João Duque
Da observação à operação parece não haver uma grande distância, apenas a da outra face da moeda. No primeiro livro de poesia de André Osório, Observação da Gravidade, a fixação da memória na casa da nossa identidade é o que fica gravado na operação da escrita. Esta operação é a luta agónica contra o esquecimento e a morte que nos acompanham ao longo da viagem da vida, na qual aquilo que carregamos se vai perdendo e gastando pelo caminho. O acto da escrita está longe do monumento horaciano, é uma operação interior, é o acto de abrir as janelas para dentro e percorrer o palácio da memória. O acto de recordar é semelhante à apanha da conquilha desse primeiro livro: apanhar o que está agarrado ao corpo, tendo como consequência a marca que permanece gravada, decalcada. O que se apanha, alimenta, mas o que fica gravado também se come com os olhos, permanecendo mais tempo. Há uma simbiose entre o eu e o mundo, uma confusão que inclui a própria poesia:
[…]
O ângulo da tarde inclinava-se ao espaço, à terra trabalhada
expectante pelo dedilhar que devolveria o nome à casca habitada,
enquanto eu, acocorado para o meu avô que de cima me observava,
percorria a fenda que o seu pé expunha, ancorando
o tempo naquele gesto que a mim voltava e em mim permanecia.
[…]
Era já hora de almoço, o trabalho tinha-nos despertado a fome.
Retornávamos ao lugar de sempre com os pés de novo cobertos,
sem nunca perder de vista o mar com o seu azul emoldurado
[…][1]
Neste segundo livro, Sala de Operações, publicado em Março do presente ano, o movimento parece ser inverso, mas a operação é a mesma. O olhar continua a ser para o interior, porém já não a partir de dentro, mas por um outro. Há uma nudez que expõe o eu e o outro na consciência de si, que se traduz no acto da escrita. Esta consciência abre o corpo e descobre o que se pode ver e o que já lá não está, o que se perdeu. Perdeu-se a infância, ou seja, a essência da experiência, sem consciência de si ou da passagem do tempo. A maturidade desta segunda obra consiste no reconhecimento de que não é possível uma memória total, apenas vestígios: é impossível dissecar e encontrar numa forma original e objectiva os acontecimentos. A operação da memória apenas pode ser feita pelo transplante da metáfora, numa tentativa de restaurar a comunhão entre o eu e a natureza. A escrita torna-se a casa do primeiro livro, o santuário no qual é possível confundir-se a existência e a poesia, mas aventurando-se a desprender-se das seguranças do interior do lar, olhando desta vez do lado de fora. O solipsismo da infância transforma-se na tentativa de sobreviver à solidão na idade madura, olhando com o mundo para o interior do eu que se oferece e se apresenta tantas vezes como um nós ou como um tu.
A poesia de André Osório dialoga com diversos autores, fazendo a referência a figuras como Franz Kafka, Elias Canetti, Nadejda Mandelstam, Manuel António Pina, Melville, Harold Pinter, Adrienne Rich, Hans Magnus Enzensberger, Czesław Miłosz, Gösta Ågren ou James Joyce, seja em epígrafes ou na forma de dedicatória. Mas as referências também são musicais, como The National, Sleaford Mods, e cinematográficas, como Denis Villeneuve e David Fincher. Todas estas referências explícitas, bem como as implícitas influências poéticas do autor, evidenciam esta consciência da identidade como aquilo que carregamos na memória e que se torna parte do eu e do mundo, diante do qual se denotam preocupações sociais e empáticas. Numa escrita livre, com um plectro maior em relação ao primeiro livro, mas preocupada com o rigor da musicalidade e da atenção à escolha das palavras, que formam um repertório vocabular que desenha uma identidade singular, esta obra que se divide em dois momentos simétricos («Ázigo» e «Sala de Operações», ambos com 20 poemas), tem uma preocupação metapoética de olhar não só para o eu e o mundo como paciente, mas para a poesia como medicina e ofício rigoroso e depurado. No poema que dá nome ao livro e à sua segunda secção, a identidade de quem fala confunde-se entre as várias personagens: o paciente, o médico, os alunos, o tu e a própria poesia, que se aprende como ofício do transplante, tal como numa aula de anatomia, mas também como arte da dissimulação e embuste:
Aqui está o meu corpo.
Aberto, exposto,
aqui está o meu corpo, pensou.
Pele, pêlos, sangue, nervos,
órgãos. Não seria tão desconfortável,
não fosse tão imensamente calculado.
É forma comum: baço, braços, pernas,
preocupações. Ainda assim, estar aqui, neste lugar,
perante os vossos olhos, vazio e frio, examinado,
não dá totalmente para cair em mim.
[…]
As pinças suportavam as bordas, a pele
Era arame farpado para aprazimento estético.
Sou um corpo vazio. Tenho, nas tuas mãos,
o coração desfeito. Por cima,
detrás do vidro, alguém vigia, atento ao ecrã.
Tira notas. Talvez alunos. Lembram-me –
porventura, não se apercebam –
de aulas de literatura que tive na juventude. Olhei-
-as da janela. O transplante estava pronto,
letras, arranhadas, selavam o embuste.
[…][2]
A poesia ganha vida no poema, resgatando o seu significado etimológico, e o transplante da metáfora confunde-se com o transplante físico do coração. A gravidade da operação corporal está ao mesmo nível daquela da operação da escrita, na escolha e conjugação das palavras, dos sons, da narrativa.
Bibliografia:
Osório, André. Observação da gravidade. 1a ed. Lisboa: Guerra & Paz, 2020.
[1] André Osório, Observação da gravidade, 1ª ed (Lisboa: Guerra & Paz, 2020), 20–21.
[2] André Osório, Sala de operações, 1ª ed (Lisboa: Guerra & Paz, 2024), 82–83.
REFERÊNCIA:
Osório, André. Sala de Operações. Lisboa: Guerra & Paz, 2024.