Nuno Amado
Um dos temas fortes de Three Billboards outside Ebbing, Missouri, o mais recente filme de Martin McDonagh, é o preconceito. O filme não é, contudo, sobre um preconceito particular. Não é stricto sensu sobre racismo, homofobia, misoginia ou demais manifestações de ódio e intolerância, mas sobre aquilo que lhes é comum. O que interessa mostrar não é uma das várias facetas da América, mas a América. Dito assim, parece pretensioso. Até porque, evidentemente, os problemas de um lugarejo no Missouri não são iguais aos problemas de outros lugarejos nem iguais aos problemas de uma grande metrópole. Não obstante, é perfeitamente possível que problemas diferentes procedam de causas comuns. A pequena cidade de Ebbing, estrategicamente situada no coração da América (foi no Missouri, em Ferguson, que em Agosto de 2014 o jovem Michael Brown foi baleado por um agente da polícia e morreu, e foi esse incidente que deu origem ao movimento «Black Lives Matter»), é por sinédoque a própria América.
Nuno Amado
Depois da publicação da Obra Completa de Álvaro de Campos, em 2014, e da Obra Completa de Alberto Caeiro, já em 2016, a Tinta-da-China concluiu no final do ano passado a trilogia das obras integrais dos três principais heterónimos pessoanos com a Obra Completa de Ricardo Reis. De acordo com os editores, Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, os propósitos desta edição eram os de dar a ler «um Reis mais bem decifrado, mais completo e mais diacrónico» (p. 17). Os principais méritos desta edição são indissociáveis destes três propósitos.
Nuno Amado
A dada altura de A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num bar, Ricardo Araújo Pereira define o seu trabalho de humorista como o «ofício de fazer desfeitas ao mundo» (p. 33). À luz desta definição insólita, o humorista supremo seria aquele que passasse a vida a desfeitear o mundo. É essa, aliás, a ambição do protagonista de Jacques, o Fatalista, tal como se percebe pelo exemplo de que RAP se serve, no último capítulo do livro, para justificar a ideia de que o riso tem o poder de subverter o medo da morte. Se tivesse conseguido «troçar de tudo», o protagonista da obra de Diderot ter-se-ia livrado de todas as «preocupações», não teria «necessidade de mais nada» e tornar-se-ia «perfeito senhor de mim mesmo» (p. 106). Ora, o auto-domínio e a auto-suficiência nos quais consistiria o triunfo sobre o mundo desejado por Jacques são talvez as características mais distintivas da figura do sábio, tal como ela é pensada ao longo de toda a tradição filosófica ocidental. Uma ideia importante a reter é, pois, a de que humor, para RAP, é uma forma de sabedoria.
Por Nuno Amado
A resposta à inusitada pergunta que serve de título ao livro de Jerónimo Pizarro dá-a o autor no final do capítulo nono, em cujo título a mesma pergunta se repete: «Pensar Pessoa, editar Pessoa – actividades intimamente ligadas – não resgatam Pessoa, não nos devolvem uma imagem única e mágica, senão muitos Pessoas, também eles múltiplos, cuja multiplicidade já se encontrava, ou já se podia intuir, na materialidade das fontes e na forma dos textos. (p.192)» Tal resposta evidencia, a meu ver, duas coisas: a posição crítica geral de Pizarro face à obra pessoana, sobre a qual versará quase tudo o que tenho a dizer, e uma pequena explicação das razões dessa posição.
Por Nuno Amado
Sempre que, com o objectivo de descrever a escrita de Kafka, se utilizam adjectivos como “pessimista”, “melancólica” ou “neurótica”, fico com a impressão de que nunca se leu o conto sobre o celibatário Blumfeld e se devia dormitar enquanto se liam alguns episódios d’O Processo, como aquele em que Joseph K. surpreende um algoz com roupas de couro a açoitar, numa arrecadação, os dois homens que, no início do romance, lhe tinham aparecido no quarto a anunciar a prisão. Ora, é precisamente em não ser esse o caso deste pequeno livrinho que reside um dos méritos — talvez o mais saliente — da apreciação kafkiana que nele se desvela.