Miguel Zenha

Na introdução a Slow Learner, Thomas Pynchon defende que «é errado começar com um tema, símbolo ou outro agente unificador abstracto e tentar depois forçar personagens ou eventos a conformarem-se a isso» (p. 12)[1]. Não querendo discutir o mérito específico desse ponto de vista—Pynchon estava a referir-se a «Entropy», um dos contos que integra Slow Learner—parece-me, no entanto, que a observação descreve adequadamente o pecado original de Vaca Preta, livro de Marcos Foz editado em 2021 numa parceria entre a Bestiário e a Livraria Snob.

Vaca Preta quer ser um livro invulgar: inclui géneros literários diferentes—numa estrutura não linear, abre com poesia, seguem-se textos em prosa que por vezes se distinguem entre si pela forma e pelas personagens, havendo ainda um destacável, com dimensões mais reduzidas, com propósitos ensaísticos—além de ser parcialmente ilustrado e ter um código QR. O esmero gráfico é evidente. Mas as características referidas podem convocar igualmente um experimentalismo afim de uma intenção conceptual eminentemente literária. Perguntar-se-ia, então, que ponto Vaca Preta quereria introduzir e problematizar. Estaria relacionado com uma indistinção de fundo entre géneros literários, insistindo na diluição de fronteiras entre poesia, prosa e ensaio? Pretenderia lançar uma discussão acerca do que pode ser hoje um livro?

Vaca Preta abre com um longo poema cuja qualidade, nesta que é a sua melhor parte, fica a dever-se a um registo prosódico interessante:

 

(des)obliterar possíveis oferendas uma
pulsante tapeçaria das cores do cacto
vigilante da manhã do vagabundo
de cabelo espetado como página
de livro por abrir e confesso
orquestrar uma peça
rudimentar saltou-me à ideia por
acreditar que será por aí que o
entendimento rasteja entre a pele
dos substituídos parcela a
parcela até à cintilante
sintética vestimenta divina na qual
delineamos medidas pelos recém-
-nascidos dos amigos

 

Em bom rigor, o poema começa com a seguinte palavra de ordem: «Que falasse para os últimos/homens das últimas regras/consanguíneas conciliadoras/amarras maravilhadas pelo trabalho/do alvorecer que sempre descobre/o pequeno corte na escuridão». Põem-se aí em questão concepções de limite ou de condição derradeira, bem como de normatividade ou convenção. Na verdade, as ideias de limite e de normatividade dão origem a uma dimensão de inadaptação crucial: «(...) but nein nein deixem-me/ser mesmo que ser seja perigoso para quem não/alinha no cardápio de tecelagem performativa/de postiças marretas de loucura auto/medicada et al.» Tal inadaptação tenta por sua vez edificar uma maneira de estar caracterizada por uma certa ideia de autonomia: «permitam-me subir aquele quinhão/lançar-me de cabeça ao problema da/esférica intimidade/para dar descanso à mão fincada/na ferrugem da grade ou ao fundo do rio/carcomido à dentada/avanços // recuos/neste patrício patético calendário/sem maneira de conhecermos/a água que remará a carne».

A injunção na abertura do livro elege como propósito pôr em causa um certo estado de coisas. Nesse sentido, por inadaptação entende-se um desfasamento particular entre «eu» e os «outros», descrito com recurso a uma ironia capaz de gerar imagens engenhosas: «não somos nós apologistas da reunião/no antigo memorial? Afirmativo/roger that e no entanto/passos luciferinos/à margem de tudo/fugir no porta-bagagens/segurar a mão do outro lado da vigília/pedir delicadeza às águas que nos cercam/não devastar nada enquanto penteamos/essa garupa escusa e inquebrantável». Mas aos «últimos homens/das últimas regras» chega-se em concreto graças a uma versão decaída de Alberto Caeiro: «ao rebanho que na ilusão/engendra o seu guardador/e sem tema sem noite/colamos mais uma esfera/no tecto escuro e rogamos/para que nos ignorem/a nós donos de tontearias/e escambras». Aos «últimos homens/das últimas regras» chegar-se-á ao «brincar com arquitraves», ou seja, desafiando uma origem e um passado que se pretendam incontestáveis.

Esse colocar em questão de expectativas colectivas e individuais, essa oposição a uma normatividade tida por inexorável, é prosseguida na terceira parte de Vaca Preta, não rigorosamente no mesmo registo em verso da primeira parte, mas antes num solilóquio que se esforça por aprofundar aquela inadaptação através de analogias e motivos dispostos freneticamente:

 

há mil motivos para adiar o regresso: enumerá-los seria voltar a uma literatura desencantada: osteoporosada: não não: não importa se nova crise financeira se filho troglodita: um trovão vindo da outra dimensão cai no centro do crânio: (...) em tempos marcaram um ponto a vermelho no mapa: tu pequeno: expectante percebeste pouco depois que te ludibriaram: se voltasses a pedir justificações a certeza da resposta: — só assim terias coragem (pp. 80-1)

 

Tudo parece indicar que se vai finalmente dar forma à intenção esboçada na primeira parte, ou seja, àquela inadaptação promotora de um espírito crítico veemente e consolidado.

Contudo, o caminho seguido não é esse, uma vez que o livro opta sobretudo por falar consigo mesmo, fomentando uma clausura existencial empolada que funciona por auto-centramento. Esse aspecto é nítido, desde logo, na segunda parte de Vaca Preta, registo em prosa que trai a qualidade com que o livro começara. Numa primeira leitura, a toada inicial desta segunda parte poderia fazer lembrar The Catcher in the Rye:

 

Os dias passaram e voltei a encontrar-me com aquele que viria a ser à data o meu único amigo e aquele que, pelos minutos que me ia concedendo, me afastava do meu manifesto que me consumia corporeamente e conspirava com vista ao meu aniquilamento. Nesses dias, faltava às aulas da decrépita universidade em que me tinha enfiado e, num banco protegido pelos plátanos da praça central, esperava que aparecesse para com um toque no tendão do ombro esgarçado do casaco me convidar a sair da minha imobilidade de pinguim monástico (p. 29)

 

Mas prestando atenção ao passo transcrito, percebe-se que o narrador de Vaca Preta desconhece a fúria densa, mas simultaneamente empática, de Holden Caulfield. Um sentimentalismo coroado com metáforas como «imobilidade de pinguim monástico» impede aproximações sérias a Salinger.

Com efeito, o narrador fala amiúde num «manifesto», algo que conferiria uma aura de rebeldia e subversão que, porém, se reduz a um simulacro de desígnio, a um arremedo de convicção. Nesse sentido, o narrador é reconhecível pela dependência face a G, pretenso modelo de obstinação cujos traços são de tal modo carregados e previsíveis que o aproximam da caricatura. A atestar essa dependência encontram-se descrições sofríveis:

 

G foi furando a licenciatura por disciplinas opcionais. Ia entrando no anfiteatro desse bando de criaturas de faróis esbugalhados, desorganizadamente preenchia o espaço com os cotovelos e os lábios crespados, com esse olhar incisivo, mas invariavelmente absorto, sobre o que o rodeava. (p. 30)

 

Outro exemplo: «Bem, não posso falar por ele, mas da minha parte havia um alheamento inevitável. Deixei de frequentar as aulas, no meu quarto alugado não havia televisão e o meu computador há muito havia avariado.» (p. 31)

A noção de «alheamento», juntamente com as de «manifesto» e «aniquilamento», sobrecarregam o texto com auto-condescendência. Percebemos mais à frente que a razão daquela dependência se deve a um diagnóstico social e político que se pretende demolidor, mas que não vai além da perpetuação de lugares-comuns: «Lembro-me, por exemplo, da enunciação de G acerca do discurso científico actual que com todos os seus recursos factuais, teóricos e pragmáticos, com leis e acessórios de encher o olho, dizia ele, é a nova religião dos últimos trezentos anos.» (p. 32) O problema não diz apenas respeito a imagens sofríveis— «escavando à volta da sua personalidade até caberem riachos e jacarés como ornamento do seu castelo à moda antiga» (p. 34)—mas também à combinação com proclamações risíveis: «Sei que esperam de mim um pensamento tempestuoso.» (p. 40)

A oscilação entre o banal e o artificial que caracteriza a segunda parte de Vaca Preta é exportada para a quarta parte, que retoma o estilo narrativo e as personagens daquela. A intenção, se juntássemos as duas partes, poderia passar por contar uma história ou fabricar pelo menos um indício de enredo. Ora, o relato existencial deflacionado inconsistente da segunda parte prossegue, mas agora num momento que se presume descrever um ritual de passagem. A acção decorre numa «Mansão-cor-de-Rosa» na qual o narrador é guiado por uma personagem feminina, Z, cujo retrato não nos deixa esquecer o quão confrangedoras conseguem ser algumas descrições de Marcos Foz: «(...)chega até mim uma rapariga de túnica negra. Serôdia corónula de traços desconfortáveis. Reconheço-a e não a reconheço. Sinto nos ossos o nosso emparelhamento e, no entanto, não me arrisco a afirmar: olá de novo.» (p. 95) Na verdade, neste livro a presença feminina instiga um sentimentalismo que nada tem de emocional ou pungente: «Enquanto descíamos espantava-me, como sempre?, a extensão da descida, a amplitude do terreno verdejante que bordeia o caminho de ambos os lados. Quem cortará a relva de tais sonhos mal engendrados?» (p. 96)

A «Mansão-Cor-de-Rosa» assinala uma incursão no fantástico que, porém, não convence:

 

Verdes metamorfoses começam a fazer-se notar, quase imperceptivelmente, nas paredes. É a tinta a mover-se. Nas extremidades algumas filas que se movem para a direita, ou para a esquerda, começam a tingir-se de outras cores. São as paredes richterianas que sangram. Sinto que do outro lado nos colocam uma toalha molhada na testa. (p. 100)

 

A mistura de registos, sendo o fantástico mais um exemplo, não consegue ser convincente especialmente quando Marcos Foz opta pela prosa, já que se torna nítido o talento reduzido em arquitectar ficções narrativas vívidas:

 

O rapaz baixou a cabeça quase imperceptivelmente, as sobrancelhas contraíram de modo subtil, simultaneamente à sua frase de despedida. Agora já longe da irritação, foi o tédio a surgir e a abraçar-me pelas costas como um amante ao outro que, compenetrado, tenta fazer magia, entre tachos, facas e legumes despedaçados. (p. 116)

 

Por último, uma referência à parte destacável de Vaca Preta. Intitulada «Unemployed spirits», traz uma tentativa meta-literária e auto-irónica que infelizmente reincide no registo auto-centrado que pouco mérito confere ao livro: «um amigo próximo avisa-nos que estamos a colocar-nos no intricado papel de criador de antecedentes dando emprego a colaboracionistas. Contudo, não estamos certos desse amigo existir»; ou «Mas então isto não era um ensaio? (se já se sabe que não, porque é que pergunta?)». Quanto mais Marcos Foz escolhe uma postura sarcástica, mais auto-indulgente se mostra. O que também esta parte revela é a inexistência generalizada de um temperamento, na medida em que quase todas as tentativas em forjar um ímpeto desestabilizador estão sim subordinadas a um catálogo de remoques. Confirma-se a sensação de que Marcos Foz está frequentemente radiante consigo mesmo.

Assim, o maior problema do livro não está em ser excessivo e ambicioso, antes fosse, mas em não conseguir deixar de ser gongórico e inconsequente. E é esse o «tema» previamente imposto de que se queixava Pynchon. As menções a um «manifesto» não encontram correspondência, i.e., não são, no geral, mais do que um séquito de ânsias grandiloquentes ou um bafejo de vacuidade. Quando se misturam motivos de forma inábil, quando afirmamos ao mesmo tempo que tudo tem que ver com tudo e com nada, não estamos, no fundo, a dizer grande coisa. Arriscamo-nos, sim, a não justificar espírito crítico algum, a não estimular uma capacidade em desenhar distinções particulares. Nesse sentido, este livro não acrescenta nada de novo à questão em torno de uma indistinção de fundo entre géneros literários; na verdade, torna a questão ainda mais estafada do que já tende a ser. E é nisso que Vaca Preta falha: é notória a ausência de um ânimo que pretenda, efectivamente, pôr paradigmas em jogo. Não é dado corpo a um empenhamento original. Uma das manifestações dos equívocos em que o livro se perde é o desfile de referências que o povoam—que vão, entre outros, de Pasolini, Nietzsche e T. S. Eliot a Rui Nunes, Beckett, Ernesto Sampaio e William Gaddis, passando por figuras bíblicas e mitológicas. O ponto nem é tanto a quantidade, mas o facto de se tratarem de referências decorativas, visto que raramente são desenvolvidas. Alusões a autores não camuflam a falta de comparência de pensamento próprio de quem as faz.

Contudo, a referência mais importante é a Thomas Bernhard, não porque seja exposta com pertinência, mas, pelo contrário, porque é sintomática do falhanço de Vaca Preta. «(...) reparámos num sofá à porta de um desses estabelecimentos que, longe dos ares distantes e austríacos onde por sorte se podia conhecer um broto de seu nome Thomas» (p. 110), lê-se na quarta parte do livro. Bernhard é importante porque o livro denota um temor reverencial pelo escritor: pense-se, por exemplo, em G, personagem que pode remeter, não sem alguma boa vontade da nossa parte, para o autor de Perturbação. O ponto é que se nos quisermos dirigir aos «últimos homens das últimas regras» ou «brincar com arquitraves», não será propriamente recorrendo a uma veneração sôfrega e acrítica. Sobre esse aspecto, chame-se à colação um passo do próprio Bernhard em Extinção, onde, falando-se de certos filósofos, é observada a necessidade em «agir contra para compreender» (p. 133)[2]. Agir contra implica apropriarmo-nos de um autor de que gostamos, desrespeitá-lo de maneira a fazer colapsar consensos que o domestiquem, que o convertam num cartão de visita. Se o autor for Bernhard, implica saborear-lhe, e digerir-lhe, o ódio e o desprezo. Dito de outro modo, Vaca Preta força uma fórmula pré-determinada porque consiste, demasiadas vezes, num mero esbracejar, numa sofreguidão pueril em querer ficar com o crachá do clube de um certo grupo de autores que, mais do que malditos ou danados, são de facto enfáticos na adopção de uma atitude de renúncia. Teria sido preferível, então, que Marcos Foz articulasse a sua admiração contra aqueles de quem se julga discípulo em vez de implorar que lhe abrissem a porta.

[1] Thomas Pynchon. Slow Learner. London: Jonathan Cape, 1985.

[2] Thomas Bernhard. Extinção. Traduzido por José A. Palma Caetano. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

REFERÊNCIA:

Foz, Marcos. Vaca Preta. Lisboa: Bestiário/Livraria Snob, 2021.