Alda Rodrigues
Em resposta à recensão publicada em http://formadevida.org/recensoes/99-henry-david-thoreau-2016-walden-ktaadn-pedro-madeira, assinada por Pedro Madeira (doravante identificado por meio das iniciais PM), começarei com um comentário geral sobre o âmbito da edição discutida (I), seguindo-se um esclarecimento ponto por ponto sobre questões de tradução (II), pela ordem com que são abordadas na recensão.
Antes de mais, é louvável que haja discussão de traduções. Não conheço um único tradutor sem interesse em debater as dificuldades da actividade e dos textos com que trabalha. Neste sentido, agradeço os reparos pertinentes de PM (referidos nos pontos 1 e 5 da secção II deste texto).
É de lamentar, no entanto, que nesta recensão PM não tenha colocado lado a lado o original e a tradução problematizados, de modo a enquadrar os comentários nem sempre claros que vai tecendo. Em vez disso, PM preferiu basear-se em citações descontextualizadas, sem propor traduções alternativas. Estes cuidados tão simples, mas essenciais numa recensão deste teor, teriam evitado o carácter apressado e mal fundamentado da maioria das suas observações (ver secção II).
I. ÂMBITO DA EDIÇÃO
1. Como PM devia ter confirmado em caso de dúvida — que não se percebe bem de onde surgiu —, não há qualquer lacuna informativa sobre a responsabilidade da edição discutida na sua recensão. Esta responsabilidade, incluindo opções como o texto da contracapa e a interessante decisão de agrupar Walden e Ktaadn no mesmo volume, coube à Relógio D’Água. O meu nome é correctamente indicado apenas como tradutora.
2. Como acontece em todo o mundo com a maior parte das traduções publicadas — de clássicos ou não, independentemente de serem a primeira ou a mais recente —, a edição de Walden e Ktaadn em causa disponibiliza versões dos textos identificados no título — não comentário dos textos. Sublinhe-se também que é habitual publicarem-se livros reunindo dois ou mais textos, nomeadamente do mesmo autor, pelo que não se compreende como esta circunstância auto-explicativa pode causar estranheza a PM, a não ser devido a falta de familiaridade com livros de vários âmbitos.
3. Não devia ser necessário explicar isto, mas PM parece debater-se com algumas dificuldades em compreender o processo e a finalidade da tradução: o objectivo primordial de um tradutor é produzir uma versão de determinado texto em língua diferente. Representando uma interpretação do texto de partida, o texto de chegada tem de ser tão legível e fazer tanto sentido como o texto de partida, não devendo um tradutor recorrer à solução fácil das notas sempre que depara com alguma dificuldade, em vez de fazer tudo para a resolver no texto do melhor modo que conseguir. Além disso, as notas de tradução, ao contrário daquilo em que PM parece acreditar, não devem ser pequenos ensaios com o fim de explorar e resolver questões de interpretação complexa; convém que sejam o mais breves possível e esclareçam dificuldades pontuais. (Há outros tipos de notas; trata-se de um tópico que podia inspirar um ensaio longo interessante, que incentivo PM a escrever, depois de investigar a questão a fundo.)
4. Visto que a edição da Relógio D’Água não é identificada como «tradução anotada», não se pode esperar que venha acompanhada de aparato académico explicativo. (Enquanto trabalhava nestas traduções, tive, aliás, oportunidade de consultar, entre outras, versões francesas e espanholas destes textos sem anotações.) Edições de clássicos que sejam acessíveis para o público em geral não excluem a existência e a consulta de outras de teor mais académico, tal como abordagens mais académicas não excluem outro tipo de edições. Note-se também que uma «tradução anotada» representa um acréscimo de informação, mas, por si só, não é garantia de uma tradução legível e de boa qualidade.
5. Por último, nunca será demais salientar que os clássicos não interessam só a académicos. Por este motivo e também por uma questão de enriquecimento cultural, é essencial e urgente que existam traduções legíveis para o português destas e de outras obras fundamentais — às quais toda a gente possa ter facilmente acesso, como acontece em outras línguas. Em Portugal, infelizmente, ainda há um grande atraso nesta matéria. Este atraso deve ser condenado e combatido, e não protegido através da defesa da ideia errada de que só pode haver primeiras edições de traduções se forem anotadas.
II. QUESTÕES DE TRADUÇÃO
[Os números de página indicados referem-se à edição da Relógio D’Água discutida na recensão.]
1. «My ‘best’ room, however, my withdrawing room»/«A minha ‘melhor’ divisão – a minha sala de visitas –, sempre pronta para receber visitas» (p. 124)
Como o próprio PM observa, «withdrawing room» é uma forma de «drawing room», que tem como equivalente português a expressão «sala de visitas», um espaço que não serve só para receber pessoas/visitas, como PM deverá saber. Teria todo o gosto em discutir uma tradução alternativa, mas PM não fez qualquer proposta. (Nota: agradeço a observação sobre «on whose carpet the sun rarely fell», uma supressão de texto involuntária.)
2. «The volatile truth of our words should continually betray the inadequacy of the residual statement. Their truth is instantly translated; its literal monument alone remains.»/«A verdade volátil das nossas palavras devia trair constantemente a inadequação da afirmação final. Esta verdade traduz-se instantaneamente; só o seu monumento textual permanece» (p. 279)
De acordo com PM, «A tradução disfarça o sentido técnico do inglês que tem [sic] «residual» e «literal» em lugar das palavras que sublinhei.»
Infelizmente, os problemas de redacção e revisão desta frase de PM dificultam a sua compreensão. Se PM considera preferível a tradução «A verdade volátil das nossas palavras devia trair constantemente a inadequação da afirmação *residual. Esta verdade traduz-se instantaneamente; só o seu monumento *literal permanece», tem de explicar de forma clara e convincente o que este passo assim redigido significa também em português, de modo a demonstrar que se trata de uma alternativa preferível. (Se possível, seria melhor que PM evitasse recorrer a lugares-comuns mal compreendidos. Cautela, por exemplo, com a declaração de que Thoreau «quer fazer» de Walden um «clássico instantâneo»; «clássico instantâneo» é uma expressão com conteúdo depreciativo em muitos contextos e é preciso cuidado com a atribuição de intenções.)
3. «Our horizon is never quite at our elbows»/«O nosso horizonte está sempre distante» (p. 115)
Segundo PM, a «ideia é que o horizonte nunca nos tolhe os movimentos» [sic].
A tradução não contradiz a ideia — aliás, mal descrita (como poderia o horizonte tolher os movimentos de alguém?) — que PM atribui a este passo.
4. «Such is the color of its iris»/«Tais são as cores do seu arco-íris.» (p. 155)
PM ignora que a acepção primária (e também mais próxima do étimo) da palavra inglesa «iris» é «rainbow» ou «arco-íris» (ver, por exemplo, https://www.merriam-webster.com/dictionary/iris). Visto que, além disso, antes desta frase são referidas diversas cores e tonalidades da paisagem, optar por «íris», como PM defende, seria um erro de tradução que revelaria falta de conhecimento linguístico. Acrescente-se que a percepção de cores só é possível graças ao sentido da visão.
Eis a citação no seu devido contexto: «Lying between the earth and the heavens, it partakes of the color of both. Viewed from a hill-top it reflects the color of the sky, but near at hand it is of a yellowish tint next the shore where you can see the sand, then a light green, which gradually deepens to a uniform dark green in the body of the pond. In some lights, viewed even from a hill-top, it is of a vivid green next the shore. Some have referred this to the reflection of the verdure; but it is equally green there against the railroad sand-bank, and in the spring, before the leaves are expanded, and it may be simply the result of the prevailing blue mixed with the yellow of the sand. Such is the color of its iris.»
5. «Na última página de ‘Solidão’, por exemplo, carros que parecem escunas passam a escunas que parecem carros [‘those long shallow black-schooner looking wagons’] e, um pouco mais adiante, aparece esta frase deturpada: ‘Não sou adorador de Higeia, filha de Esculápio, nem doutor no poder curativo das ervas, como os que são representados (...) com uma serpente numa mão, tendo na outra uma taça’ (p. 122) [‘I am no worshipper of Hygeia, who was the daughter of that old herb doctor Aesculapius, and who is represented on monuments holding a serpent in one hand’] [...] a omissão de uma frase inteira no último parágrafo de «O Campo de Feijões» [‘These beans have results which are not harvested by me’]»
Agradeço as observações sobre estes três problemas. A primeira e a terceira apontam uma confusão e uma omissão involuntária de algumas palavras. Em relação à segunda, importa precisar que, ao contrário do que PM afirma, não só Higeia mas também Esculápio e os seus «seguidores» (em sentido lato) são representados por meio destes emblemas. Além disso, a afirmação de Thoreau não se limita às capacidades de Higeia, mas é mais geral, abrangendo os que dominam o conhecimento de poderes curativos. Concordo, no entanto, que seria mais apropriado traduzir de modo mais próximo do original. Há omissões (voluntárias e involuntárias) em todas as traduções — sei do que estou a falar porque trabalho em revisão de texto de traduções há muitos anos —, mas são problemas a corrigir.
6. Referência a «tradução distorcida» do verso de um poema de John Donne.
Qualquer leitor poderá conferir o original do texto de John Donne em confronto com a tradução, visto que este foi incluído no livro antes da versão proposta (p. 190), pelo que a observação de PM não tem qualquer cabimento.
Comentário final
Para ter proveito, a discussão de problemas de tradução tem de se processar com seriedade e demonstração de alguma experiência de tradução — pelo menos das expressões comentadas, não falo sequer de experiência profissional. É igualmente necessário que os intervenientes falem com conhecimento de causa, sem má-fé e com a maior clareza possível.
Muito mais poderia ser dito sobre o Walden e Ktaadn — e também sobre a recensão de PM, que não só deveria ter sido objecto de uma revisão de texto mais atenta como também revela conhecimentos muito superficiais sobre o autor norte-americano, despachado no terceiro parágrafo de PM com a alegação não demonstrada de que oseu «actual sucesso editorial» está relacionado com a «enorme popularidade de Pessoa» (!).
Como já expliquei num texto publicado na Forma de Vida (http://formadevida.org/rodriguesfvd9), leio e penso em Thoreau há mais de vinte e cinco anos — além de ter mais de quinze anos de experiência profissional em actividades editoriais de vários tipos —, pelo que não vou dar troco a certas acusações pueris embrulhadas em tom de aluno de doutoramento. Por questões de pertinência, este texto aborda apenas brevemente as questões suscitadas pelas observações sobre tradução e edição na recensão a que responde. Os mesmos tópicos ou outros poderão ser desenvolvidos no futuro, em textos de cariz diferente, de preferência mais interessantes do que este. Se houver oportunidade, lerei — com atenção e interesse, caso conclua que a abordagem privilegiada não padece dos mesmos problemas desta recensão — o que PM escrever sobre estes assuntos. De momento, contudo, não terei disponibilidade para redigir mais respostas deste género.
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NOTA DA DIRECÇÃO DA SECÇÃO DE RECENSÕES DA FORMA DE VIDA
Após ter recebido o texto de direito de resposta de Alda Rodrigues, e por causa do que é dito no ponto 2 da secção II do mesmo, apercebi-me de que estavam em falta os sublinhados mencionados por Pedro Madeira na recensão em causa. Esse erro, da minha exclusiva responsabilidade aquando da passagem do texto para o programa de publicação das recensões, já foi corrigido. A resposta de Alda Rodrigues foi elaborada tendo como base o texto sem sublinhados. As palavras ditas sublinhadas estão agora assinaladas a negrito, uma vez que o programa não permite a marcação de palavras por sublinhado.
Helena Carneiro