Miguel Tamen
«On Bullshit,» de Harry G. Frankfurt (1929-2023) começou por seguir o curso normal de muitos outros ensaios escritos por filósofos: com menos de vinte páginas, foi publicado numa revista em 1986 e depois integrado num livro do autor em 1988. O curso normal, característico da filosofia académica contemporânea, só se alterou depois da sua publicação, em 2005, como um pequeno livro de capa dura. A edição muito cuidada e o corpo de letra ampliado (que aumentou a extensão do ensaio para quase setenta páginas) visavam claramente um público não-filosófico; e o êxito foi grande. À primeira vista a memória desse êxito também terá sido duradoura: vinte anos depois, e já postumamente, o mesmo editor republicou o livro numa «Anniversary Edition,» onde incluiu como posfácio a reacção de 2002 do autor a um comentário do filósofo político G. A. Cohen (1941-2009), num total de 84 páginas.
Não existe que eu saiba nenhuma outra «Anniversary Edition» de um ensaio filosófico contemporâneo tão curto. A explicação parece-me ter a ver com duas causas principais (adiante sugerirei uma terceira). A primeira é o facto de o título do livro mostrar uma palavra que não é possível pronunciar em ambientes académicos convencionais, o que dá ao público uma ideia mais amigável da filosofia, aliás prefaciada sorridentemente pela preposição filosófica «On»; e a segunda causa é a promessa implícita, embora infundada, de que o tópico principal do livro consiste em descrever desfavoravelmente a filosofia, isto é, aquilo que os compradores do livro não terão normalmente lido.
A ambas as causas é estranho o mérito dos argumentos do ensaio, e o cuidado com que Frankfurt discute o conceito de bullshit (doravante BS). Como o seu posfácio torna claro, «BS» não designa simplesmente a falta de clareza tantas vezes atribuída ao discurso filosófico. A falta de clareza de uns é regra geral clareza para outros. «Quase todos os discursos,» escreve Frankfurt, «são, sob certos padrões, a certos respeitos, e até certo ponto, pouco claros» (77). Por outro lado, «BS» não é sinónimo de «mentira» ou de «aldrabice [humbug].» O cultor de BS, ao contrário do mentiroso, não «produz as suas declarações (...) com a intenção de enganar» (7-8). E mesmo podendo haver a intenção de enganar, como quando uma empresa de tabacos insinua num anúncio que uma determinada marca de cigarros «transforma os homens em cowboys» (74), esse facto é superrogatório (75), visto que a campanha publicitária foi concebida «sem ter verdadeiramente em conta a relação» (idem) que existe de facto entre cigarros e cowboys.
A tese principal de Frankfurt é que o BS consiste na «indiferença em relação ao que as coisas realmente são» (34). Muitas vezes trata-se de uma indiferença em relação à verdade das asserções que produzimos, e nessa medida na produção de asserções que não estão comprometidas com o seu, ou qualquer, valor de verdade. Nesses casos, como observa Frankfurt, o BS pode ser «extremamente perigoso», visto que «o exercício da vida civilizada e das instituições que lhe são indispensáveis depende muito fundamentalmente do respeito pela distinção entre o verdadeiro e o falso» (83) (incidentalmente, frases como estas, que fazem parte do posfácio de 2025, sugerem uma terceira causa, não realmente comemorativa, para a publicação de uma «Anniversary Edition» nesta altura).
Mas o problema da indiferença em relação à distinção entre verdadeiro e falso não é simplesmente uma questão política, e menos ainda uma questão da discrepância entre o nosso amor pela verdade e a afeição inexplicável que os nossos inimigos políticos, ou certas máquinas que se nos tornaram familiares, costumam ter pela falsidade. Para Frankfurt, a democracia tende a encorajar a convicção de que todos os cidadãos têm de ter opiniões sobre tudo; e nessa medida a proliferação do BS está ligada ao facto de em democracia haver mais pessoas que consideram que, «enquanto agentes morais conscienciosos», têm a responsabilidade de «avaliar acontecimentos e situações em todas as partes do mundo» (64).
Um exemplo não imediatamente político de BS é a actividade que em inglês, sobretudo inglês norte-americano, se refere como shooting the bull (Frankfurt considera esta expressão um eufemismo para «shitting the bull,» 38): aproximadamente dizer o que nos passa pela cabeça num círculo de pessoas que conhecemos e que agem de modo análogo. Os participantes nas chamadas bull sessions «confiam (...) num entendimento partilhado de que o que estão a exprimir ou a dizer não deve ser entendido como aquilo que sinceramente [wholeheartedly] querem dizer ou que acreditam inequivocamente ser o caso» (37). Com efeito, «o propósito dessas conversas não é o de comunicar convicções» (idem). Este exemplo mostra porque a ficção é frequentemente também um caso de shooting the bull e por isso de BS.
No entanto, o diagnóstico de Frankfurt parte da constatação de que «uma das características mais salientes da nossa cultura é haver tanto BS» (1), e portanto que o BS não se restringe às bull sessions formais. Os modos de indiferença à verdade que descreve são para si característicos da filosofia, mas também, por exemplo, do discurso político e da publicidade. O seu diagnóstico cultural é todavia complexo, porque para si nenhum remédio, e decerto não extirpar a democracia, parece ser exequível ou desejável; e por outro lado porque ninguém saberia como «produzir asserções que visam descrever as coisas como elas são, mas que não podem ser senão BS» (62). Com efeito, o BS só pode ser produzido «inadvertidamente» (41 n5).
Finalmente, como observa Frankfurt, apesar de o «ideal de correcção» ser fonte de tantos problemas, também não parece exequível refugiarmo-nos «num ideal alternativo de sinceridade (...) em que em vez de tentar procurar chegar a representações exactas de um mundo comum, o indivíduo se volta para a tentativa de oferecer representações honestas de si próprio» (65). Esse ideal de sinceridade, a que Lionel Trilling e depois Charles Taylor famosamente chamaram autenticidade, não parece ser, na opinião de Frankfurt, uma alternativa filosófica, moral ou política ao BS. Nessa medida, as esperanças políticas dos editores de 2025 e os apelos tão familiares para desmistificar a cultura prevalecente através de novas autobiografias politicamente exemplares parecem também ser casos de BS.
REFERÊNCIA:
Frankfurt, Harry G. On Bullshit: Anniversary Edition. Princeton: Princeton University Press, 2025.