Guilherme Berjano Valente

A poesia de Nuno Guimarães parece-nos ser bem descrita pelo início da música «Pronúncia do Norte», dos GNR.: «Há um prenúncio de morte / Lá do fundo d’onde eu venho». O motivo deste prenúncio é tanto a noção de finitude que se sente ao ler os seus poemas, pautados por imagens estéreis e secas, como o facto de o poeta ter morrido aos 30 anos. Entre Sílabas e Lavas (2024) – livro que reúne a sua poesia – apresenta-se, então, como um fragmento que se crava contra a passagem do tempo, tentando combater a morte, enquanto transparece a ideia da sua própria esterilidade e finitude próxima.

Percebemos, desde o início da sua obra, que as palavras são coisas que rebentam e fulguram, tendo um aspeto órfico – «Mas despertadas [as palavras], bem ou mal medidas, / rebentam em ogiva, funcionais / chamas supostamente adormecidas.» (p. 23) No entanto, este lado órfico não lhes é inerente, estando na boca daqueles que as cantam e reproduzem:

 
Desertas. De pouco fogo.
Nada lhes arde por dentro.
[…]
Nos corpos de lavradio
fazem poiso. E contam deles
o pouco fogo. O deserto
que os habita no centro. (p. 24)

 

O que é interessante é que esta conceção de poesia e palavras se coaduna com a ideia que Paul de Man tem de leitura em «Autobiography as De-facement»[1]: um ato prosopopaico em que o leitor dá a sua face para que o texto possa falar através dele, tornando-se ele, leitor, numa espécie de estátua morta que reproduz sons. Quando o leitor termina a leitura é o texto, então, que volta a estar morto, à espera de ser revivido. Num outro poema, Nuno Guimarães afirma que as palavras se cumprem «nestes / verbos: sobreviver, fazer viver.» (p. 27) As palavras são o que sobrevive, enquanto elas fazem com que as pessoas que as leem vivam. Isto requer um processo de aprendizagem por parte das próprias palavras que, enquanto sobrevivem, caem com os seres: «do sol ao solo a trajectória é breve / caindo com os seres de linha rasa / as palavras aprendem.» (ibid.) As palavras, num movimento luciferiano, caem com as pessoas, aprendem com elas, através do ato da leitura, tornando-se a leitura em algo vertiginoso. Durante a queda, a cisão entre a pessoa que lê e aquilo que está escrito põe-se em causa devido à vertigem, confundindo-se poema e leitor, para depois, no fim, se fortificar a cisão, destacando-se uma espécie de fissura orgânica (o poema é feito de letras e as pessoas são feitas de carne). Assim, Nuno Guimarães atualiza a ideia de Paul de Man do ensaio acima citado: ler é juntar duas bocas e fazer com que a pessoa que lê continue a viver.

Este tipo de fissura, criado, primeiro, pelo ato da leitura, é pensado de várias formas, sendo levado a um extremo quando Guimarães elenca uma genealogia de fissuras naturais, ou seja, partos: das pessoas para com o mundo e dos filhos para com as mães, como se vê na descrição de um parto tido pela terra: «Do ventre a bomba terra luminosa / rompe. Húmida, toca a superfície. / Em sangue e monte curvo sobe a mãe.» (p. 31) Neste poema, que abre a segunda parte de Corpo Agrário – «O Estio» (pp. 29-35) – o canto é visto como uma forma de se recantar o momento em que se sai do ventre, visto como o momento da primeira fissura – «A noite canta / a mais antiga fenda do universo // o ventre pré-histórico, a fogueira.» (p. 31) Se as palavras têm características órficas e o «ventre pré-histórico [é] a fogueira», não nos parece descabido considerar que este tipo de canto não tem tanto que ver com aquilo que se escreve, mas com o facto de se escrever e de se ler. No entanto, isto não quer dizer que Nuno Guimarães não tenha uma realidade sua que se apresenta na sua poesia, pois, como afirma no «Fragmento Segundo», de Os Campos Visuais:


Respira, tensiona. Os grandes surtos
da memória e da experiência se derramaram,
inconsistentes, sobre o leito. Já nem
o caos é edificado. Conserva-te,
impõe os teus resíduos. (p. 69)

 

Parece haver duas ideias na sua mente: a primeira é que toda a poesia é um recantar da «fogueira» inicial; a segunda é uma espécie de conselho moral: perante o caos que nasce desta brecha, que é vista como o espoletar do devir interrupto – «Da água à terra, ao corpo, à luz, os elementos de uma experiência / e uma erosão ininterruptas» (p. 66) –, devemos recolher os nossos resíduos, os nossos fragmentos de memória, e tentar conservá-los para combater a erosão que nos é inerente.

A imagem que se nos pega à mente, ao longo da sua poesia, é esta primeira «fogueira», visto que, se Prometeu nos deu o fogo e com isto nos amaldiçoou, iniciando uma cadeia de violência, Nuno Guimarães vê naquilo que ilumina, na luz, o monstro que nos devora. Reparemos que o que canta é a noite (p. 31), sendo o dia iluminado o espaço onde as coisas são ilusões: «A segurança das colunas, não obstante a / água e a luz que lhes são próprias, os elementos / corrosivos, é perfeita.» (p. 67) O que corrói é a «luz» e a «água», procurando-se uma poesia noturna que tente chegar a algo fixo e verificável na realidade, pois, como o poeta afirma, «O que era / firme interroga, obscurece. Duvidosas / são todas as colunas.» (ibid.) A sua posição parece ser a de um cético para com o conhecimento, repetindo-se esta ideia no decorrer da sua poesia. Impor os seus resíduos (p. 69) é uma moral temporária, visto que todo o pensamento adultera e verga a realidade. De forma a desenvolver esta ideia, o poeta convoca Juan de la Cruz, descrevendo o pensar sobre Deus como algo que o destrói – «Pensá-Lo é destruí- / -Lo. Por isso O pensa. / Residual O ama.» (p. 58) Mas neste processo abre-se a possibilidade de se o reorganizar e de o estabilizar, sendo a mente aquilo que é capaz de estabelecer verdades, mesmo que momentâneas. Nuno Guimarães desenvolve a sua conceção moral de recolher os nossos resíduos como não sendo apenas uma forma de sobrevivermos e suportarmos o caos, mas a única forma por onde podemos alcançar verdades fixas.

O poeta, no entanto, tem uma visão pessimista e soturna sobre o seu ofício e sobre a realidade, logo, a verdade temporária é um pequeno alívio numa dor constante:

 
Mas nada aqui, embora estável,
nos redime do fim e do excesso,
viáveis à demência.
Exíguo, o pensamento constrói
paisagens sóbrias: um rosto
magro, insociável, corrompido
por hábitos marítimos.  A sombra
intensa e dura. A exímia
e nítida cegueira. (p. 74)

A moral construída está sempre a desfazer-se, visto que a consciência da sua falência está presente no próprio ato de se pensar. A nível formal, mostrando-se um enorme cuidado com o processo de escrita, vemos isto a decorrer no primeiro poema de «Extractos» (pp. 87-94):

[…] cantando
o ido, a memó-
ria nos
os-
 
sos? (p. 87)

É extraordinário que, nestes cinco versos, a incapacidade de se fixar algo através da poesia se torne materializável nos diferentes sentidos reconhecidos nas palavras fragmentadas: a palavra memória está quebrada para que se destaque a «ria»; «nos / os- / sos» é partido de forma que, simultaneamente, leiamos «nossos», «ossos» e «sós». Esta confluência de sentidos prende-se com a fluidez do rio que invade a poesia a partir do momento em que Nuno Guimarães se apercebe da sua incapacidade em escapar à realidade, isto é, ao mundo do devir:

 

Domina-se o crânio, a pobreza do
espaço, na mais áspera mestria. Junto
aos pulmões descobrem: as formações etílicas,
o pó, a ressonância. Ainda, quentes,
os órgãos de um ser vivo. (p. 74)

O medo da passagem acaba por se verificar no corpo físico que está por detrás do poema. A tentativa de se viver nas palavras é falível, visto que os pulmões e o coração não transitam do corpo para os poemas. Toda a sua obra caminha para esta infeliz revelação: a poesia não imortaliza ninguém a nível físico, perecendo tanto o poeta como o padeiro, o sapateiro, ou o médico. Há, no entanto, um segundo tipo de vida: a que é dada pelos leitores. Nuno Guimarães morre. Contudo, os leitores, assim como as palavras, «sobrevivem» e «fazem viver». Por um lado, sobrevivem na realidade e, por outro, através da leitura, como Paul de Man explica, fazem com que as palavras se tornem vivas, mesmo que por momentos. Desta forma, há uma substituibilidade em relação ao termo «palavras», descrevendo também «pessoas». Com isto, algo de Nuno Guimarães resta firme na terra: a sua poesia.

Parece-nos, com o que temos dito, que a sua poesia tem algo como um propósito pedagógico, incentivando-nos a estancar certos fragmentos da nossa vida de forma a olhá-los atentamente. Através destes fragmentos, «aprendemos um país / apreendido» (p. 99) e «quebramos os limites / do conhecimento» (ibid.), visto ser a escrita «o acto mais atento.» (p. 100) Esta moral, por sua vez, mesmo não salvando ninguém, mantém o mundo vivo, visto que o olhar faz viver, pois tanto as palavras são um registo daquilo que se vê no mundo, fornecendo uma espécie de vida à realidade, como os olhos do leitor olham as palavras e as tornam animadas. Com isto, tudo se encaminha para a morte do poeta, mas não sem que antes ele se insurja contra o esquecimento: «O quotidiano é, por assim dizer, esquecimento, uma dissolução das suas funções. Todo o esforço da escrita é, portanto, um reação: esquecer o esquecimento. É uma actividade traumatizante, então.» (p. 115) Assim como um parto traumatiza a vagina da mãe – e trauma é entendido como uma ferida que não sara –, também a escrita traumatiza o poeta, rasgando-o entre aquele que escreve e aquilo que escreve, traumatiza o mundo, separando o que é real do que é registado, e traumatiza o leitor ao aproximá-lo do poeta, enquanto está a ler, e separando-o quando termina o poema. Da ferida sobra uma cicatriz que, como uma estátua, nos recorda da primeira separação entre a Terra e o ser humano com o ganho da consciência, ou seja, a primeira «fogueira».

Entre Sílabas e Lavas tem um «prenúncio de morte», mas também nos oferece uma solução momentânea, ajudando-nos a suportar um bocadinho melhor o dia a dia fulminante e imparável. Nuno Guimarães é, então, uma espécie de médico que receita a escrita e a leitura para apaziguar a dor de cabeça que nasce ao apercebermo-nos de que a realidade é incapturável.

[1] Paul de Man, “Autobiography as De-Facement”, MLN 94, no. 5 (1979): 919–30. https://doi.org/10.2307/2906560.

REFERÊNCIA:

Guimarães, Nuno. Entre Sílabas e Lavas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2024.