aí fora… (…) A nova justiça baseava-se na dialéctica e no grandioso princípio de que “Quem não está connosco, está contra nós”».
[5] Ibidem. «In an age when the main cry is ‘Every man for himself’, the personality is doomed. Personality is dependent on the world at large, on one’s neighbors. It defines itself by reference to others».
[6] Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança, Introdução, 21.
[7] Nadejda Mandelstam, Hope Abandoned, 282.
[8] Ibidem, 268.
[9] Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança, 407.
REFERÊNCIA:
Mandelstam, Nadejda. Contra toda a Esperança. Trad. Ana Matoso e Larissa Shotropa. Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2023.