Lúcia Evangelista
Para a professora e investigadora Joana Meirim a «modéstia» é um tópico central para articular poéticas que se fazem numa contracorrente de um sentimentalismo lírico e «palavroso» – a expressão é da própria Meirim. É sob este tópico que a autora tem dedicado sua atenção a poetas como Adília Lopes, Alberto Pimenta e Alexandre O’Neill. A «modéstia», em sentido positivo, apontada nestes poetas é também marca estilística de Uma Carta à Posteridade. Jorge de Sena e Alexandre O’Neill. Tratando-se, como a própria autora revela na «Nota Prévia», de uma versão da sua tese de doutoramento, Uma Carta à Posteridade. Jorge de Sena e Alexandre O’Neill não incorre às marcas de muitas das obras que partem de teses. Em outras palavras, é um livro que consegue ser profundo sem ser pedante, erudito sem ser cansativo, generoso de referências sem esgotar a paciência dos leitores em infinitas notas de rodapé e pormenores bibliográficos. É, pois, um livro que faz do tema da «modéstia» um caminho tanto para rigor quanto para a abertura de liberdade na leitura e no ensino de autores já canônicos como o são Jorge de Sena e Alexandre O’Neill. Ou usando as palavras da canção de Caetano Veloso faz da modéstia um jeito de corpo: de corpo de texto e de experimentação de atuação acadêmica.
Distinguida com o prémio de Ensaio IN/Vasco Graça Moura 2022, a obra parte da teorização da angústia da influência de Harold Bloom para articular duas poéticas praticamente antagónicas: a de Jorge de Sena e a de Alexandre O’Neill. O livro é assim dividido em duas partes que fazem espelho, cada uma contendo três capítulos. A primeira, dedicada a Jorge de Sena, aponta para a centralidade da preocupação com a posteridade na poética seniana: I. Jorge de Sena dirige-se aos seus contemporâneos; II. Uma história da poesia portuguesa; III. Intimação à imortalidade. A segunda parte, dedicada à poética de Alexandre O’Neill converge por sua vez em tópicos centrais para a vertente deflacionária o’neilliana: I. Desimportantizar; II. Grande poeta menor; III. Gloríola. Conforme anuncia a própria autora logo na «Introdução»:
É a descrição destas duas personalidades literárias — descrição que inclui crítica literária e intenções bibliográficas — que me permite chegar à conclusão de que existem duas famílias de poetas (...): uma família maioritária, aquela que se preocupa com a qualidade e a continuidade genealógica e com o plano rigoroso da atividade literária; e uma família de poetas menos preocupada com a reputação literária e com a tendência para deflacionar quaisquer expectativas de permanência na história da literatura. De uma certa maneira, Jorge de Sena está mais próximo do percurso bloomiano do poeta forte, tentando encontrar para si um lugar conspícuo na história da literatura portuguesa; já O’Neill tende a excluir-se dessa família, através de um registo frequentemente autodepreciativo e da defesa de um programa e dicção modestos na poesia (29-30).
Ou seja, Joana Meirim parte dessas poéticas para traçar uma teoria literária — um modo de ler e sistematizar — a poesia portuguesa do século XX.
Interessa, contudo, ressaltar que, ao longo do texto vai nos sendo revelado que estamos, sobretudo, diante de dimensões éticas diversas em relação ao poético. Dimensões estas que pertencem ao âmbito da teoria e da crítica, mas também a extravasam. Em O’Neill, vida e poesia se dão num intercruzamento quase imediato; enquanto em Sena o que vemos é uma pausa reflexiva que recua e remedia a relação entre a experiência do agora e o devir do poema. Nessa via, na seção dedicada a Jorge de Sena, vale ressaltar o justo e assertivo protagonismo que Joana Meirim destaca no trabalho crítico e criativo de Mécia de Sena:
A voz de Mécia de Sena confunde-se com a de Jorge de Sena nas introduções e prefácios à obra que continuamente publica, procurando defendê-lo de eventuais ataques ou atenuando a animosidade de certas passagens. Ao suprimir adjetivos ou pequenas frases, Mécia de Sena tenta moderar a imagem recorrente de poeta zangado e com embirrações pessoais (a imagem demasiado humana que Jorge de Sena, afinal, nunca escondeu). No fundo, cumpre o desejo maior de tentar fazer com que a posteridade compense a desatenção e leviandade do tempo em que Jorge de Sena viveu (111).
Joana Meirim demonstra o quanto a grandeza e o desejo de posteridade inscrito na obra tanto ensaística quanto poética de Jorge de Sena só se vai cumprir através do trabalho de Mécia de Sena. Em relação a Alexandre O’Neill um dos cuidados de Meirim é defendê-lo das «prateleiras» da história da literatura portuguesa «que tem tendência a reger-se por temas maiúsculos: Portugal, Identidade Portuguesa, Lisboa, Ternura, Humor, Sátira dos Costumes, Quotidiano, Realidade, Prosaísmo» (151). Não por acaso, a autora destaca ao longo do livro o quanto O’Neill ao ler poetas brasileiros como Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes está em grande medida a fazer referência à sua própria poesia. E Joana Meirim parece partilhar dessa simpatia, valorizando e seguindo o estilo «menor» para desenvolver e explicitar uma Teoria (em maíscula mesmo) que ajuda a sistematizar o estudo da literatura portuguesa — e mesmo da Literatura num âmbito mais vasto— em duas diferentes linhagens.
Como afirmava no começo, Uma Carta à Posteridade. Jorge de Sena e Alexandre O’Neill é, sem dúvida, um livro que reflete um percurso acadêmico, e que não deixa de ter as marcas de um pensamento articulado no interior da academia, mas que propõe que — parafraseando agora os célebres versos de Carlos Drummond de Andrade — «não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas». De mãos dadas com o leitor e, sobretudo, com os poetas que escolhe pôr em diálogo, Joana Meirim consegue reavivar a grandiosa, pesada e quiçá mórbida, palavra «posteridade». A carta à posteridade que Joana Meirim lê em Jorge de Sena e Alexandre O’Neill não é, pois, aquela deixada para anunciar o encerramento de uma vida, mas antes um afetuoso convite para o início de uma conversa.
REFERÊNCIA:
Meirim, Joana. Uma Carta à Posteridade: Jorge de Sena e Alexandre O'Neill. Lisboa: Imprensa Nacional, 2024.